Relendo "O sorriso do lagarto" 25 anos depois: homenagem a João Ubaldo Ribeiro (1941-2014)

Por Alfredo Monte



Há 25 anos, João Ubaldo Ribeiro lançava O sorriso do lagarto, e parecia-me naquele momento — juízo que prevaleceu durante certa fase (ratificado com o aparecimento de O feitiço da Ilha do Pavão, de 1997 e A casa dos budas ditosos, de 1999) — a indicação clara de que o outrora grande prosador baiano estava pendendo para o comercial, no sentido de aclimatar fórmulas do Best-seller internacional standard, numa mistura de triângulo amoroso com elementos de ficção científica e suspense (não faltavam nem cenas clichês como a da conversa entre o herói e o cientista-vilão, quando este explica seus planos para o adversário que tentava desvendá-los). De fato, as vendas foram expressivas e houve até uma adaptação televisiva, onde todos os elementos folhetinescos eram realçados até a caricatura.

A prevenção talvez fosse fruto do impacto da leitura de alguns de seus primeiros títulos: Sargento Getúlio (publicado quando ele tinha apenas 30 anos, em 1971), uma das obras-primas fundamentais do romance brasileiro, assim como o menos conhecido Vila Real, de 1979, bem como duas extraordinárias coletâneas de contos, Vencecavalo e o outro povo (1974) e Livro de histórias (1981).

Ainda hoje os considero as joias da coroa do reinado ubaldiano, com sua mescla genial de fabulação, experimentação linguística (o uso da língua em João Ubaldo Ribeiro é um caso à parte)¹ e escavação de certa mentalidade (aquela definida, para o bem e para o mal, como o “atraso” nacional).

Devo reconhecer que sou minoria: a maior parte dos leitores e críticos celebra Viva o povo brasileiro (1984) como obra maior. Para mim (pelo menos enquanto não faço uma releitura), esse romance ciclópico iniciou a “diluição” agravada pelos títulos posteriores, impressão (ou equívoco) que pode ser consequência do Zeitgeist, do espírito daquele tempo, a desilusão com a chamada Nova República (civil, porém espúria, acordo de caciques, numa eleição indireta): alguns leitores², entre os quais me incluo, consideraram certos romances com fôlego épico, “histórias de fundação” da identidade nacional, mais ou menos explícitas (além do livro de João Ubaldo, A república dos sonhos, de Nélida Piñon, e Tocaia Grande, de Jorge Amado, seriam outros fortes exemplos) como empreendimentos ficcionais legitimadores de um ufanismo carente de base, um tanto quanto fabricado³.


Em 2002, porém, apareceu o surpreendente Diário do farol, com seu narrador insidioso, ominoso, terrível, e os pesos e as medidas tiveram de ser reavaliados. Saudando a volta do “verdadeiro” João Ubaldo (a essa altura, adorado por milhares de leitores de suas crônicas), impossível não rever juízos anteriores. Assim, na esteira do choque com sua morte súbita, resolvi reler o romance de um quarto de século atrás, encantando-me com o seu vigor e sua oportuna atualidade.

Em O sorriso do lagarto, se por um lado se atenua aquela ousadia experimental do início, há um domínio da técnica narrativa tradicional que se torna mais admirável ainda pelo que apresenta de especulação nos domínios da ciência, algo raro na nossa alta ficção, e que adquiriu um “quê” de profético (lembremos que o romance apareceu bem antes dos Arquivos X, da onipresença da internet e da vulgarização das tecnologias mais evidenciadas hoje em dia, inclusive a da pesquisa genética).

O político (embora vindo das lutas estudantis, tornou-se corrupto e venal) Ângelo Marcos, abalado pelo tratamento de um câncer, passa uma temporada na Ilha de Itaparica. Ali, sua esposa, Ana Clara, se apaixona pelo dono de uma peixaria, João Pedroso, na verdade um biólogo manqué, meio fracassado e beberrão: “não nasci para plantar árvores nem para escrever livros e sou praticamente donzelo, aliás sou um donzelo militante, um punheteiro. Eu nasci para estudar, investigar, descobrir, interpretar. Mas não faço nada disso e com certeza é esta a razão por que sinto o Mal me rondando...”, ele desabafa, a certa altura, com seu amigo, padre Monteirinho.

O Mal que ronda Itaparica e bafeja João Pedroso é a existência de seres “monstruosos”, híbridos que foram criados em experiências científicas comandadas por um eminente médico, Lúcio Nemésio. O até então nada heroico biólogo-peixeiro se coloca no caminho de duas forças poderosas: o representante de uma elite grotesca em sua desfaçatez (e mesmo a ascensão da esquerda na nossa democracia não deixou de acirrar esse comportamento predatório, conforme vimos nos últimos 25 anos), Ângelo Marcos, através da sua relação com Ana Clara (ameaçando o casamento dele); e o representante de uma ciência sem ética, em nada diferente (e certamente praticada com muito empenho, apesar das “leis”, não tenha dúvida, leitor) das experiências em campos nazistas (e que chocaram tanto o mundo civilizado), o doutor que carrega a nêmese no nome, ao insistir em denunciar a existência das criaturas. É quase certo que, apesar do seu tardio despertar heroico, seu destino será trágico...

Decerto as questões levantadas pelo romance são riquíssimas e candentes (infelizmente causando um desalento enorme no leitor). O que me faz, entretanto, me penitenciar do apressado julgamento de anos atrás é a vitalidade com que o narrador, em cada segmento, se cola aos cacoetes de linguagem e da mente de cada personagem4. Dessa forma, até os clichês mais desaforados, até a cafonice tremenda de certas descrições eróticas podem ser faturados na conta daqueles que vivem o enredo, pois estão em cena os vícios e virtudes de sua classe, de sua formação específica5. Nesse sentido, Ângelo Marcos é um triunfo de criação de um caractere ficcional. Postado entre os discursos (em primeira pessoa) das mentalidades perturbadoras, diríamos até deformadas, do Sargento Getúlio e do narrador de Diário do farol, ele nada a fica a dever a eles. É outro prisma de um espelho implacável das mazelas nacionais.

Que escritor perdemos no dia 18 de julho!

Notas:
¹ Como será que Patricia Secco (aquela mesma que simplificou o vocabulário dos textos de Machado de Assis) enfrentaria o trecho abaixo do extraordinário Sargento Getúlio, uma das provas mais veementes, se fora preciso uma prova ainda, de que a posse de vocabulário não é um luxo, e sim uma maneira de dar mais extensão, uma sintonia mais fina, não só à apreensão do real à nossa volta, mas também dos nossos processos e mecanismos mentais lidando com esse "à nossa volta" (e por isso, a literatura triunfa na linguagem "específica"): "Plantas e mulheres reimosas, possibilitando chagas, bichos de muita aleiva, potós, lacrais, piolhos de cobra, veja. Matei uns três infelizes assim, pelo cima de uns quipás, sendo que um chegou devagar no chão, receando os espinhos sem dúvida. Assunte se quem vai morrer se incomoda com conforto. Fosse dado a sangria, terminava o vivente no ferro, porém faz um barulho esquisito e não é asseado por causo de todo aquele esguincho que sai. E dessa forma acertei um disparo no cachaço, procurando atitude para não desperdiçar munição. Inda xinguei por me obrigar a caçar pelessas catingas, arremetido naquela soareira, estropeando as reiúnas novas naquelas catanduvas embarecentas. Só se vê cabeça de frade, macambira, cantingueira e urubu. Nem ouviu mais o xingamento, amunhecou e esfriou.Trabalheira ordinária. Ias me fazer chegar aonde? Itaspicuru? Vitória da Conquista? Sei lá. Não tem limites para a frouxidão que faz o homem dar nas canelas e botar a alma no mundo, correndo do destino. A hora de cada um é a hora de cada um. O bexiguento lá estrebuchado, agora ancho nos espinhos, como se o chão fosse forrado de barriguda. Que diferença faz? Quem já viu o derradeiro tiro sabe como é. Aquela sacudida no corpo, uma estremidela de uma vez só. Depois os urubus, que a tarefa aí já não é mais de punição, é de limpeza...” ?

² Como Flora Süssekind, cf. “Literatura e Vida Literária” (Ed. Jorge Zahar, 1985)

³ Não custa lembrar que “O sorriso do lagarto” também aparece num ano de forte carga simbólica, ano das eleições diretas, enfim, que polarizaram Collor e Lula, com a vitória do primeiro. Evidentemente, seria preciso verificar se, passados 30 anos, tal associação dos três romances à Nova República justifica uma visão parcimoniosa do seu valor literário.

Como exemplo, um momento em que Ângelo Marcos está perorando sobre a raça negra, em função de ter tratado de forma injuriosa um empregado:

“Parou de repente, achou que estava se explicando em demasia, dando importância excessiva a um incidente corriqueiro, afinal de contas só tinha feito umas brincadeiras com um negro da casa, praticamente da família, já vira brincadeiras mais pesadas entre primos e até irmãos. E agora está na moda esse negócio de fazer caras santimoniais, toda vez que alguém fala de uma coisa perfeitamente comum a respeito de pretos. É como judeu. Se você não empresta sua escova de dentes a um judeu, ele chama você de antissemita, existe uma história verídica sobre isso. Agora tudo é preconceito racial, até reconhecer que um sujeito é preto é preconceito racial. Que besteira, encarar a realidade não é preconceito, é apenas objetividade. Por exemplo, é uma verdade objetiva, que qualquer um pode comprovar, que o preto está mais próximo do chimpanzé ou do gorila do que nós, verdade indiscutível, não adianta querer obscurecer as evidências dos fatos...”

O “vilão” de O sorriso do lagarto é memorável em outros terrenos minados, basta observar seu discurso dissociado da prática com relação ao homossexualismo, e como esta dissociação corresponde a todo um lado perverso e oculto (a obsessão em matar pardais), inclusive pela ligação sexual com um matador desde a juventude (e a quem ele encomendará a execução do amante da esposa). Note-se, de passagem, que o matador-liaison dangereux torna-se um ruralista de Goiás.

Mesmo assim, ainda acho uma forçada de mão a cena, já citada, de confronto direto entre João Pedroso (herói) e Nemésio (cientista-vilão).



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