Um dicionário de escritoras portuguesas

Por Pedro Fernandes

já que não podemos falar-lhes das vidas, por tantas serem, ao menos deixemos os nomes escritos
José Saramago, Memorial do convento



Não é necessário, dirão uns, partir da premissa-clichê de quando se fala das questões femininas (se é que há questões que se possam assim rotular-se) dizer que à mulher tem sido impetrada uma série de estratégias – físicas e simbólicas – para seu silenciamento. Mas é necessário, sim, só mais uma vez – mas, se necessário for, infinitas vezes – partir dessa premissa para entender a valia de determinados gestos e não somente, mas para compreender, sobretudo, o sentido de determinados gestos.

O gesto da palavra – artefato para re-criação do real – é o que aqui devemos retomar. Da premissa de opressão, também nos é claro o suficiente que a mulher, desde a descoberta do gesto da palavra, já nasceu condenada à afasia, restando-lhe tão somente os secos gritos das dores do parto, sendo este fim uma das cláusulas verbais impostas pelo criador pelo ato inaugural de desobediência da fêmea à voz do macho. Mas, isso foi segundo, porque antes, a mulher foi a um estágio ainda mais degradante: decretada demônio, ser das trevas, feita de restos, espírito alado dos seres noturnos, signo de recusa. Da voz – o berço da palavra – restou-lhes apenas o exílio do verbo num tempo que foi – e em alguns casos ainda é – de censura. De sisura. A pele da palavra, por longa data, deveu ser costurada pelo poder do falo. A palavra foi objeto de homens. Necessário será que a mulher – já transgressora – ressignifique a ordem verbal – isto é, instaure outro veio de transgressão – e produza uma materialidade verbal forte o suficiente para causar rasuras no discurso do macho e pelas frestas da rasura possa interpor um espaço que lhe dê movência.

A ressignificação do gesto da palavra oferece inclusive a possibilidade de inscrição do nome – artefato que está muito além do ato/função de nomear – nas correntezas da História. Sim, porque somos, sobretudo, sujeitos históricos. Sim, porque somos, antes de sujeitos históricos, sobretudo, sujeitos de linguagem. Toda a leva de estereótipos que levaram a formação de premissas-clichê como a que partilhamos nas palavras iniciais deste texto são moldadas na gestualidade da palavra, objeto de materialização da linguagem, objeto de materialização dos sujeitos na História.

A inscrição do nome – prática linguageira – nas correntezas da História é um gesto pelo qual podemos espreitar a modalização das subjetividades. E aí reside o sentido para-além do ato/função de nomear. Isto é, o processo discursivo (que é do que estamos tratando aqui) ao mesmo tempo em que transforma individualidades em sujeitos, já que é na e pela linguagem, artefato em rotação, que o indivíduo é constituído, permite-nos entrever tais transformações, tais movimentações e remodelações subjetivas. É por isso que o silenciamento impetrado às mulheres, o fator gerativo da ausência da palavra feminina, é impossibilidade de inscrição do nome na correnteza da História, é também sua impossibilidade de constituição subjetiva. Somente quando as mulheres estiverem de absoluta posse da palavra é que poderão modelar espaços cujo sentido possa ser apreciado como um verdadeiro espaço pelo qual se é possível olhar e olharmos sobre si próprias.

Tudo isso para dizer que o gesto desse Dicionário de escritoras portuguesas obedece, no mínimo, uma dupla via de importância para o cenário da crítica feminina nos estudos literários: primeiro, ele se apresenta como um painel que, antes de uma simples arrumação de nomes de mulheres, quer dá contas do sentido desses nomes e as situações histórico-bibliográficas que, ou foram encobertos pela pele falocêntrica do masculino e deixadas ao rés da história, ou foram colocadas, de um modo não menos machista, como ameaçadoras a ordem e aos territórios de domínio do macho; segundo, é o fato dessa empreitada ser processada pela mão de três mulheres – tais quais aquelas três outras Marias, Maria Teresa Horta, Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa (Novas cartas portuguesas), que já na década de 1970, num Portugal costurado de leste a oeste por uma cortina de ferro, firmaram, de vez, uma ruptura na literatura, ao retratar uma nova consciência sobre a mulher e a sua identidade.

A grandiosidade de um texto que prima pela reestruturação não do curso da historiografia e do cânone literário, mas do próprio curso da história ao inscrever nela uma leva de outros nomes – muitos propositalmente esquecidos – parece ser, o valor maior para o dicionário de Conceição Flores, Constância Lima Duarte e Zenóbia Collares, as três mulheres em questão, autoras desse projeto que teve início – conforme consta o prefácio do livro – ainda em 1985. Esse trabalho, logo, cumpre uma função superior à de rememoração que a de reparação de uma episteme da escrita feminina.

E tal recuperação que não é só de nomes, mas também das linhas biográficas que os definem enquanto existência verbal é um modo outro de dizer o silêncio a que foram reduzidas muitas dessas mulheres ou ainda um reconhecimento que muitas não tiveram em tempo hábil. Outra: ao apresentar os títulos que estes nomes inseriram ao longo de suas vidas – alguns singulares, mas não menos plural que os plurais, e outros plurais, mas não menos singular que os singulares –, títulos que, sem dúvidas, margeiam ou mesmo compõem a argamassa dos grandes pilares da biblioteca babélica da humanidade, o trabalho de Conceição Flores et al estende seus fios nos confins dessa torre verbal e se sustenta na capacidade – que é a de toda escrita – de impedir aos que não pertencem ao mundo das letras, mas também a estes, a possibilidade de esquecerem-se dos nomes que constituem a história da humanidade e, por conseguinte, impedir o esquecimento do próprio homem.

Não que antes o trabalho – muito dele, silencioso, sob sombras masculinas – não tenha sido suficiente para que esses nomes hoje possam emergir na contagem de palavras num dicionário. Mas o gesto de reinscrição desses nomes se abre como uma possibilidade de reconstrução de subjetividades abaladas e de uma consciência histórica acerca da mulher – e isso tem, sim, um sentido muito forte para uma cultura como a portuguesa, que incorporou ao extremo esse gênio de dominação imperialista do macho.

O gesto de nomear e dizer dos nomes constitui aqui numa reapropriação devida da palavra a fim de legitimar a integridade feminina na linhagem da tal competência masculina: a competência de criação do universo – entendendo que o gesto de nomear foi, desde o gênesis negado à mulher e dado ao homem e, de então, reproduzido infinitamente pelas castas humanas posteriores. O gesto de nomear, aqui nesse dicionário, é de posição da fêmea escrevendo-se fêmea.

Pela leva de nomes e históricos elencados pelas autoras é possível apreender os movimentos metamórficos para o fato de formação da própria identidade feminina portuguesa – identidade resiliente. É pela ordem dos nomes que vemos uma ordem fêmea-persistente à ordem dos machos-norma. Mais que resiliência, devíamos recuperar, logo, o vocábulo transgressão. As mulheres aí apresentadas cumprem – cada qual a seu modo – uma desestabilização do sempre e uma transgressão criadora: são responsáveis pela instauração de um novo discurso que se distingue dos discursos em voga, gregários e paralisados em grande parte. São eles os outros retratos, aqueles que ficam à sombra dos retratos oficiais – para recuperar um termo-metáfora da Virginia Woolf; retratos que põem um para-além da ordem discursiva.

São estas mulheres parte das que compõem uma nova representação do mundo e dos sujeitos. Seu gesto de transgressão significa ruptura com o ciclo da obviedade e a busca, à cata, de um mundo-em-si, um mundo-mesmo-outro, um real re-habitado e reabilitado, problematizado, visível em sua distonância. E dito isso, lembramos logo de nomes como Teresa Margarida da Silva e Orta (sobre a qual uma das autoras, a Conceição Flores, escreveu outro belíssimo trabalho intitulado As aventuras de Teresa Margarida Silva e Orta em terras de Brasil e Portugal), Filipa de Almada, Mariana Alcoforado, Natália Correia, Florbela Espanca, Teolinda Gersão, Maria Gabriela Llansol, Eduarda Dionísio, Wanda Ramos, Luísa Costa Gomes, Olga Gonçalves, Lídia Jorge, Helena Marques, Clara Pinto Correia, Maria Ondina Braga Velho Costa, Agustina Bessa-Luís, Ana Hatherly etc. – todos nomes que nos fazem crer que a feminilidade consiste num traço de vigilante continuidade vital capaz de reintroduzir novas forças num plano assinalado pela submissão. 

Por fim, devemos dizer do sentido que nos parece ser o sentido maior desse gesto de nomear e dizer dos nomes. O sentido é o de que esse dicionário seja a materialização de uma fala, tornando os nomes aí inscritos em sujeitos de discurso e, consequentemente, da história. Não é, entretanto, apenas uma rememoração do já vivido ou do esquecido, mas também a revalidação de determinadas presenças. E é, sobretudo, o preenchimento do que esteve vazio e sem lugar ou o reposicionamento do feminino na ordem simbólica dos discursos sobre as mulheres – isto é, ao reintroduzir novas forças ou revalidar outras, as autoras acabam por se inserir como sujeitos no processo de recomposição epistemológica.

O que vai configurar um trabalho desses não é apenas a formação de uma taxonomia feminina. Agregado ao ato de catalogação, inventário e enumeração, está o procedimento de fundação de um espaço verbal próprio reinventando, reconfigurando a uma visibilidade da voz e da palavra frente à ordem do silêncio a que a mulher esteve condenada. Através desse trabalho renova-se a certeza do caráter transformador da palavra e da voz feminina como sustentação do mundo literário e extra-literário. Promover o encontro de tão diferenciadas vozes em torno da mesma mesa – sem fechá-las num mundo próprio – é como reunir materialidades dispersas e é entender que essas materialidades e essas vozes juntas compõem lugares subjetivos únicos e singulares na genealogia dos autores de literatura portuguesa promovendo um desencaixe do dito pelo interdito, do que foi pelo que poderia ter sido, da lacuna pelo preenchimento. É reconhecer que a história – toda ela construída por um olhar masculino – é o lugar dos esquecimentos, nesse caso de esquecimentos imperdoáveis. Felizmente, o registro escrito; a reabilitação do verbo; a recusa do silêncio para locar nomes que na história fizeram do silêncio recusa.


* Este texto foi escrito entre 2009 e 2010 para uma revista acadêmica. Dois anos depois ou mais, nunca recebi contato para dar satisfação de publicação ou não. Fica, agora, disponibilizado on-line.



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