O ano da morte de Ricardo Reis, de José Saramago

Por Pedro Fernandes



O ano de 1936 parece ter sido um daqueles anos em que a humanidade experimenta quase que todas as dimensões de suas extremidades históricas - instaura-se e expande-se na Europa e ao redor do mundo um modelo de governo opressor baseado no levante dos nacionalismos, em Portugal traduzido com a ascensão de Salazar ao poder; gesta-se, mal saídos de um grande conflito, a Segunda Guerra Mundial, a Frente Popular francesa e a Guerra Civil em Espanha... Já para o fim do ano anterior morre Fernando Pessoa. É com esse painel histórico de turbulências, onde tudo parece está por vir a tona a um só tempo e com esse desfecho trágico da morte do poeta-maior, que volta a Portugal, depois de uma longa estadia pelo Brasil, um auto-exílio, na verdade, o heterônimo Ricardo Reis.

O romance toma proveito de ser Ricardo Reis um dos heterônimos daquela tríade mais bem planejada por Fernando Pessoa que ainda não morrera e escala seus últimos dias como um retornado. Tomando outro elemento, este agora como roteiro para composição do romance, o dito de Reis Sábio é o que se contenta com o espetáculo do mundo, Saramago instaura pela via contrária dessa máxima, que há determinados rumos da vida que são impulsionados pelas engrenagens supostamente externas a nossa existência e por vezes nos obrigam - consciente ou não, na maioria das vezes é inconsciente mesmo - a tomar outros rumos. Mais que essa impotência latente na personagem moldada nesse romance, aquilo que mais me chamou atenção aqui, foi algo que já notara sobretudo em Memorial do convento e, primeiramente em O evangelho segundo Jesus Cristo: a capacidade de 'reconstituição' fotográfica que o romancista emprega para composição da sua narrativa.

E não finda aí, o já conhecido estilo de narrar saramaguiano dá uma fluidez ao texto - que uma vez lida a primeira linha difícil é parar antes da última. Sem falar da leva de perfis temáticos com que Saramago modelou toda a sua produção literária, aqui, em O ano da morte de Ricardo Reis, estão manifestados; o brilho do tom irônico e sarcástico com que são armadas tais questões também é algo observável em alto relevo neste romance. E tudo vem perfilado por extensos, ricos e labirínticos debates entre Ricardo Reis e seu criador-fantasma, Fernando Pessoa, que segue uma ordem de nove meses - conforme os nove meses que gastamos para vir ao mundo - antes de partir para outra dimensão e constantemente vem ter com sua criatura. Enfim, reencontrar-me com este romance, é reencontrar-me com Saramago, em sua completude. Pulsa neste romance todos os elementos que o fizeram o maior romancista do entre-séculos XX-XXI.


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