Florbela Espanca, tormento do ideal

Por Laury Maciel


Florbela d’Alma da Conceição Lobo Espanca nasceu na Vila de Viçosa (Alentejo), em 1894. Seus primeiros versos são da época em que fez o curso secundário, em Évora, e que somente viriam a ser reunidos em volume depois de sua morte.

Malogrado seu casamento, vai para Lisboa estudar Direito e, nesse mesmo ano, 1919, publica Livro de Mágoas, que passa despercebido. Igual destino teve a obra seguinte, Livro de Soror Saudade, dado a lume em 1923. Novamente infeliz no casamento, retira-se do convívio social, embora continue a escrever poesia e a publicá-la ao acaso. Recolhe-se a Matosinhos, já agora estimulada pelas renovadas esperanças de felicidade conjugal, mas seus versos entram a dar sinais de exaustão. Morre, segundo alguns estudiosos, de suicídio, em 1930.

Toda a produção de Florbela entre os anos de 1915 e 1917 – tanto em poesia como em contos – foi escrita em um livro de mercearia ao qual ela deu o título de Trocando olhares. Deste livro ela separou 33 poemas para publicar sob o título de O livro d’ele, o que não aconteceria.

Publicou livros de poesia: Livro de mágoas, 1919; Livro de Soror Saudade, 1923; Reliquiae, 1931; Charneca em flor, 1919. E contos: As máscaras do destino, 1931; Dominó negro, 1931.

Talvez Tormento do ideal, título de um dos sonetos de Antero de Quental, de quem Florbela Espanca foi discípula – e que recorrera ao suicídio, na impossibilidade de respostas para suas indagações de ordem teológico-existencial –, possa lançar tênue luz sobre a trajetória filosófica e moral da poeta, da qual certamente a base é o amor. “Dele brotam – como notou muito bem Antônio Freire – todas as qualidades e defeitos da poetisa; nele, até mergulha raízes profundas a prodigiosa inspiração poética que a imortalizou como artista”.

Portadora de uma insaciável sede de amor, logo convertida em ideário de vida, tem início sua dolorosa tragédia: a impossibilidade de expressar, à perfeição, este estado de alma.

Feliciano Ramos, em sua excelente História da Literatura Portuguesa, assinala que “Escolheu (Florbela Espanca) o soneto para transmitir a sua perturbante e sombria interioridade. Dentro dessa pequenina fórmula métrica e estrófica, Florbela move-se e realiza com todo o à-vontade: crê-se que os seus versos registram com estridência dramática o cruciante viver de sua ‘alma trágica e doente’ (soneto Ao vento). E, no entanto, embora os sonetos de Florbela sejam tão angustiosos e contagiantes, ela tristemente verifica a impossibilidade de efetuar a comunicação integral de sua desventura: no soneto Impossível, confessa que a sua dor é tão grande que não caberia mesmo em ‘cem milhões de versos’, caso os viesse a escrever.” E continua Feliciano Ramos: “Agitada por eterna ansiedade, está sempre longe de encontrar o que espera: ‘o meu reino fica para além’ dirá Florbela, assediada pelo tormento de constantemente pedir à vida mais do que ela pode dar. Esta ‘inquietação’ de exilada da realidade inspira-lhe versos comoventes”.

Nesse sentido – me parece – é que no mencionado Tormento do ideal (s0neto em que Antero de traduz, à perfeição, todo o seu pessimismo à Schopenhauer), reside integralmente o drama existencial de Florbela Espanca: a inútil busca da forma para expressá-lo:

Conheci a Beleza (leia-se o Amor, o Absoluto, a Verdade) que não morre
E fiquei triste.
E, no primeiro terceto, a confissão:
Pedindo à forma, em vão, a idéia /pura,
Tropeço em sombras, na /matéria dura,
E encontro a imperfeição de /quanto existe.

Eis, pois, toda a tragédia de Florbela Espanca. Na base desse perfil moral e filosófico está o amor: dele brota tudo o que a prodigiosa inspiração poética de Florbela Espanca imortalizou, como artista. Desde as primeiras experiências amorosas, aos dezesseis anos, que ela refere como “misteriosa descoberta”, passando por dolorosas experiências sentimentais até o final de sua vida, tudo se converte em atrozes interrogações em seu atribulado espírito cem por cento feminino. Só tem uma certeza: quer amar e ser amada. No soneto Exaltação, assim o cantou: Deus fez os nossos braços pra prender/E a boca fez-se sangue pra beijar. Esta sede de amar plasmou-se num soneto, pleno de verdade e de beleza, em que o amor feminino atinge os limites do sublime:

Gosto de ti apaixonadamente
De ti que és a vitória, a salvação,
De ti que me trouxeste pela mão
Até ao brilho desta chama/quente.
A tua linda voz de água corrente
Ensinou-me a cantar... e essa/canção
Foi ritmo nos meus versos de/paixão,
Foi graça no meu peito de/descrente,
Bordão a amparar a minha/cegueira,
Da noite negra o mágico farol,
Cravos rubros a arder numa/fogueira.
E eu, que era neste mundo uma/vencida,
Ergo a cabeça ao alto, encaro o/Sol!
Águia real, apontas-me a/subida!

O poema raia ao sublime, mas a poeta, em sua ânsia de perfeição formal, embora tenha encontrado uma luz (o Sol, a Águia real), ainda assim brada por “Um bordão a amparar minha cegueira”.

Florbela quase não sabe escrever senão sobre o amor: Livro de meu amor, do teu amor/ Livro do nosso amor, do nosso peito.../ Abre as folhas devagar, com jeito,/ (...) Olha que eu outro já não seu compor.

Sempre o amor: Mesmo a um velho eu perguntei: - Velhinho/ Viste o Amor acaso em teu caminho?/E o velhinho estremeceu... olhou... e riu.../ (...) E eu paro a murmurar: ‘Ninguém o viu!’.

Pior: o amor ludibriou-a: Procurei o amor que me mentiu.

A própria poeta, num auto-retrato, mostra até que ponto o seu temperamento, visceralmente insatisfeito, a fadava à incompreensão: O meu talento! De que me tem servido? Não trouxe nunca às minhas mãos vazias a mais pequena esmola do destino. Até hoje não há ninguém que de mim se tenha aproximado que não me tenha feito mal. Talvez culpa minha, talvez... O meu mundo não é como o dos outros; quero demais, exijo demais; há em mim uma sede de infinito, uma angústia constante que nem eu mesma compreendo, pois estou longe de ser uma pessimista; sou antes uma exaltada, com uma alma que não sente bem onde está, que tem saudades... sei lá de quê!

É lícito, pois, diante de tanto sofrimento, que a confissão acima corrobora, admitir-se a idéia de que Florbela Espanca se teria suicidado. Amélia Vilar, uma estudiosa da grande poeta, afirma: Essa neurastemia que, sem dó nem piedade, lhe tumultuava no sangue, tinha de produzir os funestos estragos nas lamentáveis conseqüências do suicídio.

Se colocarmos a questão sob jurisdição da patologia, talvez Amélia Vilar tenha razão. Mas não. Florbela padece de uma sede de infinito que nem seu invulgar talento pode saciar: um tormento do ideal, que tem a ver muito mais com a verdade literária do que como a patologia.

A verdade é que o suicídio nunca se provou, por mais que queiram justificá-lo também com uma provável relação incestuosa com seu irmão Apeles, tragicamente morto nas águas do Tejo, por quem, de fato, votava extremado amor de irmã. Tudo não passou de campanha difamatória, como tantas que circularam em torno da poeta.

Há um testemunho decisivo, definitivo (colhido pelo citado Antônio Franco), sobre o assunto e, que, a nosso ver, encerra o assunto: é o do padre Nuno Sanches, de Matosinhos, e que diz o seguinte: Como sacerdote católico, sei o que a Igreja estabelece para os suicidas; como coadjutor da paróquia (de Matosinhos), no cemitério da qual foi inumada a poetisa Florbela Espanca, sei que o seu enterro foi feito religiosamente, assim como o fora antes o seu casamento. Para o enterro religioso não foi pedida nenhuma dispensa ou autorização especial às autoridades eclesiásticas, o que exclui, portanto, essa tal hipótese, que tenho por caluniosa e tanto mais reprovável quando se trata de alguém que não pode defender-se.

Por tudo isso, Florbela Espanca tem sido considerada, com muita justiça, a figura feminina mais importante da Literatura Portuguesa. sua poesia, mais significativa que seus contos e produto duma sensibilidade exacerbada por fortes impulsos eróticos, corresponde a um verdadeiro diário íntimo, cuja temperatura de confidência só encontra semelhança nas Cartas de Amor de Mariana Alcoforado.

Cansada de suplicar, a Morte é o próximo passo (como Antero, no soneto Com os mortos): Deixai entrar a Morte, a iluminada/ A quem vem para mim, pra me levar/ Abri todas as portas par em par/Como asas a bater em revoada.

A tragédia da impossibilidade de comunicar um amor incorrespondido foi, portanto, a grande tragédia de Florbela Espanca, compreensível (se é que há compreensão para essas coisas) na fusão das duas personalidades da poeta numa só: a artista e a amante.

É neste sentido que o mencionado Tormento do ideal, de Antero de Quental, pode ajudar a derramar alguma luz sobre sua alma trágica.


Fonte: este texto foi retirado na íntegra de ESPANCA, Florbela. Poesia de Florbela Espanca (vol. 1). Porto Alegre: L&PM, 2008, p. 05-11.


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