Turismo (Trabalho Poético), de Carlos de Oliveira

Por Pedro Belo Clara



Não seria caso singular, no que a esta rubrica diz respeito, o facto de se apresentarem, num só artigo, duas obras de um mesmo autor. Recordo que, meses atrás, um igual método foi utilizado na apresentação de dois trabalhos poéticos de Eugénio de Andrade. Acontece que, apesar da sua aparente brevidade, acrescida da condensação temática e do estilo maioritariamente concreto, todo o sentido dessa hipotética “anexação devidamente individualizada” dilui-se quando se empreendem os primeiros passos do processo analítico. Assim sendo, apresentar-se-ão aqui, neste espaço, e com a merecida propriedade, os dois primeiros livros de poesia editados por Carlos de Oliveira, embora separados pela habitual semana de intervalo entre publicações. A razão que sustentou a escolha das primeiras (e não das derradeiras) obras verificar-se-á, estou certo, no desenrolar do artigo, mas poderei desde já adiantar a intenção de muito em breve dar destaque aos seus trabalhos mais tardios. Poderá então o leitor, por si só, constatar as significâncias de uns e outros, bem como delinear um seguramente válido registo do amadurecimento poético do autor. Mas foquemo-nos, por ora, na tarefa que temos em mãos.  

Carlos de Oliveira, destacado poeta e romancista (também se aventurou, embora em menor escala, pelos campos da crónica), nasceu em 1921 na cidade brasileira de Belém (estado do Pará), sendo descendente de emigrantes portugueses. Ainda criança, regressa a Portugal com os pais e fixa-se na região da Beira Litoral, lugar que fortemente influenciará uma importante parte da sua obra. Ainda como estudante universitário lança o seu primeiro livro, aquele que aqui se apresenta: Turismo. Decorria o ano de 1942.

A obra, de poesia, embora tenha sofrido inúmeras alterações ao longo dos anos (a versão dita “definitiva” só foi lançada em 1982, a título póstumo, na segunda edição da antologia Trabalho Poético – aquela que, para todos os efeitos, aqui se considera), apresenta um estilo muitíssimo bem definido, concreto e limpo, ainda que os efeitos do esforço de depuração só se constatem nas edições finais do seu trabalho. Por isso, é natural que nesta versão mais tardia da obra tudo se revele num estado de perfeita arrumação, limagem e brilho, uma vez que a poesia apresentada é, efectivamente, a derradeira. Na verdade, em todas as edições posteriores da sua obra poética o autor decidiu-se a cortar todas as partes que rotulou de “sobejos poéticos”, o que contribuiu para a solidificação do estilo límpido e leve que caracteriza a sua poesia final.



Turismo, no fundo, é uma obra que encerra somente três poemas, embora todos eles se componham por outros mais breves. O tema central, emergindo da sua relativa facilidade de acesso, anuncia-se de forma bem clara: uma viagem pelo tempo e pelos espaços que até à data mais terão marcado o autor.

Inicia-se a aventura poética com "Infância", poema que, como já sabemos, se subdivide em seis pequenas partes, devidamente enumeradas. As divisões são explícitas, perfeitamente organizadas e susceptíveis de uma acurada interpretação. Identifica-se aqui, neste preciso momento de leitura, um certo jogo de contrastes entre dois opostos: “céu” e a “terra” – provavelmente as primeiras recordações que o poeta guarda desse ido tempo. Desde a matéria mais pura ("Terra / sem uma gota / de céu" - I) ao manifestar do lado etéreo mais incorruptível ("Céu / sem uma gota / de terra" - VI), o leitor é guiado por cenários e sentires que evocam a era da "transmutação do sol em oiro" (III), onde tudo despontava da forma mais simples e despojada possível ("Com tão pouco / mistério" - II) e a criança que ainda não era homem tudo podia, como o glorioso centro que era desse mundo impregnado de fantasia e de infindas possibilidades ("E a nuvem / (…) / água suspensa / porque eu quis" - V). É, assim, um fresco retracto aquele que ao leitor é proposto, levando-o até, de uma forma indirecta, a invocar o tempo da sua própria infância através da exposição frontal a essas linhas que tecem uma época tão pura, tão limpa e tão luminosa.

O segundo poema deste livro, também ele fruto de divisões (cinco, neste caso), dá pelo nome de "Amazónia" e é naturalmente uma humilde homenagem à terra que o viu nascer. Mantendo o mesmo registo evocativo, embora o tempo verbal seja o presente do indicativo (uma feliz tentativa de trazer o passado para o tempo corrente), desenha paisagens belíssimas e deveras sugestivas através do "fogo doutro céu" (I) e dessas "terras verdes" e "sol moreno" (III) onde amiúde impera um silêncio que, de tão denso e tangível, se permite tocar: "Céu. / Apalpo e oiço / o silêncio (…)" - IV). Como poema intermédio que é, de igual modo os sentires que se permitem captar são intermédios: não tão luminosos como no anterior, mas não propriamente sombrios; não tão soltos e leves como antes, mas ainda não tão densos e espessos como, a espaços, virão a ser.

"Gândara" é o terceiro e último poema deste livro, o mais longo também, estendendo-se por sete partes distintas (mas notoriamente interligadas). Embora o título possa situar o imaginário do leitor num lugar erróneo (“gândara” é sinónimo de “charneca”), esclarece-se que o mesmo se refere à zona de Portugal onde Carlos de Oliveira passou grande parte da sua infância e juventude. Gândara, assim, é o nome que, de uma forma algo regional, se atribui a uma parte da Beira Litoral, compreendida entre os concelhos de Coimbra e de Aveiro, bem no centro do país. Portanto, os poemas, ou melhor, as sete faces deste extenso poema, são a perfeita evocação, registo e quase imortalização, num sadio revivalismo, de uma terra a que o poeta sente de coração pertencer. É igualmente aqui que se decifra a sua faceta de escritor regionalista que, não sendo uma constante, também não constitui uma parte de escassez ou de fátua aparição na globalidade dos temas que nos legou.  

Os contrastes que anteriormente se captaram são de novo identificados nesta parte da obra, embora se apresentem mais vincados do que em Infância e notoriamente mais esparsos e desenvoltos: luz e sombra, dia e noite, beleza e fealdade – onde a base é, claro está, a gândara que diante os olhos do poeta se distende. As imagens poéticas são na sua aparente simplicidade muito bem conseguidas, com uma dosagem de metáforas estipulada numa medida que se considerará certa, adequada ou, se preferir, perfeitamente harmoniosa. Embora, admite-se, ao longo deste poema não cesse o pulsar de uma linha de dor impossível de se diluir no conforto na paisagem.

Contudo, os contrastes apresentados e por hábil mão sublinhados constituem, por um outro lado, uma ruptura com as etapas anteriores deste livro, mas, sob uma óptica igualmente válida, conferem a "Gândara" uma substância maior, fermentada e devidamente amadurecida. Vejamos: vagueiam os olhos do leitor por retractos da região invocativos do mais luminoso pormenor, pleno de quietude, placidez e de um vazio que por vezes roça o absorto – "Gândara sem uma ruga de vento. / Sol e marasmo. / Silêncio feito de troncos / e de pasmo." (I) –, mas o mais assombroso dos cenários, personificado na imagética nocturna, negra, assombrosa e ameaçadora, pousada por sobre as fronteiras do surreal, não extingue a sua presença: "As águas negras / fazem dos sapos, / adormecidos em calhaus, / monstros sobre penedos." - II. A esta impressão acresce uma ideia de “puritanismo corrompido”, onde o poeta já não chama "às estrelas rosas", como em "Infância", antes contempla o luar "sujo e baço" que deambula por toda aquela "planície de aço". Não obstante, a efervescente quietude de um momento que se eterniza, a mesma que em tímidos momentos se descortinou em poemas anteriores, não permanece esquecida. Eis um belíssimo exemplo: "Já nem as aves cantam pela maré cheia / da tarde. / À flor da areia / só o silêncio arde." (III).

Chegados a esta derradeira parte da obra, e como necessariamente passámos pelas ruelas que anteriormente neste caminho se dispuseram, nota-se um adensar da aragem limpa e livre que bafejava os anteriores volumes. Será, assim, como que um declínio da pureza inicial, provavelmente anexado à natural evolução do tempo e ao crescimento (físico e mental) do próprio autor. Afinal, partimos dos dourados dias da infância até aos tempos moldados numa visão mais madura e, de certa forma, obscura sobre aquilo que o rodeia. É, sem dúvida, extraordinário verificar esse registo, essa gradação de matizes, num livro tão breve, tão condensado e, ao mesmo tempo, limpo e arejado, pleno de contrastes que a cada poema conferem a mais singular das cores. A riqueza vocabular aumenta, mesmo mantendo a sua simplicidade, com registo para a predominância de palavras que entre poemas se repetem como os parâmetros de uma ideia que se reforça: lagoa, maré, dia, tarde, vento, sol.

Este trabalho, nos seus capítulos iniciais, povoa-se assim de poemas enxutos e destituídos de arestas capazes de concretizar um áspero corte na percepção de leitura, sendo quase tão limpos como a amanhã que desperta após a noite tempestuosa findar. Contudo, como já pudemos concluir, este registo evolui e, tal como a queda da inocência, a pureza inicial também surge corrompida, embora as razões certas de tamanha evolução nos sejam ocultas (parece existir um breve “fosso” existencial entre "Amazónia" e "Gândara"). Mas o desejo do retrocesso não se emudece.

Nos versos finais da obra, o poeta, numa clara ideia cíclica sobre o suceder de estações, questiona: "Porque arde em mim ainda, / de mágoa e bronze, / o sol do dia?" (VIII). Antes, referira-se aos "sinos dobrados / já pela tarde fria", o que naturalmente instiga no leitor a lembrança do sino de Fernando Pessoa, aquele que se anunciava "dolente na tarde calma". Ora, tais elementos denunciam não só a influência do poeta dos heterónimos em Oliveira como a melancólica evocação da infância perdida – tempo que, apesar de ido, ainda sabe sentir em si, tacteável e palpitante. De qualquer forma, a obra é um registo fiel do estilo poético de Carlos de Oliveira, amiúde um modernista de contornos clássicos, ainda que diluídos (a rima não é rígida, mas raramente se extingue). Principalmente, deparamo-nos com um neo-realista que nos deixou um trabalho selado por uma constante evolução, um constante aprimoramento e mudança – o tal “trabalho de abelha” que a seu respeito Eugénio de Andrade, amigo próximo do autor, tão bem definiu.

Antes de terminar, importa referir que Turismo contou, na sua primeira edição, com ilustrações de Fernando Namora, destacado escritor e médico português, amigo desde os tempo da faculdade do próprio Carlos de Oliveira. A obra seria posteriormente anexada à colecção poética de dez volumes do “Novo Cancioneiro”, projecto que marcaria o início do movimento neo-realista em Portugal. Maioritariamente por essa razão, pelas intenções de escrita e posteriores projectos literários, Carlos de Oliveira seria um dos pioneiros do movimento e, como tal, considerado um digno membro da famosa “geração de 40” (juntamente com Mário Dionísio e Fernando Namora, citando apenas alguns nomes).

Falecido em 1981, em Lisboa, pouco tempo antes de completar sessenta anos de idade, Carlos de Oliveira, ao nível do estilo e do próprio jeito de entender o poema e de manifestar a poesia no papel, mereceu ser colocado num patamar que se dirá pertencer a personalidades como Eugénio de Andrade ou Sophia de Mello Breyner, na sua fase inicial (até mesmo, com algum esforço, a António Botto), uma vez que certas similaridades entre todos são passíveis de serem identificadas. Contudo, a realidade é sempre um pouco mais injusta: o legado literário de Carlos de Oliveira tem oxidado com o implacável passar do tempo, levando a um inevitável esquecimento das suas maiores valências. E ele que por vezes pareceu assumir um papel de continuador, através do lirismos de certas imagens, da grande escola lírica portuguesa… Mas sem nunca cair, diga-se, em excessos redondamente barrocos.

Também por esse lamentável motivo, e porque os poetas urgem permanecer sempre vivos entre nós, se justifica o artigo desta semana.


Sol e vento,
lábios de maresia
na lagoa a coalhar,
onda sobre onda, mar
e dia.


 ***

Pedro Belo Clara é colunista do Letras in.verso e re.verso. Por decisão do editor do blog, nos textos aqui publicados preservamos a grafia original portuguesa. Nascido em Lisboa, Pedro é formado em Gestão Empresarial e pós-graduado em Comunicação de Marketing. Atualmente centrado em sua atividade de formador e de escritor, participou, com seus trabalhos literários, em exposições de pintura e em diversas coletâneas de poesia lusófona, tendo sido igualmente preletor de sessões literárias. Colaborador e membro de portais artísticos, assim como colunista de revistas e blogues literários, tanto portugueses como brasileiros, é autor dos livros A jornada da loucura (2010), Nova era (2011), Palavras de luz (2012) e O velho sábio das montanhas (2013) – sendo os dois primeiros de poesia. Outros trabalhos poderão ser igualmente encontrados nos blogues pessoais do autor – Recortes do Real (artigos e crônicas diversas) e O Manifesto (artigos políticos). 

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