Livro do Desassossego: o romance possível (var.: impossível)


Por Richard Zenith

Cena do Filme do desassossego.

Citamos o Livro do Desassossego como se fosse um tesouro de frases geniais, um compêndio de ideias, ora mais ora menos desenvolvidas, uma miscelânea de fragmentos avulsos. E é natural que o encaremos desta maneira, pois corresponde ao estado em que efectivamente foi deixado. Em boa verdade, mesmo que Pessoa tivesse revisto e organizado o Livro, e por mais que o tivesse domado e domesticado, seria sempre uma obra constituída por fragmentos. Isso nada tem a ver com um projecto putativamente modernista de pôr em causa o livro enquanto formato literário. Muito menos se deve à impossibilidade de encontrar uma forma adequada para ele. Pessoa encontrou-a logo no início. O fragmento – aliás, umas centenas de textos de variado tamanho e relativa autonomia a que chamamos fragmentos – é precisamente a forma que lhe convinha, dado o livro ser narrado por alguém cujo estado de alma é um devaneio permanente. Não é que o narrador tenha a cabeça nas nuvens ou imagine coisas vagas e imprecisas. O seu devaneio analisa e explora, como que cientificamente. Mas é um devaneio. Observador e sonhador faminto, interessa-lhe menos o objecto daquilo que vê e sonha do que o próprio acto de ver e sonhar – acto esse que termina e se fixa na escrita. Explica-nos esse processo num trecho redigido bastante cedo: «Quem sabe escrever é o que sabe ver os seus sonhos nitidamente (e é assim) ou ver em sonho a vida, ver a vida imaterialmente, tirando-lhe fotografias com a máquina do devaneio (...)» (da última secção do trecho «Via Láctea»). O Livro do Desassossego é uma sequência de fotografias estranhamente íntimas, tiradas por um fotógrafo que as revela com palavras. O fotógrafo vai documentando o seu próprio drama, centrado no como e no porquê da sua actividade fotográfica. Neste Livro, retratar e narrar são sinónimos de protagonizar.

Mesmo perdendo de vista o protagonista, que nos primeiros tempos não tinha nome, mas que Pessoa passou depois a designar por Vicente Guedes e, finalmente, por Bernardo Soares, a nossa leitura do Livro continua a ser uma experiência muito proveitosa, pois a escrita especialíssima vale por si, mas é mais difícil percebermos a beleza do conjunto e apreciarmos o plano do sentir e conhecer em que os fragmentos se relacionam uns com os outros.

A identidade civil e quotidiana do narrador do Livro foi-se compondo aos poucos. Vicente Guedes acabou por ser definido como um ajudante de guarda-livros que residia na Baixa, mas no momento em que o seu nome se associou ao Livro, em 1914 ou 1915, era uma personagem misteriosa, sem profissão ou origem conhecidas («não se sabe nem quem era, nem o que fazia» reza uma passagem prefacial1). Para Bernardo Soares – definido como um «semi-heterónimo», mas também como uma «personagem literária» – Pessoa esboçou uma infância e fez numerosas referências ao bairro onde habitava e ao seu trabalho na firma Vasques e C.ª. Ainda assim, não chegou a ser uma personagem com real espessura biográfica. Porém, o protagonista do Livro, mesmo em 1913-14 quando ainda não tinha nome, não se resumia a uma simples versão diminuída de Pessoa. Possuía três traços de personalidade muito marcados: uma grande indiferença em relação à política e aos assuntos do dia-a-dia, um temperamento assumidamente antissocial e um ensimesmamento exacerbado. São três facetas, se quisermos, da mesma rejeição do mundo exterior e concomitante imersão em si próprio. A ficção do ajudante de guarda-livros que trabalha e mora na baixa lisboeta é formalmente importante, pois mostra que o autor queria aglutinar o material do Livro em redor de uma história de vida e fornece um esqueleto para estruturá-la, mas a história que realmente interessa decorre noutro plano, noutro espaço.

Alguns espectadores do Filme do Desassossego, de João Botelho, embora gostando do filme, reagiram mal à figura de Bernardo Soares, alegando que existia um erro de casting. É verdade que a personagem filmográfica, representada por Cláudio da Silva, não corresponde à imagem estereotipada de um pacato empregado de escritório, mas tem a virtude de nos transmitir, com o seu ar algo alucinado, a inquietante estranheza da vida interior de Soares. Uma das conquistas do filme, no meu entender, é a de nos mostrar que Bernardo Soares é o herói de um romance, cujo título é Livro do Desassossego.

O romance-experiência

Sem cronologia ou enredo, este é um romance de ideias, mas não de ideias filosóficas ou políticas, como acontece, por exemplo, em O Homem sem Qualidades, de Musil. As ideias que percorrem o Livro do Desassossego são como premissas e hipóteses que Pessoa quis testar, colando-as ao seu protagonista para ver o que disso resultaria. Este método «experimental», como se Pessoa fosse um cientista da alma, foi por ele utilizado repetidas vezes. Vejamos dois exemplos... Dotou Alexander Search de um racionalismo acentuado, aliado a uma boa dose de instabilidade mental, e pô-lo a reagir em conformidade nos poemas que se foram constituindo em colectâneas intituladas Documents of Mental Decadence, Mens Insana, ou Delirium. Bem mais tarde, em 1928, criou o Barão de Teive, fazendo-o padecer de uma impotência criativa e sexual que o impedia de produzir obras completas ou de se relacionar intimamente com as mulheres.

No caso do Livro do Desassossego, o autor lançou duas grandes premissas e ergueu sobre elas uma hipótese, ou um teorema, que pôs à prova através do seu protagonista. Não emprego o termo «premissa» como se Pessoa pretendesse fazer um silogismo aristotélico, mas sim, para indicar um procedimento racional menos rigoroso, condizente com o «desconexo lógico» que caracterizava o estilo de Bernardo Soares. A primeira das duas premissas é a de que tudo o que existe no mundo é traje, aparência, símbolo. A segunda, quase um corolário da primeira, é a de que a realidade efectiva é aquilo que sentimos como real. Ou por outras palavras: a realidade, para nós, reside nas nossas sensações.

Conquanto a segunda premissa seja relacionável com o Sensacionismo promovido por Pessoa em seu próprio nome e no de Álvaro de Campos, o Livro cita como teórico na matéria o pensador Condillac, do século XVIII: «Por mais alto que subamos e mais baixo que desçamos, nunca saímos das nossas sensações».2 Feita a citação, que condensa e em parte parafraseia uma afirmação formulada no início do Essai sur l’origine des connaissances humaines (1746), Bernardo Soares repete o essencial da frase por outras palavras, numa fórmula ainda mais condensada: «Nunca desembarcamos de nós.» Esta asserção serve de justificação para o ensimesmamento do narrador, que termina o trecho dizendo, «O universo não é meu: sou eu».

No mesmo trecho, como em vários outros do Livro, o narrador despreza a utilidade das viagens geográficas, alegando que uma ida a Benfica pode dar maior sensação de libertação do que uma viagem até à China, visto que a sensação depende de quem vai a um ou outro lugar. Sustenta, ainda, que as «verdadeiras paisagens são as que nós mesmos criamos, porque assim, sendo deuses delas, as vemos como elas verdadeiramente são, que é como foram criadas. Não é nenhuma das sete partidas do mundo aquela que me interessa e posso verdadeiramente ver; a oitava partida é a que percorro e é minha». Assim, as «verdadeiras» paisagens criadas pelo narrador e autor ficcional do Livro do Desassossego são aquelas que ele escreve e de que «Na Floresta do Alheamento» constitui um exemplo primoroso. Talvez tenha ainda criado algumas paisagens que, mentalmente visualizadas, não passaram para a escrita. De qualquer modo, a oitava partida do mundo é o reino da imaginação literária.

Sempre no mesmo trecho e a propósito da nossa apreciação de paisagens, reais ou imaginárias, Soares comenta: «Somos todos míopes, excepto para dentro. Só o sonho vê com o olhar». Estas palavras sugerem a possibilidade de uma colaboração entre a nossa deficiente visão ocular e a nossa visão interior, imaginativa. Tal colaboração está patente nas muitas descrições de paisagens exteriores que perpassam pelo Livro. Cito uma, a título de amostra: «Esse céu é de um azul esverdeado para cinzento branco, onde, do lado esquerdo, sobre os montes da outra margem, se agacha, amontoada, uma névoa acastanhada de cor-de-rosa morto» (trecho 225). Num ensaio intitulado «The Birth of Literature»3, António Feijó entende estas pequenas, prodigiosas descrições do céu e do tempo como esforços, conseguidos, do observador para tornar os objectos do seu olhar singulares, nada vulgares. Trata-se do mesmo procedimento que António Vieira elogiava na escrita do Frei Luís de Sousa, como nos é por duas vezes lembrado no Livro do Desassossego (trechos 36 e 83). E é assim – tornando o comum requintadamente estranho, algo alheio – que se faz a literatura.

E assim também o protagonista do Livro do Desassossego se vai apoderando da realidade, transformando-a e fazendo-a sua. Explica-nos isso no trecho «A Divina Inveja»:

«Esforço-me (...) para alterar sempre o que vejo de modo a torná-lo irrefragavelmente meu – de alterar, mantendo-a mesmamente bela e na mesma ordem de linha de beleza, a linha do perfil das montanhas; de substituir certas árvores e flores por outras, vastamente as mesmas diferentissimamente; de ver outras cores de efeito idêntico no poente – e assim crio, (...) com o próprio gesto de olhar com que espontaneamente vejo, um modo interior do exterior.»

É indiferente que os céus verbalmente retratados por Bernardo Soares tenham sido realmente observados e, em caso afirmativo, que tais retratos sejam fiéis àquilo que observou. Singularizados pela sua extraordinária capacidade descritiva, passam a fazer parte da oitava partida do mundo, que é literatura e é sua.

Pelas leis que regem o mundo do Desassossego, a Arte decorre das sensações – profundamente sentidas, particularizadas e trabalhadas, captadas em linguagem. Nisto reside a verdade possível, segundo Pessoa, que quis testar a suficiência dessa verdade para uma vida humana. Ou seja, queria saber se um escritor poderia viver, psicológica e espiritualmente falando, apenas da sua imaginação e arte, sem precisar de interagir com o mundo exterior. O protagonista do Livro serviu-lhe de cobaia.

A experiência realizada por Pessoa, que desde muito jovem gostava de brincar sozinho e de lidar com amigos puramente imaginários, pode ter sido motivada por uma fantasia pessoal de autossuficiência, um velho sonho seu de uma vida que não dependesse de mais ninguém. Seja como for, o protagonista, ora denominado Vicente Guedes ora Bernardo Soares, era militantemente solitário. «Conviver é morrer», sentencia no trecho 209, justificando esse duro juízo com o seguinte raciocínio: «Para mim, só a minha autoconsciência é real; os outros são fenómenos incertos nessa consciência, e a que seria mórbido emprestar uma realidade muito verdadeira». Experiencia os outros seres humanos como fenómenos predominantemente visuais e auditivos, ao mesmo nível que a paisagem circundante e com o mesmo interesse que esta possa ter. Afirma-o sem rodeios, no trecho 317: «Os outros não são para nós mais que paisagem». Uma paisagem, aliás, que tende a provocar-lhe tédio, um estado de ânimo mencionado com excepcional frequência no Livro do Desassossego.

Cena do Filme do Desassossego

Em substituição das paisagens exteriores, o protagonista sonha com a criação de uma cidade feita da sua própria alma, que se estendesse longinquamente dentro dele até «à beira de uma baía calma» (no trecho 114), e imagina a existência, no seu interior, de todo «um Estado com uma política, com partidos e revoluções» (trecho 157). A construção de uma terra interior, feita de sonho, recorda-nos imediatamente do naufragado marinheiro que, no homónimo «drama estático» publicado por Pessoa em 1915, vai construindo uma pátria natal sonhada que também incluía uma baía, praias, ruas e gente. Por esta e por outras analogias com O Marinheiro, o Livro do Desassossego poderia chamar-se um «romance estático».4 Em vez de viagens terrestres, o narrador do Livro aventa a possibilidade de uma «geografia» da nossa própria consciência – isto num trecho (76) escrito na primeira fase redaccional da obra. Na segunda fase, volta à mesma ideia, dizendo que a geografia da nossa consciência da realidade é «de uma grande complexidade de costas, acidentadíssima de montanhas e de lagos», e traz à baila o mapa alegórico do Pays du Tendre, ou «País da Ternura». Integrado num romance francês do século XVII, este mapa traçava o terreno das emoções humanas (trecho 338).

Bernardo Soares rejeita a experiência da vida real porque (cito novamente o trecho 138) «nada ensina, como a história nada informa. A verdadeira experiência consiste em restringir o contacto com a realidade e aumentar a análise desse contacto. Assim a sensibilidade se alarga e aprofunda, porque em nós está tudo; basta que o procuremos e o saibamos procurar». Esta insistência na busca interior como único meio de conhecimento – «em nós está tudo» – sugere a anamnese platónica, pela qual toda a aprendizagem é uma reaprendizagem daquilo que já conhecíamos numa existência anterior. Não penso que Pessoa-Soares tivesse exactamente esse conceito em mente, mas um platonismo soft parece subjazer à noção – fortemente presente no Livro – de que todo o mundo é aparência e símbolos. António Mora, a este propósito, rejeitou a Teoria das Ideias (ou Formas) de Platão por este ter cometido o erro de ligar atributos da realidade à consciência (da qual são extraídas as tais Ideias) e também rejeitou, pela mesma razão, a já referida doutrina de Condillac de que nunca saímos de nós próprios e das nossas sensações.5 Digo «a este propósito», porque as objecções levantadas pelo heterónimo-filósofo confirmam que as ideias-mestras – ou premissas – do Livro do Desassossego têm validade num contexto específico, que envolve o protagonista e a experiência em que ele participou, não podendo ser entendidas, sem mais, como ideias subscritas por Fernando Pessoa.

O romance-roupeiro

Voltando à premissa de que o mundo perceptível consiste em símbolos ou aparências, é por outras palavras que o protagonista costuma referi-la. Fala de trajes, de vestidos, de vestes, de roupa. No contexto da obra global de Pessoa, o Livro do Desassossego contém uma inusitada concentração de referências – literais e metafóricas – à indumentária. Pesquisando apenas as ocorrências do vocábulo traje, ou trajo, nas primeiras cinquenta páginas da edição publicada pela Assírio & Alvim, obtêm-se os seguintes resultados: o protagonista alude às suas circunstâncias de vida como sendo o seu «trajo da Rua dos Douradores» (trecho 7); a consciência de que as pessoas vulgares são os seus semelhantes veste-lhe «o traje de forçado» (trecho 36); um cadáver dá-lhe «a impressão de um trajo que se deixou» (trecho 40); a amargura da sua vida despe-lhe «o traje de alegria natural» (trecho 41); e as suas leituras constituem «um trajo» que mal vê, mas que lhe pode pesar (trecho 55). As mesmas cinquenta páginas contêm outras tantas referências à palavra vestir e seus derivados. Num dos trechos mais extraordinários do Livro (298), Bernardo Soares, ao reparar no vestido verde-claro de uma rapariga no eléctrico, decompõe-no nos seus vários elementos e tipos de costura. Passa, em seguida, a visualizar a fábrica onde o vestido foi produzido, todos os gerentes e operários da fábrica – nas suas vidas públicas e também privadas – e todo o sistema social e económico por detrás disso, até que finalmente sai do eléctrico, exausto e sonâmbulo, declarando: «Vivi a vida inteira». Não é de admirar que Soares, autor de uma autobiografia sem factos mas com fatos, trabalhe na contabilidade de um armazém de fazendas.

O lugar privilegiado do vestuário no discurso e no próprio quotidiano de Soares deve-se à influência de Sartor Resartus [O Alfaiate Recosturado], um precursor do Livro do Desassossego enquanto «romance», rótulo sem dúvida discutível para qualquer dos dois livros. Publicado em 1833-34, a estranhíssima obra de Thomas Carlyle teve, entre os seus precursores, outro romance pouco ortodoxo dentro do género: The Life and Opinions of Tristram Shandy, Gentleman (publicado entre 1759-1767), de Laurence Sterne.6 Um apontamento de Pessoa revela que o romance de Sterne fazia parte da sua biblioteca por volta de 19087 , mas foi Sartor Resartus, adquirido em Durban e actualmente à guarda da Casa Fernando Pessoa, que o marcou profundamente. Numa carta dirigida ao heterónimo-psiquiatra Faustino Antunes, em Julho de 1907, Ernest A. Belcher – professor de inglês na Durban High School – recordou que Pessoa era um grande admirador de Carlyle e que tinha sido difícil «refrear a sua tendência para imitar muito de perto o estilo» do escritor escocês [I had some difficulty in checking a disposition on his part to imitate very closely Carlyle’s style].8

Foi logo após receber essa carta que Pessoa, nada preocupado com a sua alegada tendência de imitar Carlyle, releu Sartor Resartus, sublinhando muitas passagens e fazendo numerosos comentários nas margens.9 Segundo um apontamento patente num caderno usado por Pessoa nesse mesmo ano, 1907, ele próprio pensou escrever «a kind of Sartor Resartus» [uma espécie de Sartor Resartus].10 O Livro do Desassossego, que contém duas referências à obra, é estruturalmente diversíssimo, mas espiritualmente próximo devido à herança ou coincidência de alguns temas e também à prosa inventiva que os exprime. Ambas as obras avançam sem avançar, atabalhoadamente e sem medo do caos.

Subtitulado The Life and Opinions of Herr Teufelsdröckh, o romance de Carlyle consiste numa longa recensão do livro Clothes, their Origin and Influence [O Vestuário, sua Origem e Influência], escrito pelo professor Diogenes Teufelsdröckh [Fezes-do Diabo Nascido-de-Deus]. Na primeira secção, o recenseador cita, interpreta e critica a chamada «Philosophy of Clothes» desenvolvida pelo autor alemão. (Carlyle, diga-se de passagem, era um grande erudito da língua e literatura alemãs, tendo traduzido Goethe e escrito uma biografia de Schiller.) Das passagens citadas da dita Filosofia da Roupa, supostamente traduzidas do alemão, Pessoa sublinhou, no seu exemplar do livro, frases como «all objects are as windows» [todos os objectos são como janelas], «All visible things are Emblems» [Todas as coisas visíveis são Emblemas], ou «Whatever sensibly exists, whatsoever represents Spirit to Spirit, is properly a Clothing, a suit of Raiment, put on for a season, and to be laid off» [Tudo que sensivelmente existe, tudo que representa Espírito para o Espírito, é propriamente uma Roupa, um Traje, vestido durante uma estação, para ser despido mais tarde].11

Herr Teufelsdröckh considera que a linguagem também é roupa por ser essencialmente figurativa, feita de metáforas, mesmo que o estilo de um dado autor seja enxuto, seco. Quanto ao seu próprio estilo, o filósofo reconhece que é exuberante e «not without an apoplectic tendency» [não isento de uma tendência apopléctica].12 Foi a energia linguística e ideativa, notória em Sartor Resartus, que tanto atraiu Pessoa para Carlyle, cuja prosa saltitante, pouco linear, ambicionava tocar em verdades não racionalmente perceptíveis.13 Pessoa era menos «apopléctico» na sua escrita (a «apoplexia» de Campos era mais temperamental do que propriamente linguística), mas fazia amplo uso de neologismos e neossintaxe, nomeadamente no Livro do Desassossego, e compartilhava com Carlyle a noção de que a forma como se exprime já é, em si, uma verdade. Para ambos a linguagem era uma roupagem, sim, mas uma roupagem como que sagrada. O protagonista do Livro do Desassossego, condenado por Pessoa a ser espectador-escritor de si próprio, quase não tem mais nada a não ser a linguagem. Será a sua consciência desta irrevogável condição – «Sou, em grande parte, a mesma prosa que escrevo» (trecho 193) – que o faz atribuir especial importância ao «manto régio» da ortografia etimológica (trecho 259).

O romance decadentista

A entrega de Soares às sensações, aos sonhos e à linguagem que os descreve não é um comportamento que Pessoa lhe impõe arbitrariamente ou por razões meramente pessoais, para investigar as suas próprias propensões e manias idiossincráticas. Prende-se, segundo a lógica narrativa do Livro, com a inutilidade de agir numa sociedade doente e sem cura à vista. O protagonista comporta-se como um decadente – dedicado a um «decorativismo interior» feito das suas sensações, que «são a única realidade que lhe resta» (trecho «O Sensacionista») – por ser o produto de uma conjuntura decadente. A sua pretensa autobiografia, embora prescinda de factos concretos, está ancorada num tempo real, marcado pelo desmoronamento dos sistemas políticos e sociais tradicionais e pela perda da fé no Deus cristão.

Há três trechos escritos na década de 1910 (175, 306 e «O Sensacionista») em que o protagonista nos lembra a sua pertença a uma geração em que as velhas crenças morreram, pelo que ele e os seus pares ficaram «cada um entregue a si próprio, na desolação de se sentir viver» (trecho 306). Num quarto trecho, escrito bem mais tarde, mas destinado a abrir o Livro do Desassossego (trecho 1, datado de 29/3/1930 e rotulado de «trecho inicial»), Bernardo Soares apresenta-se como tendo nascido «em um tempo em que a maioria dos jovens haviam perdido a crença em Deus». Identifica-se com a corrente designada por Decadência pelo facto de ter perdido totalmente a inconsciência e, com ela, a capacidade de viver espontaneamente. Resta-lhe, assim, «a renúncia por modo e a contemplação por destino».

A renúncia e a contemplação resumem bem a maneira de ser passiva de Jean des Esseintes, herói de À rebours [Às Avessas], um livro iniciático para os adeptos do movimento decadentista. Embora não haja provas concludentes de que Pessoa o tenha lido, refere Huysmans e o seu célebre romance em dois apontamentos redigidos por volta de 1907.14 Em todo o caso, encontramos curiosos pontos de contacto entre os protagonistas do Livro do Desassossego e de À rebours – pontos de divergência mais do que de concordância, apesar de uma atitude de base parecida. O herói burguês inventado por Pessoa cultivava uma aristocracia interior, enquanto Jean des Esseintes provinha de uma família de sangue azul, abastada e socialmente conceituada.

Retirando-se da sociedade para o seu mundo privado em que se propõe «substituer le rêve de la réalité à la réalité même» [substituir a realidade em si pelo sonho da realidade]15, o aristocrata francês passa boa parte do tempo mergulhado em leituras que excitam a sua imaginação. De tão entusiasmado que fica com a leitura de Charles Dickens, toma a decisão de fazer uma viagem a Londres. Ainda em Paris, à espera do comboio, ocorre-lhe almoçar num restaurante inglês onde observa, deliciado, os seus convivas britânicos, que lhe lembram certas personagens dos romances de Dickens. Cancela então a viagem, convencido de que já não fazia sentido ir a Londres quando podia viajar «magnifiquement sur une chaise» [magnificamente sentado numa cadeira].16

Cena do Filme do Desassossego

Bernardo Soares, um contemplativo mais radical, nunca chegou ao ponto de planear uma viagem. E apesar de ser dotado de uma grande cultura livresca, quase deixou de ler, contrariamente ao protagonista de Huysmans. Jean des Esseintes lê e comenta não apenas os seus contemporâneos (entre os quais Verlaine, Mallarmé e Villiers de l’IsleAdam), mas também muita literatura antiga, incluindo escritores da Igreja. Queixa-se, porém, do «style épiscopal, si banalement manié par les prélats» [estilo episcopal, tão banalmente exercitado pelos prelados], preferindo por isso os autores católicos leigos.17 O protagonista do Livro do Desassossego, como se quisesse distanciar-se do outro (caso o conhecesse), ostenta a sua preferência por «livros banais» e pelo «estilo afectado, claustral, fruste, do Padre Figueiredo», autor de uma Retórica, com a qual, garante: «Leio e abandono-me, não à leitura, mas a mim» (trecho 417).

Mas o que é esse «mim» a que o suposto autobiógrafo se abandona? E quando diz, noutro trecho (443), «Não escrevo em português. Escrevo eu mesmo» (trecho 443), quem é esse «eu»? No trecho que começa «Suponho que seja o que chamam um decadente» (387), Soares explica a sua escrita como uma tentativa de figurar «em uma matemática expressiva as sensações decorativas» da sua «alma substituída». Não se trata de um decorativismo decorrente de uma atitude esteticizante, pois todas as sensações são decorações da alma, porque tudo é decoração, roupa, símbolo. Quanto à dita «matemática expressiva», está longe de ser cartesiana. «Em certa altura da cogitação escrita», esclarece Soares na mesma passagem, «já não sei onde tenho o centro da atenção – se nas sensações dispersas que procuro descrever, como a tapeçarias incógnitas, se nas palavras com que, querendo descrever a própria descrição, me embrenho, me descaminho e vejo outras coisas». O protagonista fica imerso num turbilhão «de ideias, de imagens, de palavras – tudo lúcido e difuso –» e perde-se fatal e gloriosamente, «como um náufrago afogando-se à vista de ilhas maravilhosas», representadas no «mapa absurdo de sinais mágicos» que é a própria escrita de Soares.

O romance-naufrágio

O Livro do Desassossego, enquanto romance, é um naufrágio. O seu protagonista bóia, perdidamente, num sargaço de sensações e palavras que não formam uma trama nem o levam a lado nenhum que se perceba. Ficou provado que a autossuficiência não é viável. «Tanta inconsequência em querer bastar-me!» desabafa Bernardo Soares (trecho 79), «[t]anta consciência sarcástica das sensações supostas!» Ninguém aguenta viver exclusivamente da imaginação literária, interiorizando tudo e dependendo do mundo exterior apenas como alimento do sonho e da literatura. Surge, desde logo, um impedimento de ordem prática: por mais que se esforce por evitá-la, haverá sempre um mínimo de interacção com o exterior. E assim, como lamenta o próprio sujeito da dolorosa experiência: «conseguindo exacerbar a minha sensibilidade pelo isolamento, consegui que os factos mínimos, que antes mesmo a mim nada fariam, me ferissem como catástrofes» (trecho 462). Confessa ainda que, por tanto ter analisado a sua vontade de viver, acabou por matá-la.

Essa experiência, claro está, foi uma batota, uma mera encenação. O romancista sabia desde o início que o seu herói era um anti-herói, predestinado à derrota. O trecho que acabo de citar foi redigido muito cedo, e numa carta enviada para João de Lebre e Lima em 3 de Maio de 1914, Pessoa escreveu, a propósito de «Na Floresta do Alheamento», publicado em Agosto do ano anterior: «O que é em aparência um mero sonho, ou entressonho, narrado, é – sente-se logo que se lê, e deve, se realizei bem, sentir-se através de toda a leitura – uma confissão sonhada da inutilidade e dolorosa fúria estéril de sonhar». Um dos primeiros trechos escritos para o Livro do Desassossego intitula-se «Glorificação das Estéreis». Todo o Livro, de acordo com a carta enviada a João de Lebre e Lima, talvez pudesse ostentar o subtítulo de «Glorificação dos Estéreis», em alusão àqueles que sonham sem fim e sem utilidade aparente. Espero ter demonstrado que Fernando Pessoa não era um desses sonhadores estéreis, mas apenas o seu teórico e admirador ambivalente.

Nos anos seguintes, Pessoa produziria numerosos trechos sobre a «Maneira de Bem Sonhar», com ou sem este título, e a forma narrativa dominante do Livro continuaria a ser o relato confessional, feito na primeira pessoa. O alheamento, é certo, tomaria outros rumos, tornando-se o discurso de um protagonista inserido, pelo menos superficialmente, no mundo comercial e quotidiano de Lisboa. Porém, haveria sempre, mesmo na última fase redaccional, exemplos da sua vida interior convertida em paisagem simbolista, da qual «Na Floresta do Alheamento» é o protótipo máximo, e as passagens diarísticas assinadas por Guedes ou por Soares também são paisagens, quadros de literatura. As verdadeiras linhas mestras do Livro do Desassossego saltam à vista em qualquer fase da escrita. Relembro que a história do ajudante de guarda-livros, embora surja já na primeira fase, constitui um não-enredo, demasiado ténue para provar o carácter romanesco do Livro; denota, no entanto, a vontade que Pessoa tinha de fazer um romance, ou coisa parecida.

O tipo de livro que ambicionava produzir sofreu constantes desvios e interferências. Por exemplo, há um trecho (106) em que Bernardo Soares cita um verso – «Quero-te só para sonho» – que diz ser de um velho poema seu. O poema, na verdade, foi assinado por Pessoa e publicado por este na Athena. No Livro do Desassossego, tal como no resto da sua obra, Fernando Pessoa era promíscuo e incontinente, ultrapassando as fronteiras mal definidas (e mal defendidas) entre ele, os diversos colaboradores fictícios e os respectivos projectos literários. Mas mesmo que tivesse ficado fiel aos seus propósitos, o Livro seria sempre um romance gorado, pois um protagonista que não age contraria os princípios que definem o género. Diz Bernardo Soares: «Sou uma figura de romance por escrever, passando aérea, e desfeita sem ter sido, entre os sonhos de quem me não soube completar». Talvez seja mais correcto classificar o Livro assim, como um «romance por escrever». Curiosamente, o trecho que acabo de citar (262) termina com a seguinte frase, desgarrada e sem nexo com os parágrafos anteriores: «Minha mãe morreu muito cedo, e eu não a cheguei a conhecer…». É como se Pessoa se recordasse repentinamente, decerto com um misto de ironia e tédio, que precisava de injetar mais substância biográfica no seu protagonista sonhado e sonhador.

Thomas Carlyle também não tinha paciência para desenhar um retrato minucioso do seu protagonista, Herr Teufelsdröckh. Melhor dizendo, não acreditava que um retrato clássico pudesse transmitir a alma de uma pessoa, ou personagem. Por isso subverteu o jogo. O narrador de Sartor Resartus, às voltas com a sua recensão de Clothes, their Origin and Influence, escreve para a Alemanha a pedir informações sobre o autor do livro, na esperança de que esses dados biográficos pudessem esclarecer alguns aspectos da Filosofia da Roupa. Recebe, pelo correio, seis sacos de papel cheios de fragmentos autobiográficos, redigidos pela mão do próprio filósofo. Cada saco é misteriosamente rotulado com um signo zodiacal. Dessa mixórdia de papéis, o narrador tece uma vida parcelar e extrai algumas opiniões subscritas por Herr Teufelsdröckh. Tudo isso – os muitos fragmentos soltos, a astrologia, a autobiografia confiada a outra pessoa que a divulga – lembra-nos o universo escrito de Fernando Pessoa. E Herr Teufelsdröckh é também um semi-heterónimo, um Carlyle mutilado, como se depreende da descrição de Entepfuhl, a aldeia fictícia onde nasceu e que se assemelha, em vários pormenores, a Ecclefechan, a aldeia nativa do seu criador.

Quanto à figura do sartor, ou alfaiate, é um Criador e mesmo uma Divindade, segundo nos revela o penúltimo capítulo do romance de Carlyle, e os Poetas são «Metaphorical Tailors» [Alfaiates Metafóricos]. Estas pistas levam-nos a concluir que o título do livro é autorreferencial. O sartor resartus é o próprio escritor recosturado, reescrito: Mr. Carlyle reconfigurado em Herr Teufelsdröckh, ou Fernando Pessoa em Bernardo Soares. De mais a mais, o título sugere que mesmo Deus – o sartor-mor, criador do mundo visível – acaba por ser revisto, re-vestido. Carlyle cedo perdeu a fé no Deus do calvinismo escocês, mas nutria e propalava uma fé ardente no acto de ter fé, uma atitude que Herr Teufelsdröckh, antecipando Nietzsche, designa por The Everlasting Yea [O Sim Eterno]. O conceito de Deus carlyleano assemelha-se, de facto, à indefinida definição da divindade que encontramos no Livro do Desassossego (trecho 473): «É qualquer ente, existente e impossível, que rege tudo; cuja pessoa, se a tem, ninguém pode definir; cujos fins, se deles usa, ninguém pode compreender. Chamando-lhe Deus dizemos tudo, porque, não tendo a palavra Deus sentido algum preciso, assim o afirmamos sem dizer nada.»

Dizer «sim» é um acto verbal e a religiosidade, em Sartor Resartus, é de certo modo um fenómeno linguístico. É-o ainda mais patentemente no Livro do Desassossego. «Os Deuses são uma função do estilo» (trecho 87), diz o protagonista, que, não conseguindo ter uma fé sólida, também não abandonou Deus tão «amplamente» como outras pessoas da sua geração (trecho 1). Ao longo do Livro, alude constantemente a Deus ou aos deuses e não só: aplica a terminologia religiosa à sua viagem de alma e mente, vendo-se como um monge – que não reza, mas se dedica ferozmente à contemplação imaginativa e à escrita (no trecho 4, por exemplo). A tentativa de viver de forma autossuficiente, apenas dos seus sonhos e das suas sensações transformadas em literatura, não teve um resultado feliz, mas a sua extrema e deliberada solidão tem, afinal, outro objectivo, de índole espiritual, ou linguístico-espiritual.

O auge de uma vida sonhadora – convertida não num romance, mas em inúmeros romances – é descrito no trecho intitulado «Maneira de Bem Sonhar nos Metafísicos». Aí o protagonista, depois de anunciar que se substituiu pelos seus sonhos, vai traçando o caminho conducente a um nirvana onde o escritor consegue escrever de mil maneiras diversas, mediante interpostos autores, criados pela imaginação. Conclui o trecho dizendo: «Este é o único ascetismo possível. Não há nele fé, nem um Deus. Deus sou eu.» Um eremita no deserto isola-se do mundo para comunicar com Deus. Bernardo Soares no seu quarto da Rua dos Douradores, Vicente Guedes na Rua dos Retroseiros, ou o narrador do alheamento na sua alcova, opta pela mesma via ascética, solitária, para se tornar Deus. Alquimista que trabalha com sensações, visões e palavras, o protagonista tem os seus momentos de êxtase – o sonho bem sonhado, a página bem escrita –, mas é um deus eternamente frustrado. A sua imperfeição manifesta-se no próprio trecho em que declara ser um deus, pois «Maneira de Bem Sonhar nos Metafísicos» é um texto lacunar, inacabado, mal articulado. E mesmo que o não fosse...

«Não há obra de artista que não pudesse ter sido mais perfeita», reconhece o protagonista num trecho sobre o seu desesperado esforço para criar e se exprimir.18 O Livro do Desassossego é um romance-drama sobre um escritor que anseia ardentemente por uma perfeição que sabe ser impossível. Escrever, afinal de contas (ou afinal de tantas dúvidas), é um acto de fé não se sabe bem em quê, uma variante do Sim Eterno de Carlyle. Ou então este Livro (seguindo a sugestão do trecho 152) é um romance sobre um simples drogado, que escreve por vício. De uma maneira ou outra, o protagonista é um falhado e o romance um fracasso – possivelmente o maior fracasso literário do século XX.

* Este texto é resultado de uma comunicação para III Congresso Internacional Fernando Pessoa realizado entre os dias 28 e 30 de novembro de 2013 em Lisboa.

Notas:

1 A referida passagem, texto AP2 na edição Assírio & Alvim/Companhia das Letras, foi escrita no mesmo suporte e com a mesma caneta que uma lista de iniciativas destinadas a promover a poesia de Alberto Caeiro e que incluem o «Artigo sobre A. Caeiro, n’A Águia». Dado Pessoa ter cortado relações com a revista portuense em Novembro de 1914, a lista será ainda desse ano ou, quando muito, de 1915, caso o autor tenha contemplado uma reaproximação aos directores do periódico.

2 Pessoa, Livro do Desassossego, 11.ª ed., Lisboa: Assírio & Alvim, 2013 [São Paulo: Companhia das Letras, 2012], trecho 138. Esta será a edição de referência no presente ensaio.

3 Publicado em Fernando Pessoa’s Modernity without Frontiers: Influences, Dialogues and Responses, ed. Mariana Gray de Castro, Woodbridge, Suffolk: Tamesis, 2013, p.193-200

4 A afinidade do Livro do Desassossego com O Marinheiro, no que diz respeito à ausência de acção, foi notada em dois estudos recentes: Michaël Stoker, Challenging Modernism: Fernando Pessoa and the Book of Disquiet, tese de doutoramento defendida na Universidade de Utrecht, 2013, e Thomas Cousineau, An Unwritten Novel: Fernando Pessoa’s The Book of Disquiet, Champaign, Illinois: Dalkey Archive Press, 2013. O livro de Cousineau, com uma abordagem diferente daquela adoptada no presente ensaio, também trata o Livro como uma espécie de romance.

5 Pessoa, O Regresso dos Deuses e outros escritos de António Mora, ed. Manuela Parreira da Silva, Lisboa: Assírio & Alvim, 2013, pp. 243-44.

6 As outras fontes mais inspiradoras do livro de Carlyle eram The Tale of a Tub, de Jonathan Swift, e várias obras de Goethe, sendo bem conhecida a admiração de Pessoa por ambos os autores.

7 Uma lista de quinze livros, elaborada por essa altura e encimada pela indicação «Take:» [Levar], inclui «Laurence Sterne’s works», juntamente com obras de Laing, Darwin, Emerson, Tennyson, Lewes e outros autores (BN E3/93A-67). Quase todas as obras, excepto as de Sterne (que Pessoa terá vendido ou dado a alguém), figuram na sua biblioteca pessoal à guarda da Casa Fernando Pessoa.

8 Ver carta de Belcher em Pessoa, Escritos Autobiográficos, Automáticos e de Reflexão Pessoal, Lisboa: Assírio & Alvim, 2003, p. 390-93.

9 Numa lista de tarefas datável de Setembro de 1907 (E3/133F-53v), lê-se: «Finish reading first part “Sartor”» [Acabar de ler a primeira parte de «Sartor»]. A julgar pela caligrafia, as notas marginais inscritas no livro serão quase todas de 1907, parecendo provável que Pessoa, em Durban, tenha lido principalmente a outra obra de Carlyle incluída no mesmo volume: Heroes; Past and Present. Foi em Durban, no entanto, que escreveu a seguinte observação, posteriormente riscada: «“Sartor Resartus” is useful in giving to us an analysis of genius, a sort of soul-autobiography. Psychologists should take notice of it.» [«Sartor Resartus» é útil na medida em que nos oferece uma análise do génio, uma espécie de autobiografia da alma. Os psicólogos deveriam prestar-lhe atenção.

10 E3/144T-52.

11 Cito o Book I, capítulo XI. Estas três noções carlyleanas ressurgem no Livro do Desassossego. No trecho 70, Soares, imaginando a vida de um transeunte na Rua Nova do Almada, escreve: «Volvi os olhos para as costas do homem, janela por onde vi estes pensamentos». No trecho «Peristilo», o narrador anseia: «O teu sorriso vago e indo-se seja para mim símbolo – emblema visível do soluço calado do inúmero mundo ao saber-se erro e imperfeição». Já citei o trecho 40, a propósito de um cadáver que se afigura «um trajo que se deixou».

12 Ibidem.

13 No artigo «Macaulay», publicado na Durban High School Magazine, em 1904, Pessoa exprimiu o seu entusiasmo pela prosa de Carlyle num parágrafo que começa: «We feel an immense commotion in reading him, in his electrical attraction for us» [Sentimos uma imensa comoção ao lê-lo, devido à atração electrizante que exerce sobre nós]. Num de vários apontamentos inéditos sobre Carlyle, Pessoa comentou que o «frantic style» [estilo frenético] da sua escrita, caracterizado por uma «frequent extravagance of diction» [extravagância frequente da dicção], era o único estilo em que o escocês podia exprimir as suas ideias (E3/279 D2 -46v.). Noutro apontamento, observou que Carlyle trouxe, para a literatura, «the sense of mystery girding around all human action» [o sentimento de mistério que envolve toda a acção humana] (E3/133F-65v.).

14 E3/48B-113 e 79-45a.

15 Joris-Karl Huysmans, À rebours, Paris: Gallimard, 2001, p. 103.

16 Ibidem, p. 247.

17 Ibidem, p. 261.

18 Trata-se do trecho 328, que parece corresponder à «Litania de Desesperança», referida numa lista de trechos para o Livro.


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