A solidão imortal do vampiro (I)

Por Márcio de Lima Dantas

Cena Nosferatu, de F. W. Murnau (1922).


Lua: ergue-se ao crepúsculo   
       
O mito do vampiro encontrou no final do séc. XX e início do XXI um substrato socioantropológico que o fez não apenas se revigorar, mas, sobretudo, engendrar novos arranjos e adquirir uma feição com contornos extremamente marcados, integrando, em definitivo, o conjunto dos principais mitos que constelam o patrimônio imagético do ocidente. Com efeito, o onirismo do mito do vampiro foi bastante tonificado nos últimos cem anos. Revigorado e modalizado de diversas maneiras e em vários meios, permaneceu preso à aura simbólica da lenda codificada na Transilvânia (em torno do séc. XV) e recriada literariamente na obra de Bram Stocker (séc. XIX). Sem dúvida, o vampiro e suas imagens encontram-se impressos na geografia física e inconsciente, fincando-se como um dos mais populares dentre a inumerável plêiade de seres imaginários que “atuam” nas mentes de muitos povos.

Assim sendo, a lenda do vampiro pode ser vista como a fábula dos nossos dias, narrativa capaz de ilustrar com propriedade a solidão em que todos, de alguma maneira ou de outra, se encontram envolvidos. Tendo percorrido a geografia e uma linha do tempo – aqui nos interessa com mais vagar o ocidente –, pensamos que toda sociedade demanda o mito necessário numa esfera do espaço e em determinado tempo por razões nem sempre aparentes ou explicáveis, mas que, inquirindo com um olhar mais detalhista, conseguiremos apreender a gramática de como funciona o entorno do imaginário de determinado mito.

Dos muitos filmes tendo como referência o romance Drácula de Bram Stocker (1897), evocamos Nosferatu (1922), com Max Schereck, e Horror de Drácula, com Chistopher Lee (1958).

Destarte, nos últimos anos, os filmes com a temática do vampiro foram sobejamente apresentados, alguns obtendo sucesso de bilheteria. Muitos logo se tornaram clássicos. Se cada época elege seus mitos preferenciais, com certeza o vampiro integra a constelação de uma metáfora que salta aos olhos: a personificação do individualismo, da incapacidade de aprofundar relacionamentos afetivos, a errância e vagabundagem, mormente nas grandes cidades, enfim, o excesso de narcisismo que parece ter vindo para ficar, como um dos traços mais marcantes das últimas décadas, inscrevendo-se como algo irreversível da condição humana.

Quem sabe não seja repetitivo nos determos mais um pouco sobre o que aludimos há pouco. Vejamos. Acho que era bom se perguntar por que justo no século XX é que a legenda de um ser solitário, noturno e condenado a vagar pela eternidade, alimentando-se do sangue alheio, floresceu com tanta intensidade e se expressou em diversas manifestações artísticas, não apenas na literatura de entretenimento, mas, também, na arte do século XX por excelência: o cinema de caráter artístico ou de puro ludismo. Pensamos que o equivalente social, o empírico dessa representação, encontra-se na maneira como os homens estabeleceram e vivenciam seus relacionamentos interpessoais nas últimas décadas.

A errância dos solitários nas grandes metrópoles, os bares cheios de pessoas que saem de casa sozinhas em busca de companhia, a grande quantidade de gente sem nenhum projeto de vida, o grande número de descasados que não mais conseguem refazer suas vidas afetivas e saltam de galho em galho, os jovens zanzando aleatoriamente nos grandes centros comerciais, o uso generalizado das chamadas drogas ilícitas, enfim, tudo o que se enquadra num grande fenômeno de individualização das sociedades, constatado nos últimos dois séculos findos.

Podemos dizer que é da própria natureza do vampiro ser desassossegado, alguns não conseguindo aceitar sua ontológica solidão de errante ad infinitum. Como era de se esperar, a eternidade na qual o vampiro chanta sua existência produzirá um incomensurável tédio no morto-vivo, que precisa sugar o sangue alheio para poder sobreviver, ou seja, é o parasita por excelência.

Um vampiro ou outro, por razões temperamentais, pode até ser contido, mas quando a noite vem com sua força/ (o corpo quer e pede), ele de novo sai (citando Konstantinos Kafávis) em busca de novas vítimas para saciar não apenas sua sede de sangue, mas também seu desejo de incorporar novos mortos-vivos às hostes de seres notívagos e insaciáveis. Nas suas errantes saídas pelas noites, o vampiro acaba por se defrontar com pares da mesma confraria, momentos nos quais ocorre um reconhecimento mútuo dos que já são. Com relação aos que têm uma tendência, há um tácito trocar de olhos denunciadores de uma esquisita atração e de uma curiosidade maior ainda. É aqui que entra o lado calculista e malicioso: sem nenhum escrúpulo, parte para, no contato com esse outro que faísca a chispa da curiosidade, desmoralizá-lo, deixando-o contaminado, o corpo e a alma, uma vez que fora destronado de sua antiga ancha condição de normal, pois o que se pensava intacto, de agora por diante, foi desconstruído. Quanto mais danados incorporar à “congregação”, melhor para essa alma atormentada, pois somente assim não se sentirá tão só. Mil vezes mal acompanhado do que só. Quem é nunca quer só ser.

Não custa lembrar que o vampiro é um bicho noturno. Pois muito bem, a capacidade de mimetizar-se ou travestir-se é uma das suas principais prerrogativas. A noite é sua comarca, caminhando com desenvoltura, fazendo rebrilhar um olho perscrutador e capaz de enxergar no escuro. À noite todos os gatos não são pardos? Desse jeito.

Contudo, o mito do vampiro sofreu várias transformações, adaptando-se ao vocabulário presente no mundo contemporâneo. Antes havia uma série de prescrições não apenas para identificar um vampiro, mas para combatê-lo. Ao se submeter à linguagem vigente nos tempos modernos, o vampiro adquiriu um novo vigor, fortalecendo-se e melhor expressando os discursos que se encontram velados na personagem e nos signos que o entornam, e que ficou associado ao conhecido como “terror”.

Enfim, o mito do vampiro parece ser muito mais uma metáfora da condição humana de solidão e abandono em que se encontram todos, como dissemos faz pouco.

***

Márcio de Lima Dantas é Professor Adjunto II da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. É autor de xerófilo e Rol da feira, encartado nas edições 3 e 5 do caderno-revista 7faces, respectivamente; no 5º número publicou também uma edição de artes plásticas caderno de desenhos. Além disso, escreveu os seguintes livros de poesia Metáfrase (1999), O sétimo livro de elegias (2006), Para sair do dia (2006) e os de ensaio Mestiçagem e ensaísmo em João Cabral de Melo Neto (2005) e Imaginário e poesia em Orides Fontela (2011). Também traduziu para o francês, com o prof. Emmanuel Jaffelin, quatro livros da poeta Orides Fontela, organizados em dois tomos: Rosace. Paris: L’Harmattan, 1999 (Transposição e Helianto) e Trèfle: L’Harmattan, 1998 (Alba e Rosácea). Ganhou o prêmio Othoniel Menezes (2006), com o livro Para sair do dia, outorgado pela Capitania das Artes; foi contemplado com o I Prêmio Literário Canon de Poesia 2008.


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