Dois poemas de Auta de Souza a partir do minicurso sobre poeta potiguar


A idéia de se fazer algo sobre Auta de Souza me veio ainda no ano passado quando tive contato com a produção poética sua. A proposta inicial era fazer uma exposição a partir da obra para apresentá-la durante a Semana de Letras na Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. Mas, não deu certo. De exposição, a idéia transformou-se em minicurso, de minicurso colocaram na programação como oficina. Acabou que ficou, pois, um minicurso com nome de exposição e cara de oficina.

O minicurso sobre Auta de Souza iniciou com discussões sobre sua poesia, os traços e temas da criação poética e o poder poético de exploração dos sentidos. Parou-se para discutir sobre a natureza do poema, seus aspectos formais,  a relação poesia - escritor - obra - público e desenvolveu-se observações sobre o contexto da literatura potiguar onde se "hospeda" a poesia de Auta de Souza.

Abaixo, o recorte com dois poemas, o primeiro, é escrito no advento de sua escrita, o último, três dias antes da sua morte. 



Saudação


A meu irmão Henrique, no dia de seus anos

É chegado enfim o dia
Das harmonias do lar,
Nos rostos vê-se a alegria
De corações a saltar.
Nos lábios, meigo sorriso
Vindo de lá do Paraíso
Em eflúvios divinais;
Como nuvens perfumosas
Derramando sobre as rosas
Os orvalhos matinais.

Não vês, meu irmão, que festa,
Que saudosa embriaguez
Nos mandam lá da floresta
As flores por sua vez?
Parece que a Natureza
Ostenta com mais beleza
As suas graças gentis...
E conosco vem contente
Trazer-te um lindo presente
Nestes perfumes sutis.

Não ouves os periquitos
Que povoam nosso lar?
Com esses alegres gritos
Querem também te saudar.
E os travessos passarinhos,
Como encantados anjinhos
A sorrir lá a amplidão,
Vêm nuns adejos divinos,
Nos biquinhos purpurinos
Sustendo meu coração.

Aceita-o... É feito de rosas,
De margaridas, jasmins;
As suas fibras mimosas
São belas como rubins.
Recebe, pois, com carinhos
Nas asas dos passarinhos
Que cantam nesta manhã,
Como uma sincera homília,
As saudações da família
E os beijos da tua irmã...

15 de março de 1893


Luz e Sombra

(versos escritos três dias antes da morte da autora)

à poetisa Anna Lima

Vamos seguindo pela mesma estrada,
Em busca das paragens da ilusão;
A alma tranqüila para o Céu voltada,
Suspensa a lira sobre o coração.

Ris e eu soluço... (Loucas peregrinas!)
E em toda parte, enfim, onde passamos,
Deixo chorando os olhos das meninas,
Deixas cantando os pássaros nos ramos.

Porque elas amam tua voz canora,
Ó delicado sabiá da mata!
E eu lembro triste a juriti que chora
E a voz dorida em lágrimas desata.

Gostam de ver-te o rosto de criança
Limpo das névoas de um martírio vago,
O lábio em riso, desmanchada a trança,
No olhar sereno a candidez do lago.

Até perguntam quando sobre a areia
Em que tu pisas vão nascendo rosas:
"Bela criança, tímida sereia,
Irmã dos sonhos das manhãs radiosas,

Por que trilhando a terra dos caminhos,
Onde o teu passo faz brotar mil flores,
Esta velhinha vai dizendo espinhos
E um longo rastro de saudade e dores?"

Não lhes respondas... Pela mesma estrada
Sigamos sempre em busca da Ilusão;
A alma tranqüila, para o céu voltada,
Suspensa a lira sobre o coração.

Vamos; desprende a doce voz canora,
Que ela afugenta da tristeza o açoite;
E, enquanto elevas o teu hino à aurora,
Eu vou rezando as orações da noite...


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