O mundo ficcional de J. D. Salinger



Muito temos falado sobre J. D. Salinger (ver links no fim deste texto) nos últimos meses dado o alvoroço iniciado com a confirmação de dois trabalhos que trouxeram à tona novas margens para composição da figura reclusa do escritor. Mas, afinal, quem foi o autor, além desse enigma de recluso? O post de hoje visa ser um adendo à vida e à obra do romancista, cujo sucesso de O apanhador no campo de centeio mudou em definitivo o rumo de sua vida e se tornou uma obra signo da atmosfera de uma época da história estadunidense.

O autor morreu em 2010 e deixou livros tidos como materializações de uma aura de perfeição e mistério que pouquíssimos autores modernos terão conseguido. Na opinião de Andrés Hax, somente Rimbaud estará acima do estadunidense. Não deixou vasta obra (embora, as descobertas recentes tenham dado mostras de uma leva de inéditos deixados com o comando de serem editados a partir de 2015): O apanhador no campo de centeio, de 1951; uma antologia de contos, Nove estórias, de 1953; Franny e Zooey, de 1961; e uma coletânea de contos publicados na revista The New Yorker em 1963, quando encerrou sua carreira de escritor e se isolou completamente da vida literária estadunidense.

Salinger teve uma vida criativa relativamente curta: seu primeiro livro, quando publicado, tinha 32 anos enquanto o último tinha apenas 44; verificação que pode mudar de figura se constatado os inéditos recentemente anunciados. Muita gente próxima ao escritor diz que durante a reclusão ele não teria parado de escrever um só dia.

Sobre a aura de perfeição, diz Hax, Salinger teve um controle quase maníaco sobre sua obra: “Não permitiu adaptações ao cinema e ao teatro (salvo uma exceção no início de sua carreira, com um conto, pelo qual lamentou profundamente). Exerceu controle até sobre o desenho das etapas de reedição de seus livros – que nunca deixaram de vender-se em quantidades massivas –, elegendo uma apresentação simples, sem imagens, nem fotos do autor, nem biografia.” Sobre a quantidade de vendas, nos Estados Unidos, pelo menos, milhões de adolescentes levaram os livros de Salinger entre os objetos de culto, talismãs, obra contra o conformismo gris do mundo adulto – diz Hax.

Uma das raras fotografias feitas por um paparazzi de Salinger em sua propriedade em New Hampsire. Setembro de 1961.

Sobre a vida de Salinger, até bem pouco tempo, a única coisa que se sabia era que havia abandonado sua Manhattan em princípios dos anos cinquenta para ir viver num bosque em New Hampsire, a cultivar sua horta de produtos orgânicos, estudar as religiões orientais e escrever (talvez) para si mesmo. Para Hax, o escritor antecipou em uma década o que seria mais tarde o movimento Hippie.

A obra ou o motivo de vida do escritor terão servido de mote para algumas das obscuridades da sua vida: em 8 de dezembro de 1980, John Lennon foi assassinado em Manhattan por Mark David Chapman de 25 anos que havia viajado do Hawaii para cumprir sua missão macabra: dar quatro tiros mortais e depois sentar-se diante do edifício Dakota, a leste do Central Park, onde viviam Lennon, a companheira Yoko Ono e seu primeiro filho Sean, para ler O apanhador no campo de centeio. Depois, em menos de quatro meses depois, um atentado contra a vida do presidente Ronald Regan; o culpado, John Hinkley Jr., reconheceu que uma de suas motivações foi chamar a atenção da atriz Jodie Foster, mas também como Chapman, citava O apanhador no campo de centeio entre suas principais influências. Foi dito, mais tarde, que Lee Harvey Oswald, o suposto assassino de John Kennedy também era um leitor fanático do romance de Salinger.

Para Hax, além de mistério e perfeição, “a obra de Salinger tem uma estranha vida própria. Opera num mundo extraliterário, como um fantasma ou um demônio. O grande logro literário de Salinger, O apanhador no campo de centeio, é uma obra – como MacBeth – sublime e maldita.”

Primeira edição de O apanhador no campo de centeio.
Salinger tinha total domínio sobre as edições de sua obra.

Mas, o que narra o romance? Nada mais que a história de Holden Caufield, adolescente de uma família abastada de Nova York, que, ao ser expulso da escola, anda pela cidade antes de finalmente enfrentar os pais. É um romance sobre a banalidade da vida da classe média estadunidense da época. As observações de Marcos Soares sobre o contexto e sua relação com o período da história dos Estados Unidos oferecem encaminhamentos para esse lugar de culto macabro ao romance de Salinger:

“Ao contrário da geração anterior de escritores como Faulkner e Steinbeck, que fizeram da miséria dos anos 30 assunto mais importante de sua obra, Salinger estreou no mundo literário do pós-guerra quando os Estados Unidos eram a nação mais rica e próspera do mundo.

As satisfações reais ou imaginárias do mundo dos negócios bem-sucedidos montaram o clima ideológico, que acolheu o desejo do consumo de braços abertos e fez do American way of life uma bandeira que apontava para o objetivo coletivo de toda a sociedade. A artificialidade desse modo de vida foi objeto de análise da sociologia americana dos anos 50, que em livros como O homem da organização (1956) de William Whyte e Colarinho branco (1951) de C. Wright Mills, buscou mostrar o lado cinzento da vida regrada e homogênea do homem de negócios, reduzida aos imperativos do consumo mais banal e passada diante da televisão, no escritório ou nos bancos da igreja do bairro.

Partindo dessa perspectiva, o Holden de Salinger é um aparelho de registro justamente dessa banalidade: uma vez livre dos problemas básicos de sobrevivência, a visão das vantagens da “sociedade afluente” só consegue vislumbrar a competição agressiva no trabalho e no estudo, a vulgaridade infindável nos comportamentos, a sexualidade estampada nas atitudes e nos objetos de consumo, a falta de profundidade de uma vida esvaziada de significado. A recusa de Holden de crescer, o desejo de congelar a passagem do tempo (ele é fascinado pelas múmias egípcias e tem como preocupação central o destino dos patos do Central Parxk, que têm de fugir do lago congelado durante o inverno) resumiu o sentimento de toda uma geração de jovens, cujos problemas existenciais (no sentido americano do termo) Holden encarnava.”

O fato é que os crimes ultrapassam a mera interpretação da obra. Além disso, há outras fronteiras de mistério em torno não apenas de O apanhador no campo de centeio mas da obra integral de Salinger – é incapaz, pelo menos aos olhos de Andrés Hax, de se deduzir qualquer dado autobiográfico mais central da vida do autor. Antes de se dedicar e abandonar a literatura, Salinger foi combatente na Segunda Guerra Mundial e mesmo tendo sido essa uma experiência e tanto na sua vida, ela não terá sido influência alguma para os livros que deixou publicados; participou da invasão à Normandia em 6 de junho de 1944. Um mês depois dos combates, dos 3080 soldados do regimento do qual Salinger fazia parte, haviam sobrevivido apenas 1130.

Além da Normandia, esteve na batalha do Bosque de Hürtgen, um dos episódios mais dantescos, segundo as fontes históricas, e dos mais horríveis da história humana; esteve presente à liberação dos prisioneiros do campo de concentração de Dachau; e nos últimos meses da guerra, Salinger trabalhou numa equipe de inteligência na função de interrogador junto a cidadãos de regiões ocupadas pelas forças inimigas. A única coisa de influência desses episódios está no próprio modo de vida: estaria aqui o princípio da sua reclusão.



O mundo ficcional de Salinger, diz Hax, é quase que apolítico e a-histórico. Além de Caufield, o restante de seus protagonistas são também adolescentes. Destaque nesse cenário é o universo da família Glass: dois pais e seus cinco filhos e duas filhas superdotados e excêntricos, criados num enorme departamento em Upper East Side; único elemento, aponta Hax, em que aponta alguma semelhança com a vida privada de Salinger: em New Hampshire, o autor permaneceu maior parte do tempo num bunker anexado à casa que dividia com a esposa e sua filha. Aí trabalhava mais de 12 horas por dia em meio a um vasto universo de notas com cronologias, biografias e episódios da vida da família Glass.

Para Hax, um leitor apaixonado pela obra de Salinger tem que tomar uma decisão – a mesma que para o caso de muitos outros escritores que fogem ou fugiram da publicidade, como é o caso de Thomas Pynchon ou Comarc McCarthy, ou para vir ao contexto nacional, Dalton Trevisan: “quanto querem inteirar-se sobre a vida do autor?  É mais honesto obedecer o desejo de Salinger e deixá-lo totalmente em paz? Ou é direito de um leitor apaixonado saber sobre a vida de quem surgiu a obra? Ou ainda, é mais honesto e insano limitar-se apenas aos textos?” Isto é, Salinger e outros não midiáticos colocam em causa a relação já há muito problemática nos estudos literários – a relação entre autor e obra, entre autor e escritor.

No caso dos escritores que pouco querem tornar suas vidas uma devassa, a atitude mais coerente, pensa Hax, é a de preocupar-se tão somente como o texto e esquecer da vida do escritor. Se o autor afasta-se do mundo corriqueiro é porque essa insistência pela relação autor-obra não lhe é conveniente, lhe é um incômodo.

“Há muitas coisas ainda por se descobrir sobre a vida de Salinger, mas nada vai mudar o feito fundamento de sua vida como autor: o de deixar de escrever.” É compreensível que os mistérios permaneçam. Talvez estejam nelas uma estratégia de perpetuação da obra.

Notas: As falas de Andrés Hax a que nos referimos está no texto "Vida y obra: J. D. Salinger" publicado no jornal El Clarín; a citação de Marcos Soares está na edição especial da revista Entrelivros, Literatura Americana.

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Comentários

Unknown disse…
Trabalho com Salinger desde a graduação (agora faço mestrado). Tenho acompanhado de perto e com muito interesse todas as notícias que saem sobre ele, principalmente a possível publicação de novas obras.

Acho sempre perigoso procurar traços do autor na obra, embora considere impossível ele não se revelar de alguma forma. Os lugares escolhidos por Holden, por exemplo, para perambular em NY dizem muito sobe a cidade que Salinger explorava (ele próprio de família burguesa).

Sobre Salinger não usar da guerra em seus escrito eu discordo. Ela pode não ser o pano de fundo, mas aparece lá na forma da angústia que todos os seus personagens carregam.

E quanto aos assassinatos, considero essas associações como bullshit. Talvez os assassinos se identificassem um pouco com o inconformismo de Holden quanto à sociedade de consumo americana, mas vale lembrar que o próprio Holden se declara pacifista. Além disso, o final do livro é uma mensagem de amor e esperança, apesar de tudo.

Abraços

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