Capitão Phillips, de Paul Greengrass



Houve um tempo que os noticiários de todo mundo fervilhavam de notícias sobre a tomada de navios por piratas partindo de vários países da África. Paul Greengrass colecionou uma dessas histórias, talvez a que mais teve repercussão internacional na época, em que um capitão estadunidense, sua equipe e um navio de carga foi cercado e tomado por um grupo de somalis, instaurando uma extensa confusão internacional, cujo tema recaía novamente sobre os conceitos de fronteira – tema, aliás, que perpassa todo o filme. Esta é basicamente a história de Capitão Phillips.

O que primeiro merece destaque nela é que, sendo um filme produzido nos Estados Unidos sobre um estadunidense que conseguirá não sem ajuda de um aparato policial gigantesco superar a situação e portanto tudo tendendo a escorregar para uma defesa aberta do país enquanto nação suprema, aqui, o diretor parece não está interessado apenas no ponto de vista do herói – muito bem interpretado por Tom Hanks, numa incursão que há tempos não víamos nos papéis que tem ocupado no cinema.

À medida que o navio é tomado pelos piratas e assume a posição um novo capitão, a câmera, como narrador, aproveita para deixar espaço para atuação de Muse; isto é, a narrativa submete o telespectador a dimensão de dois olhares, vigorando um páreo entre o opressor e o oprimido. De modo que somos impelidos a ver os somalis não como grandes vilões, mas como vítimas de um modelo social e econômico representado no filme por Phillips, que oprime não apenas africanos, mas, os próprios americanos. Hão de lembrar-se de quando o capitão está de partida para esta viagem, o diálogo que mantém com a esposa sobre o futuro dos filhos: a falta de perspectivas de vida, a competitividade cada vez mais massacrante.

Se olharmos para a ingenuidade e a inexperiência dos somalis e sua compreensão de que o risco que correm é em nome dos negócios, como se o seu trabalho considerado crime pudesse ser legitimado ou ao menos pudesse ser oferecido a igualação entre eles e os da embarcação, notaremos que, Greengrass busca oferecer no impasse erguido e que dá sustentação à trama, uma visão de ambos os lados, mas sem deixar de criticar o modelo estadunidense de liderança sobre a questão. Mesmo o excesso de mobilização militar para fazer valer a falácia de preservação da vida humana acima de tudo, cai por terra: o interesse maior, na verdade, estar em abrir caminhos para que se naturalize os heróis de uma nação em detrimento da vida dos marginalizados. Eis aí, outra denúncia desse filme, feita, é preciso lembrar, com certa polidez, mas sem dar margens para que o telespectador não possa ver outra leitura se não esta.

Outra reflexão inerente a narrativa de Capitão Phillips passa pelas consequências de um fenômeno nascido muito antes das invasões por piratas no mar, o da globalização: afinal, tudo parece ter encontrado uma forma de estar em todo lugar, ampliou-se as formas de contato com a tecnologia, por exemplo, (ou que faz um somali possuir armamento do exército X, e rádio de comunicação, e todo aparato para a prática do saque?), mas há algo que a globalização não conseguiu resolver – a extinção das desigualdades sociais, o fosso entre os que muito têm e os que nada têm. Isto é, não é a globalização um tema riscado da pauta de assuntos desde que o mundo reconfigurou suas fronteiras. Pelo contrário, há um novo rol de questões surgidas desde quando a ideia foi criada e posta em prática com os modelos de expansão do capital.

Não há nenhum recurso cenográfico inovador. Capitão Phillips é um filme simples e o seu diretor usa o que dispõe: a câmera trêmula, a montagem ágil, a redução da luz, a fotografia fechada, a trilha sonora ocupando o suspense da narrativa... Está interessado em fazer prevalecer a história narrada e oferecer um retrato mais ou menos acabado dos dois lados da situação. O pecado de Greengrass terá sido o de cair em alguns clichês de filme dessa natureza, como o caso de tirar o corpo fora da história para dizê-la ser imparcial ou querer provar que o que ali foi narrado é a mais pura verdade, como se esta também não fosse um modo de ver a história. Talvez se o diretor tivesse tido mais cuidado com isso, teria produzido um filme e tanto! Talvez faltou a ele ver o próprio modo com que Tom Hanks desempenha seu papel no filme – não sendo aquele herói que está acima de tudo e todos. Que esse herói é também uma construção fajuta. No mais é um filme que merece ser visto porque toca em questões muito mais complexas que as que elencamos rapidamente nestas notas.

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