Harold Pinter



Depois de Beckett, seu mestre, Harold Pinter foi o grande patrono da dramaturgia contemporânea. Foi o pai espiritual de David Mamet, de Neil LaBute, de toda a geração dos In-Yer-Face, os novos rebeldes britânicos, de Martin McDonagh a Conor McPherson (O eclipse, filme pinteriano até a medula) passando pela suicida Sarah Kane, quem defendeu quando todo mundo falava de Blasted; sua influência é indiscutível até entre alguns dos melhores atores desse período. Pinter foi uma figura difícil, dura. Sobreviveu aos ataques contra os judeus em bairro durante a infância e ao tribunal militar que o condenou por tê-lo como rebelde nos duríssimos anos cinquenta; sobreviveu ainda aos modismos, às perseguições, ao fascismo dos que a cada ano, sobretudo depois do seu comprometidíssimo discurso de recepção do Prêmio Nobel em 2005 quando passaram a acusá-lo de “esquerdista transloucado”.

Durante a estreia de The birthday party (A festa de aniversário) sua primeira peça no Lyric Hammersmith de Londres – o mesmo teatro e a mesma data de quando estreou há cinquenta anos, 8 de maio – Pinter comentou irônico que todos os críticos de então, exceto Harold Hobson, “escreveram que aquela estreia seria também minha despedida”. Erraram. Erraram também os médicos quando deram pouco tempo de vida depois que em 2001 foi diagnosticado com um câncer de esôfago em fase terminal. Desde quando soube da morte iminente, Pinter desdobrou-se num esforço sobre-humano como escritor, diretor, roteirista, ativista político e ator: esteve empenhado em denunciar Tony Blair como criminoso de guerra, protagonizou Apart from that na TV BBC, em 2005 e em outubro de 2006 voltou aos palcos para interpretar no Royal Court Krapp’s last tape, um monólogo de Samuel Beckett durante nove sessões com teatro lotado.

Diferentemente de seus companheiros de geração, Pinter não deixou de estar presente, ano após ano, em cartaz nos países anglo-saxões. E sempre com casa lotada contraindo o estúpido clichê de “autor menor” ou “hermético”.  “Pinter não é simbólico. Nem absurdo. Não necessita de dramaturgias nem cenografias que expliquem o conceito. Não é realista nem surrealista mas super-realista: seu teatro é um concentrado extremo de realidade que inclui, naturalmente, os sonhos e os desejos secretos e as realidades paralelas, tudo o que não se diz e o que se diz para não dizer o que quer dizer. E a dor, o humor, um humor que é ao mesmo tempo lírico e feroz: o deadpan dos cômicos ingleses que deixam cair suas frases como gotas de chá na metade de um incêndio” – assinala Marcos Ordóñez.



Como Bergman, igualmente acusado de difícil e polêmico, Pinter foi um vitalista radical que sempre se leu a socos com a sombra para arrancar todos os véus, para fazer picadas todas suas máscaras. Também lhe deram qualidades de amargurado, frio ou distante, quando foi, na verdade uma figura cálida, próxima e sorridente. Ficou ainda reconhecido como o responsável pelo melhor cinema de Losey (por Accident, de 1967 e O mensageiro, de 1969), e sobretudo, o artífice da bela adaptação de A mulher do tenente francês, romance de John Fowles que Karel Reisz levou para a grande tela em 1980 e lhe valeu uma candidatura ao Oscar. Foram, além desse, outros 24 grandes roteiros de adaptações de peso, entre elas The last tycoon, romance póstumo de F. Scott Fitzgerald que se converteu em O último magnata pelas mãos de Elia Kazan e sua personalíssima versão de Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust que não chegou a filmar mas colocou em cena no National de Londres entre 2000 e 2001.

O Prêmio Nobel veio-lhe quando contava 75 anos: “Estou há cinquenta anos escrevendo obras para o teatro e comprometido politicamente. Não estou seguro sobre em que agrado aos que me premiaram”, disse na ocasião quando soube de havia sido galardoado. O júri do prêmio disse premiá-lo porque “devolveu ao teatro seus elementos básicos, um espaço fechado onde os indivíduos estão à mercê de cada um”. Depois da honraria, os trabalhos de Pinter escassearam e dedicou-se mais à poesia. Sua produção teatral mais próxima da data do Nobel foi Voices, texto no qual Pinter descobre uma nova estrutura formal e segue indagando sobre o fosso entre o humano e o inumano.

Toda sua obra conjuga arte e política na busca por decifrar a verdade sobre as coisas, ou melhor, romper com conceitos sedimentados, incluindo o de verdade sobre as coisas. Dizia que “não há grandes diferenças entre o que é real e o que não é real, tampouco entre o é certo e o que errado”; mas acrescentava “que estas afirmações ainda têm sentido e todavia se aplicam à exploração da realidade através da arte”. Via que seu trabalho como artista era compreender esses lugares e enquanto cidadão perguntar-se sobre o que é verdadeiro e o que é falso.



Harold Pinter nasceu no bairro de Hackney, na zona periférica ao leste de Londres em 10 de outubro de 1930; filho de pais judeus, por isso conheceu de perto às perseguições dos fascistas de seu bairro. Rebelde por natureza e consciência, começou a escrever aos 19 anos – primeiro poesia e depois roteiros para teatro. O quarto, escrita em 1957, contém as bases de toda sua primeira fase e de parte de sua obra: a objetividade da cena, das ações, das personagens e da linguagem. A peça abriga apenas duas personagens: uma velha simplória e algo inocente, Rose, e seu companheiro, Bert. Na primeira fase de sua obra perpassa um sentimento angustiante de que a vida é regida pelo acaso.

A festa de aniversário e O porteiro estão entre outros momentos sublimes de sua produção teatral; esta última explora o tema do racismo e é provavelmente sua obra-mestra; estreou nos anos sessenta e foi levada para o cinema e nas duas condições sempre foram recebidas com grande empolgação pelo público. Além das peças citadas aqui, Pinter escreveu outras dezenas sempre à espera de que despertador em quem tenha o contato com elas outra relação com o mundo. 


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