Gil Vicente, o pai do teatro português

Todo o Mundo: Folgo muito d’enganar e mentir nasceu comigo.
Ninguém: Eu sempre verdade digo sem nunca me desviar.
(Berzebu para Dinato)
Berzebu: Ora escreve lá, compadre. Não sejas tu preguiçoso!
Dinato: Quê?
Berzebu: Que Todo o Mundo é mentiroso e Ninguém diz a verdade.
 
(Gil Vicente, Auto da Lusitânia)




 
Não é redundante afirmar que o caráter da literatura, dentre vários outros, é o do desvelo para com as questões que regem a realidade empírica. Mas do que isso é o teatro de Gil Vicente. Ao passo que figura o desvelo, figura também certa “denúncia” da sociedade da qual fazia parte. Uma sociedade predominantemente voltada aos ricos e à marginalização dos pobres. Uma sociedade que até hoje permanece abarcada pela hipocrisia.
 
Mesmo sendo incertas as datas de seu nascimento e morte, é sabido que Gil Vicente viveu durante o reinado de D. João II. Testemunhou a aventura portuguesa das grandes navegações e grandes descobertas ultramarinas. Muitos de seus autos e peças foram encenados na corte de D. Manuel. O autor contava com a proteção da Rainha Velha, Dona Leonor. Aqui, reside a façanha de Gil Vicente: “falar mal” do espaço social, cujo principal responsável pelo caráter da hipocrisia era o palácio real. A forma singular com que Gil Vicente fez isso é o que garantia esse “protecionismo”. A Corte era mesmo analfabeta. Não tinhas os olhos para a essência da arte, apenas para sua superfície.
 
Da leitura de suas obras, além deste caráter predominantemente desvelador, embora não se dê para extrair muitas informações sobre a vida que levou e sobre a educação que recebeu, percebe-se que Gil Vicente foi educado muito provavelmente no seio da cultura humanística.
 
Obra
 
Como se é praxe às obras literárias, muitos têm sido os que tentaram organizar a obra vicentina em fases ou em gêneros. O primeiro a tentar isso foi seu filho num texto Compilaçam de todalas obras de Gil Vicente (existe aqui uma cópia digital da Biblioteca Nacional de Portugal). Porém, adotemos nesse caso a classificação mais comum apresentada pela maioria dos críticos e estudiosos da sua obra. Por esta, depreende-se que a obra vicentina está composta por:
 
- autos pastoris: gênero em que se agrupam algumas obras do autor. As peças aqui geralmente têm caráter religioso e profano;
 
- autos de moralidade: gênero em que Gil celebrizou-se. É dessa leva a trilogia das barcas, conhecidamente pelo Auto da barca do infernoAuto da barca do purgatório e Auto da barca da glória). O caráter desses textos de Gil Vicente é estritamente alegórico, representações dos vícios e virtudes humanas;
 
- farsas: gênero em que predominam tipos populares e desenvolvem-se questões em torno da problemática social. Dentre as farsas vicentinas, destaquem-se a Farsa de Inês Pereira que conta a história de uma jovem que vê no casamento a sua chance de ascensão social e a Farsa do velho da horta, em que o autor ridiculariza a paixão de um velho casado por uma jovem virgem.
 
Todos os textos que compõem o corpo de sua obra partem de situações modelares, comuns ao público que lhe assistia. Ainda que fortemente marcado pelo fosso das ideias religiosas, identificam-se estes textos com os da leva do Humanismo Português – período literário introduzido em Portugal ainda no reinado da Dinastia de Avis (1385–1580).
 
Sem fazer distinção entre as classes sociais, o teatro vicentino celebrizou-se por colocar no centro da cena críticas a ricos e pobres, nobres e plebeus. Em textos como Auto da barca do inferno, o autor denuncia os exploradores do povo em figuras com o fidalgo, o sapateiro e o agiota, além da Igreja — seu, digamos, “alvo” central não apenas neste texto, mas noutros da leva produzidos pelo autor. Via de regra seus textos compõem um painel animado da sociedade portuguesa da época, com o caráter de, ao denunciar a hipocrisia aí reinante, recuperar o que considerava serem as virtudes humanas.
 
Há muito da obra de Gil Vicente em língua espanhola e que ainda não tivemos acesso. Um exemplo, mas esta está nas livrarias desde 2007, é o Auto da sibila Cassandra. Escrito por volta de 1513 em homenagem à rainha D. Leonor, a trama gira em torno das sucessivas recusas da bela sibila Cassandra em casar-se com Salomão, o próprio rei bíblico, isso porque é de sua convicção que o casamento lhe trará desgosto e quer manter-se virgem por acreditar estar destinada a uma graça divina: ser a mãe de Jesus. A edição é publicada pela Cosac Naify com tradução e organização dos professores Orna Levin e Alexandre Carneiro (da Universidade de Campinas). 
 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Boletim Letras 360º #576

O som do rugido da onça, de Micheliny Verunschk

Boletim Letras 360º #575

Boletim Letras 360º #570

Boletim Letras 360º #574

Dalton por Dalton