O africano, de J. M. G. Le Clézio

Por Javier Aparicio Maydeu



“Quem sou eu?” é a frase com que André Breton começa seu romance Nadja (1928), cujas audácias formais, a collage fotográfica e seu manejo autorreferencial da linguagem influenciaram na obra inteira desse piccolo genio chamado Jean-Marie Gustave Le Clézio (Niza, 1940), que em 1963 publica Le procès-verbal; com 23 anos o escritor demonstra ter aprendido bem a lição das vanguardas e a fama da náusea de Sartre e do absurdo de Camus, além da diatribe contra os modos de vida do mundo contemporâneo, pois o também desenraizado Adam Pollo, seu reflexo e herói anônimo, alienado e sem rumo, busca a si mesmo num meio hostil.

A aparência formal de Le procès-verbal ou Le déluge (1966) induzia a pensar que seguia os ditames do nouveau roman de Robbe-Grillet e Butor seja pela dimensão de seu trabalho verbal e sua obsessão pelos objetos e a perscrutador olhar descritivo; mas a pequena precisão asséptica de sua prosa escondeu sempre o lirismo, os caminhos do narrador francês não levavam precisamente até a desumanização da arte e, no fim, “quem sou eu” é só o que Le Clézio se pergunta uma ou outra vez ao longo de uma intensa e extensa obra narrativa que se enreda na introspecção autobiográfica e num virtuoso manejo da capacidade expressiva da linguagem considerada uma das belas artes, talvez a mais bela de todas, de transcrever e apreciar o mundo.

Sua portentosa consciência linguística e sua criatividade verbal, que alcança um processo muito semelhante ao da dissertação, uma diversidade de variantes da linguagem – com exercícios de estilo próximos aos praticados por Queneau, metatextos em forma de rascunhos dos cadernos escritos por seus protagonistas emulando-se a ele, páginas febris nas quais cavalga a narração e em seu entorno páginas requintadas de reflexões poéticas, uma urdidura de gêneros narrativos e visuais – nascem de suas leituras da vanguarda imagética, iniciática e conceitual como a obra de Klee que tanto admira, do surrealismo mais perceptivo e paranoico e de sua devoção por Henri Michaux com quem compartilha a escrita como catarse, um exercício lírico e visionário das palavras, desligadas de seu uso comum e empregadas para transmitir impulsos, símbolos e sensações, além de uma intensa observação da realidade que devem da descrição prodigiosamente plástica e se converte verte numa radiografia de si mesmo confrontado com o mundo que o rodeia num intento de reconstrução de sua própria identidade através da linguagem e da viagem.

Le Clézio se satisfaz em identificar o ser e a palavra ou a vida e a escrita, e suas obras O africano (2004), crônica autobiográfica em que reescreve sua história familiar, a mesma romanceada em Onitsha (1991), e o esplêndido romance Urania (2006). Essas narrativas dialogam com outras já conhecidas do leitor, como Equador (1929) e Um bárbaro na Ásia (1932), livros de viagem em que Michaux mostrava reconhecer-se em exóticas paisagens e que constituem uma narrativa que privilegia a linguagem, meio capaz de nos transportar ao lugar a que se refere melhor até que a própria viagem; ou ainda, resquícios de Deserto (1980) ou História de um buscador de ouro (1985), romances de aventura iniciática nascidas de uma biografia familiar, interpretada por seus ancestrais e concebidas como armas linguísticas polidas na nobre luta pela conquista da consciência de si mesmo. “É escrevendo que agora o compreendo”, destaca em O africano; isto é, ao escrever, escrevendo, se compreende.

Sua obra posterior aos anos 1980 condensa suas audácias formais mas intensifica as críticas à sociedade do consumo e ao universo urbano de máquinas e supermercados, destacando em suas duas últimas obras a visão opressiva da sociedade contemporânea com a vida no Terceiro Mundo, envolta na natureza e vista a partir da nostalgia da inocência da infância.

“Hoje, existo, viajo, criei por minha vez uma família, enraizei-me em outros lugares. Contudo, a cada instante, como uma substância etérea que circula entre as divisórias do real, sou traspassado pelo tempo de outrora, em Ogoja. E isso, em súbitos impulsos, me submerge e atordoa. Não somente essa memória de criança, extraordinariamente precisa quanto a todas as sensações, os odores, os sabores, a impressão de relevo ou de vazio, o sentimento da duração”, escreve em O africano, preciosa crônica de seus nãos de infância vividos na África negra com seu pai desconhecido, que incorpora as palavras a uma intensa recordação sensorial mas não-verbal, pois “Não usamos palavras (e as palavras não se gastam) quando somos crianças. Eu nasci naquele tempo distante, muito longe dos adjetivos, dos substantivos”; adjetivos que agora emprega para transportar o leitor aos cheiros e ao colorido da África onde pronunciava nomes mágicos entre miríadas e insetos.

Aquela memória fixada para sempre no exercício de uma escrita iluminadora, autoconsciente e redentora, lhe dá a mão em Urania pela utopia da invenção de um país centro-americano em que o grande narrador francês desfruta novamente transmutado no geógrafo Sillitoe, da projeção do eu sobre a alteridade multicultural e da errância por uma geografia física que na realidade é geografia humana porque atravessando a paisagem Le Clézio atravessa sua própria identidade. Incorrigível vira-mundos, da África ao México, Le Clézio proclama que o espaço mais real é sempre o da linguagem, e o bom viajante é quem melhor verbaliza sua experiência para averiguar quem é ele.


* Este texto é tradução livre para “El maestro J. M. Le Clézio”, publicado inicialmente no caderno Babel, do jornal El País.


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