Escrever não é bicho de sete cabeças, mas assusta

Por Pedro Fernandes



Escrever não é outra tentativa de destruição mas antes a tentativa de reconstruir tudo pelo lado de dentro, medindo e pesando todas as engrenagens, as rodas dentadas, aferindo os eixos milimetricamente, examinando o oscilar silencioso das molas e a vibração rítmica das moléculas no interior dos aços.

José Saramago, Manual de pintura e caligrafia


Todo texto é um desafio imposto para quem lê, mas mais ainda para quem se aventure na escrita dele. Até hoje, depois de ter lido O prazer do texto, de Roland Barthes, não sei especificar se realmente é prazer o que sinto no ato de escrever e se o prazer barthesiano realmente existe ou não. Talvez esteja aí sua natureza de prazer - a incapacidade de especificidade daquilo que é da ordem do sentimento. 

O projeto de minha dissertação foi escrito ainda em meados do segundo semestre de 2008; foi gestado desde início desse ano. Depois de submetido a um exame de seleção na UFRN, que foi o pior trauma que eu, reles mortal, já vivi, dadas as acusações que me foram impostas e as quais tive de aceitar sem querer querendo e sobre as quais não convém citar aqui, tive de reescrevê-lo e agora sob o drama de ajustar minha escrita a esta coisa que inventaram chamada Linha de pesquisa e para qual eu não tinha tanta noção como a que eu achava que tinha quando da seleção na UFRN. Foi a insistência de uns poucos amigos o que me deu impulso para olhar minha repulsa e conseguir extrair dela algo favorável a mim - arma para outro muro que se erguia em minha frente, o de mais outra seleção de mestrado. Nesta, as etapas foram vencidas uma a uma como se não dependesse umas das outras. E o projeto, agora um ano quase, de escrita e reescrita, foi aprovado.

Eis que no rol das disciplinas a serem cursadas no mestrado me vem novamente a metodologia - disciplina criada para fabricação de uma escrita acadêmica, engessada, que a academia ainda se orgulha de chamar de escrita científica. E foi revendo o meu projeto na tal metodologia que vi: o que eu tinha escrito não se aproveitava muita coisa e lá tive de, pela enésima vez, reescrevê-lo. Agora respira aqui na minha frente e se achava que não me serve tanto, enganava. Como me serve! É como um cabresto que puxa toda vez que estou querendo devanear.

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O fato é que, ao escrever, não pode se deixar levar pois certas linhas incômodas, porque o ato de escrita obedece a regras e rituais próprios; é ela que nos possui numa condição de violência sobre nosso corpo e ela que nos guia no correr de seu processo; é um funcionamento muscular que se dá no ato em si de escrita. Tenho-a como uma encarnação mítica de Lilith; nos suga os laivos da existência porque nos obriga a deixar de lado tudo para estar no seu encalce. E Clarice Lispector estava certa quando dizia que morria ao fim de escrever cada romance. Estarei morto depois desses rituais que me consomem horas de maturação.

No rol dos rituais que a escrita nos impõe todos tem o seu próprio. Há quem escreva somente pela manhã, ou pela tarde, ou pela noite. Isabel Allende só consegue escrever com uma vela acesa. Não acendo velas, mas sou adepto de muitos. Mas um deles consiste em escrever sob pressão - agora, vá entender, uma pressão descansada. Digo isso, porque tenho de ter prazos fixos, não pelos outros, mas por mim mesmo, para que eu escreva. Há um sentido que nasce não sei onde até que chega a hora em que me sento ao computador e acontece.

Escrever é, para mim, um acontecimento, que me exige doses homeopáticas de sacrifícios e sinto que tais sacrifícios vão levando consigo nacos da minha existência física e mental. Quando estou escrevendo padeço de um sentimento que me comprime, me angustia, me deixa eletrizado, me põe em suspenso do mundo em que estou. Noutras palavras, repito o clichê, sofro muito quando escrevo. Tenho necessidade de está com os meus livros, tenho necessidade da bagunça generalizada,  tenho necessidade de falar e gesticular sozinho, tenho necessidade de ouvir música, de preferência um metal, tenho necessidade de andar. Andar me limpa o organismo dessa angústia que cerceia.

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Voltando ao projeto de pesquisa, saiba o que eu soube dois anos depois, ele é meu cabresto, mas não existe e por isso nunca vai está pronto; muita coisa nele só será possível de se entender quando, a escrita daquilo que você propôs começar. A escrita depois do que você imagina no projeto é a que lhe projeta para a escrita do projeto. Complicado. Movimento estranho. Mas é que a escrita, como já disse, tem seus meios próprios de se regular. Por-lhe mais regulagens só vem por-lhe um entrave para que não aconteça.

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