A poesia como arma

Por Pedro Fernandes

Guernica. Painel pintado por Pablo Picasso em 1937 para a Exposição Internacional de Paris. Símbolo da arte-denúncia, já que a tela é tratada como representativa dos bombardeios sofridos pela cidade espanhola de Guernica em abril daquele ano. Para o seu autor a pintura não existe para decorar casas, mas é um instrumento de guerra ofensivo e defensivo contra o inimigo.

Insistentemente o primeiro nome que nos vem à cabeça quando se lê o título dado a esta post é o de Maiakóvski, assim como o primeiro nome que vem à cabeça para ilustrar um texto com esse título é o de Pablo Picasso e o seu famoso painel Guernica. Por isso dele lembramos, por isso a imagem acima. O poeta soviético talvez não tivesse a preocupação por elaborar uma estética fechada numa forma da arte pela arte, mas entendia que a arte deve comparecer ao seu tempo como se uma espécie ferramenta junto à revolução social.

(É necessário que se preserve aqui todos os sentidos para o termo revolução e, claro, para o papel que o poeta entendia ter diante da sua sociedade. As circunstâncias vividas por Maiakóvski são gestadas no âmbito do peso burocrático de um dos períodos mais tirânicos do regime socialista na antiga União Soviética).

Mas, haveremos de convir que a figura Maiakóvski incomodava a muitos, aos conservadores, aos acadêmicos, aos burgueses... O poeta era arma de vários canos a disparar contra quem o inconformasse. Talvez tenha sido essa revolução rebelde aquilo que tenha salvo sua poesia do mero panfletismo.  

Ao modo maiakosvskiano também outros artistas, sobretudo poetas, categoria que nos interessa nesta post, também estiveram na brigada de frente a determinadas situações sociais. Aos dessa frente reza o etendimento de que a arte só faz sentido e só se sustenta enquanto tal quando está engajada à sua atualidade, que seja capaz de servir de sinal de alerta ou soco na cara incólume pelo torpor da realidade.

Evidente que esse engajamento não reduz a arte ao panfletismo (ou pelo menos não deve), mas para isso o seu autor cobrará também de si o modo de seu trabalho estar no futuro. Agora, não sou ingênuo de acreditar numa arte despida de todo e qualquer mote social.

Ainda que ela seja condensada no epicentro do hermetismo da arte pela arte, suponho que o simples uso da palavra a deixa marcada necessariamente pelo veio social, se tomo como verdade, aquela assertiva proposta  de que não há signo que não esteja contaminado pelo pó do embate no campo das forças sociais. 

Tudo isso surge porque, por estes dias, o escritor Günter Grass publicou um poema-denúncia baseado no princípio de que Israel hoje representa um perigo à paz mundial. A fama do poema se construiu feito rastilho de pólvora e, desde que foi publicado, no dia 2 de abril no jornal alemão Süddeutschen Zeitung, já mereceu publicação e comentários ao redor do mundo.

O poema, que foi traduzido para o português com o título "Aquilo que tem de ser dito", vem carregado de um forte tom inconformista, mas não se reduz a isso: opera como um instrumento particular de denúncia, mas sem ataques nominais.

Várias versões do poema já foram dadas em português, mas opto aqui por uma publicada no blog do Ralf R. do Brasilianas.org. A tradução feita direta do alemão é a que mais me agradou poeticamente aos ouvidos:

AQUILO QUE TEM QUE SER DITO

Günter Grass, 84 anos, Prêmio Nobel de Literatura, em 04/04/2012.
1º ensaio de tradução por Ralf Rickli, 07/05/2012


Por que tenho me calado, me calado por tempo demais
sobre o que é patente e já vem sendo ensaiado
em simulações ao fim das quais nós, como sobreviventes,
somos no máximo umas notas de rodapé?

É o alegado direito de ataque preventivo
que poderia extinguir aquele povo
subjugado por um fanfarrão
e empurrado ao júbilo organizado (o iraniano),
porque se suspeita da construção
de uma bomba atômica em seus domínios.

Por que, no entanto, eu me proíbo
de chamar pelo nome aquele outro país
no qual se dispõe há anos - ainda que em segredo -
de um potencial nuclear crescente
e sem controle, pois não se dá acesso
a nenhuma inspeção?

A generalizada omissão desse fato,
à qual se subordina o meu calar,
eu a sinto como incriminadora mentira
e coerção com promessa de punição:
assim que desobedecida,
o veredito “antissemitismo” está em toda parte.

Agora, porém, porque o meu país,
- que por seus crimes próprios,
que estão além de comparação,
é volta e meia chamando às falas ­-
deve entregar a Israel
(por razões puramente comerciais,
embora declarado com lábios ligeiros
que se trata de reparação)
mais um submarino, cuja especialidade
é ser capaz de direcionar ogivas
de destruição total a um lugar
onde não foi comprovada a existência
de uma bomba atômica sequer, e no entanto
com o fim de atemorizar se pretende
que existam provas conclusivas -
por isso agora eu vou dizer
o que precisa ser dito.

Por que, no entanto, até agora eu me calei?
Porque eu pensava que a minha origem,
marcada com mácula nunca extinguível,
proibia declarar tais fatos como verdadeiros
em relação ao país Israel, com o qual tenho laços
e quero continuar a ter.

Por que é que eu digo somente agora,
envelhecido e com o fim da minha tinta,
que o poder atômico de Israel põe em risco
a paz mundial, já frágil sem isso?
Porque precisa ser dito
o que amanhã pode ser muito tarde;
e também porque nós
- como alemães já o suficiente incriminados -
podemos vir a ser fornecedores para um crime previsível,
com o que nenhuma das usuais desculpas
teria o poder de redimir
nossa participação na culpa.

E admito: não mais me calo
porque estou farto da hipocrisia do Ocidente,
e tenho esperança que com isso
possam se libertar muitos desse calar-se
e conclamar o causador do reconhecível perigo
a abrir mão de violência, e igualmente
a que seja permitido pelos governos dos dois países
um controle permanente e desimpedido
do potencial atômico israelense
e das instalações atômicas iranianas
por uma instância internacional.

Somente assim será possível ajudar
a todos, israelenses e palestinos,
e mais: a todos os seres humanos
que nessa região ocupada pelo delírio
vivem apertados em inimizade, e afinal
a nós mesmos também.



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