Jorge Amado

Jorge Amado, 1969.


No primeiro volume de Cadernos de Lanzarote, publicado no Brasil pela Companhia das Letras, em 1997, são constantes as ocasiões em que José Saramago, Prêmio Nobel da Literatura, o primeiro oferecido a um escritor de língua portuguesa, sobre Jorge Amado. Às vezes, fica a impressão de, além do zelo extremo pelo amigo e pela obra, confessado em outras ocasiões, uma certa ponta de inveja (branca) sobre a vida e a rotina do brasileiro. É que Saramago acompanha os momentos mais intensos da carreira de Jorge, aqueles quando sua obra começou a obter o reconhecimento merecido e, claro, como sempre vem nessas ocasiões, sondou-se até a premiação com o galardão levado pelo português em 1998. 

Mas, a vida de Jorge tem outras confluências com a de Saramago; ambos vieram de uma extensa maioria de gente da margem social e, logo, interessados pelos dessa esfera; ambos construíram uma obra única no contexto das produções em língua portuguesa; ambos tiveram posições políticas e visões de mundo bastante aliadas; ambos sofreram as perseguições do poder, sina atribuída a todo aquele que se dedica a ser, além de intelectual, um interventor de discursos e de realidades.

Jorge Amado nasceu em 10 de agosto de 1912, na fazenda de Auricídia, em Ferradas, distrito de Itabuna. O pai havia migrado de Sergipe com o intuito de se tornar um proprietário de plantações de cacau na Bahia. Esse período da infância irá marcar presença em grande parte da sua obra a ser escrita mais tarde; é na terra de todos os santos que Jorge Amado constrói toda sua vida. A infância entre os sítios de cacau e o mar. É nesse contexto que viveu as disputas políticas tão acirradas no interior do Brasil de então: os conluios dos coronéis, a atuação dos jagunços, os crimes encomendados. Terras selvagens, como parecem ser sempre o nordeste de boa parte dos países no mundo. O próprio pai, João Amado Faria, foi vítima de uma tocaia. Foi ainda nesse cenário que o menino grapiúna (como se autodenominou mais tarde) conheceu a vida urbana do interior: as rodas de bebedeira, os cabarés, as rinhas de jogo.

O leitor que já tiver se deparado com algum romance de Jorge provavelmente já terá se familiarizado com essa atmosfera. A região cacaueira, bem como um interior perdido do Brasil está muito bem desenhado em livros como Terras do sem-fim, São Jorge de Ilhéus, Gabriela, cravo e canela e Tocaia Grande. Alguém poderá sequer ter lido alguma dessas obras, mas poderá ter se deparado com uma releitura delas para as novelas na TV; Jorge foi (e é) um dos mais adaptados. Talvez porque os meios sempre souberam do potencial do escritor de arquitetar mundos e dizer aquilo que as grandes novelas televisionadas, geralmente construídas a partir de modelos importados ou de uma realidade muito particular da sociedade brasileira, nunca conseguiram alcançar: a alma do brasileiro em sua essência. 

Jorge Amado, foto de formado.

Mas, de onde veio esse amor de Jorge Amado por contar histórias? Dados de sua biografia dizem que o seu primeiro contato com a leitura (antes de tudo, todo escritor é um voraz leitor) através da mãe, quem o alfabetizou; e eram, pelas condições da família, os jornais o grande campo de formação ou de contato com esse inventor. Depois da parte mais significativa da infância no interior da Bahia, o menino com apenas onze anos foi mandado para Salvador, onde foi estudar no Colégio Antônio Vieira, um internato. É nessa ocasião que, como estratégia de se adaptar a uma vida cheia de regras do que poderíamos descrever com os olhos de hoje, um encarceramento, Jorge é apresentado aos livros: Charles Dickens, Jonathan Swifit, José de Alencar e clássicos da literatura portuguesa, muito em voga em algumas das raras bibliotecas no Brasil. A dedicação à leitura fez do menino um exemplo de autor de boas redações. Conta-se que, o padre Luiz Gonzaga Cabral, quem lhe fez a ponte com os livros, admirou-se com um texto "O mar" e logo predisse que Jorge seria escritor.

Talvez as leituras tenham chegado ao fim e o menino não conseguiu continuar no internato; fugiu e ficou dois meses vagando pelo sertão baiano até retornar para casa do avô paterno em Sergipe. "Recapturado" família, Jorge foi transferido para outro internato, agora, o Ginásio Ipiranga. Assim, meio que à força, chegou a concluir os estudos básicos e foi morar num casarão no Pelourinho em Salvador; essa nova fase da vida também terá lhe marcado muito, o suficiente para tomá-la como ponto de inspiração para obras como Suor. Essa ocasião no Pelô propicia Jorge ao seu primeiro emprego: repórter policial para o jornal Diário da Bahia. Depois passou a escrever para O Imparcial. Foi uma época de intensa participação na vida boêmia de Salvador entre prostitutas, gente da feira, pescadores. 

Com um grupo de amigos, fundou em 1928, a Academia dos Rebeldes cujo interesse era defender "uma arte moderna sem ser modernista" e uma literatura de ênfase social e teor realista, traços que servem hoje para caracterizar o romance de 1930 e, claro, uma das bandeiras de maior defesa do escritor na extensa quantidade de textos que escreveu para a mídia. Ou, e o leitor logo lembrará, a sua própria literatura, toda ela voltada para dizer sobre os lances da ordem social e sempre atenta às questões políticas como implicações necessárias para a arte.

O contato com a vida boêmia de Salvador também aproximou o jovem escritor dos terreiros de candomblé; o contato com essa manifestação religiosa totalmente diversa do modelo a que teve de se submeter na segunda infância e primeira adolescência propiciou-lhe outra visão com o mundo e, sobretudo, com um Brasil censurado pelo grande poder. Foi o candomblé que desenvolveu em Jorge a compreensão do país como nação mestiça e festiva; o país não-totalmente integrado a um modelo europeu que sempre foi para nós, um falsete; o país mais próximo de África e da cultura negra.

Jorge Amado, Zélia Gattai (sua segunda companheira) e Gabriel García Márquez

Todo essa integração com um país tão rico e diverso está na obra jorgiana; obra que é quase infinita e começa com a publicação de uma nova escrita em coautoria com Edison Carneiro e Dias da Costa, Lenita. O folhetim de 1929 foi publicado nas páginas de O jornal e o escritor camuflou-se sob o pseudônimo de Y. Karl. O texto aqui mencionado não foi integrado à sua obra completa porque segundo Jorge era "uma coisa de criança". Se Lenita era coisa de criança, foi ainda muito jovem que ele inicia sua carreira como escritor; fora o jornal que começou aos 14, o primeiro romance, O país do carnaval veio a lume quando tinha só 18 anos. E foi recebido pela crítica já como uma grande obra. Mas Jorge não terá ficado com os elogios; fez o curso de Direito no Rio de Janeiro, onde passou a morar desde então. Um curso obsoleto, mas uma formação necessária para um homem de cultura? Possivelmente. O escritor nunca exerceu a profissão de advogado. 

Um ano depois da estreia literária, escreveu o romance Rui Barbosa n.2, livro que não chegou a publicar por conselho dos amigos que não gostaram da obra por encontrar nela uma cópia do texto de 1931. É quando se debruça na escrita de Cacau, produto de seu contato com o povoado de Itabuna ou do encontro com um modo de vida que o fez retomar aquela infância perdida em algum lugar da memória. A obra foi apresentada como um grande painel acerca dos trabalhadores da região cacaueira e foi o início de um ciclo de textos sobre esse tema. 

Dois romances de sucesso na bibliografia e uma intensa vida entre a gente popular colocou Jorge Amado na posição de uma das figuras mais cobiçadas pelas rodas intelectuais do Rio de Janeiro. É nesse tempo que constrói amizades com figuras como Raul Bopp, José Américo de Almeida, Gilberto Freyre, Carlos Lacerda, José Lins do Rego, Vinicius de Moraes, entre outros. Notem que alguns dos nomes fizeram parte de três grandes movimentos da cultura brasileira entre as décadas de 1920 e 1930: o modernismo, o regionalismo e a Literatura de 1930, este último que o marcou profundamente pelo já citado interesse em tornar público um Brasil profundo. É nessa ocasião que Jorge Amado vai a Maceió, só para conhecer Graciliano Ramos, por exemplo; que é apresentado entre os do grupo por Rachel de Queiroz. E toda essa renovação do pensamento jorgiano irá se refletir em Suor (de 1934), romance que se aventura pela realidade urbana e degrada de Salvador, e Jubiabá (1936), romance protagonizado por Antônio Balduíno, um dos primeiros heróis negros da literatura brasileira; é com esse livro que o escritor alcança o sucesso internacional: o livro foi publicado na França e recebeu crítica positiva de ninguém menos que Albert Camus.

Jorge Amado e Dorival Caymmi, 1977.

Mas, a atuação política de Jorge Amado não se perdeu apenas no interesse de um romance engajado ou ainda na intervenção escrita através dos jornais; o escritor, fortemente engajado nas discussões sobre o socialismo, filiou-se ao Partido Comunista Brasileiro. E, por causa desse gesto, foi acusado de participar de um golpe vermelho no Brasil e preso. Nesse mesmo ano, 1936, publicou Mar morto, obra que inspirou o amigo Dorival Caymmi a compor "É doce morrer no mar". Também havia sido pai pela primeira vez depois de ter casado com Matilde Garcia Rosa, sua primeira companheira. E, fora os acontecimentos da vida íntima, na vida pública, o escritor fez uma viagem longa pelo Brasil, pela América Latina e pelos Estados. Foi nesse extenso percurso que escreveu o seu romance de maior verve política, talvez, Capitães da areia publicado no ano depois de Mar morto e quando foi preso pela segunda vez, agora, pela chegada ao poder da Ditadura Militar de Getúlio Vargas. É nesse período que Jorge vive um dos períodos mais desoladores da sua carreira como escritor e o Brasil escreve um dos instantes mais tristes de sua história: em Salvador, mais de mil exemplares de obras do escritor foram queimados em praça pública pela polícia ditatorial.

Da segunda vez, Jorge Amado ficou um ano na prisão; quando saiu foi viver um tempo com Rubem Braga e entre 1941 e 1942 exilou-se no Uruguai e na Argentina, onde escreveu a biografia de Luis Carlos Prestes, O cavaleiro da esperança, publicada primeiro em espanhol e censurada, de imediato no Brasil; a obra, aliás, foi o estopim para a terceira prisão. Desse vez, condenado a ficar em casa, na Bahia; nesse período colaborou clandestinamente com uma coluna para o jornal O Imparcial e escreveu Terras do sem-fim, livro que só foi publicado seis anos depois dada às proibições do regime. 

Quando separou-se de Matilde, em 1944, Jorge logo conheceu, no ano seguinte, Zélia Gattai, também escritora e com quem viveu o resto da vida; no mesmo ano elegeu-se deputado federal e construiu e aprovou algumas propostas, como a liberdade de culto religioso. O mandato não chegou a ser cumprido porque teve os direitos cassados e o partido foi colocado na clandestinidade. É quando sai do Brasil e vai para a Europa num exílio voluntário. Morou em Paris até 1950, onde conviveu como figuras como Jean Paul-Sartre, Pablo Picasso e, o governo francês acabou por expulsá-lo por país, novamente por motivos políticos. E Jorge vai viver na Tchecoslováquia. É quando conhece a então União Soviética, China e Mongólia; e quando escreve os livros mais engajados como a trilogia Os subterrâneos da liberdade 

No retorno ao Brasil e já depois de abandonar o partido Jorge Amado continuou a escrever com extremo afinco: veio A morte e a morte de Quincas Berro D'água (publicado como folhetim na revista Senhor e depois incluído com o título O capitão-de-longo-curso no volume Os velhos marinheiros, em 1961); Dona Flor e seus dois maridos (1966), Tenda dos milagres (1969), Tereza Batista cansada de guerra (1972) e Tieta do Agreste (1977), fase de sua obra que ficou conhecida pela criação dos tipos femininos sensuais e que ganhou as telas nas décadas seguintes em filmes e novas e documentários. Terá sido um dos períodos mais ricos de sua vida: em todos os sentidos. Os direitos de filmagem de Gabriela, por exemplo, foi o suficiente para a construção de seu famoso reduto, hoje museu, A Casa do Rio Vermelho, onde recebeu artistas, amigos e intelectuais de toda parte do mundo. 

No novo reduto escreveu O menino grapiúna, um retorno às suas memórias de infância, Tocaia grande e O sumiço da santa. Em 1987, cria a Fundação Casa Jorge Amado. E, no início dos anos 1990, o escritor inicia a escrita de Bóris, o vermelho, livro que não chegou a concluir e redigiu as notas para a extensa obra memorialística Navegação da cabotagem que chegou a ver publicada no aniversário de 80 anos. Escreveu ainda A descoberta da América pelos turcos, uma encomenda recebida da Itália por marcar os quinhentos anos de descobrimento da América. Em 1995, recebeu o Prêmio Camões e, foi data a largada para a grande leva de homenagens que recebeu mundo afora. Estava com 89 anos quando morreu.

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