Contos do quarto minguante, de João Pedro Mésseder

Por Pedro Belo Clara
 
João Pedro Mésseder

É bastante provável que o nome do autor em epígrafe seja desconhecido ou simplesmente cause estranheza na sua apreensão à grande maioria dos leitores que sobre estas linhas se debruçarem. No entanto, detém presença numa panóplia impressionante de títulos compostos sobre os mais diversos géneros, desde a poesia ao teatro. Se contarmos a partir do ano em que o dito autor se estreou, o de 1999, encontraremos mais de quarenta (!) títulos publicados em estilos literários bem distintos.

Na verdade, João Pedro Mésseder, pseudónimo de José António Gomes, professor universitário nascido em 1957 na cidade do Porto, nem prima por ser um adepto do conto, o conteúdo do livro hoje em discussão. Além da peculiaridade de ao longo da carreira ter editado trabalhos numa óptica de nomenclatura bicéfala ou bipartida (isto é, recorrendo ao pseudónimo e ao nome de baptismo consoante o estilo dos projectos), trata-se de um autor que se distingue pela preferência poética, como atrás referimos, e pela literatura juvenil. Algumas das suas obras infantis, inclusive, encontram-se actualmente publicadas no Brasil e em Espanha, não obstante as diversas antologias em que participou e que se encontram espalhadas por mercados como o alemão, o italiano e, uma vez mais, o brasileiro.

Recentemente publicado, em Maio de 2014, este título promete algo de novo. Na antecâmara no que tínhamos vindo a afirmar, tal premissa poderá ser concluída. A obra, desde logo, apresenta-se como um livro breve, à semelhança de outros trabalhos do autor, munido de pouco mais de trinta contos, não ultrapassando a grande maioria deles sequer a página que o apresenta. No entanto, a diversidade dos mesmos é notável, indo as linhas que os tecem desde os domínios da exposição de ideias à apresentação de retratos de pessoas e lugares e até ao registo de situações em tom que lembra o da crónica narrativa.



Com a dose certa de poesia, como aliás o seu título sugere, Os contos do quarto minguante surgem amiúde de um realismo metaforizado. Frutos duma escrita inteligente, ritmada e concisa, naturalmente maturada, descortina-se nas narrativas o acto de observação que sustentou a criação do seu teor. Por esse efeito, poderemos considerar Mésseder um autor que neste trabalho assume muitas vezes o papel de um retratador. Basta, para tal, citar o conto de abertura, “O cineasta”, onde uma paisagem em suave andamento se pinta à medida que cada palavra é lida e devidamente absorvida:

«As raparigas passeiam e riem-se. Outros dormem  à sombra das árvores. A aldeia é pequena. Vendem-se alhos, pimentos e sorrisos. À beira água, uma donzela penteia-se, os cavalos bebem, um anão chapinha. Cabras, ovelhas, joanas por toda a parte.»

Mas também não se coíbe de imprimir um apurado sentido crítico em alguns dos contos produzidos, onde os ecos da realidade, social e quotidiana, detêm o seu devido espaço de existência. Neles, a ironia mais fina e o carácter mordaz das insinuações assumem um lugar de amplo destaque, seja pela crítica não directa a costumes e modos de pensar (sendo a geral apatia do cidadão conformista o alvo da sua maior atenção) ou pelo mero retrato de determinadas realidades sociais. São exemplos desta tendência os contos que, em sua devida vez, passamos a citar – “Sensatez”, “O anulado” e “Pretérito quase perfeito”: 

«"Acabou-se o tempo do emprego para toda a vida”. (…) Avisadas palavras ditas por um homem sensato (…) com emprego seguro para a vida. Tal visão estratégica (…) fora determinante na sua nomeação (…) para um cargo político».

«Votava há mais de vinte e cinco anos, dando assim o seu concurso para a alternância democrática. Fosse qual fosse, o partido que elegia era sempre vencedor. (…) Conhecessem-no e decerto lhe agradeceriam, mudamente, o modo como ele próprio se anulara. No respeito pela democracia, é certo, pois que a alternância dos iguais continuava assegurada.»

«Certificado um milagre, naquele mês beatificaram um papa, uns príncipes estrangeiros contraíram matrimónio e o clube de futebol – paixão antiga – deu-lhe uma alegria: conquistou o campeonato. (…) Tudo, enfim, ele testemunhou nessa maravilhosa caixa que mudou o mundo... para que o mundo não mudasse.»

Dentro desta inclinação temática, o autor não cessa de trazer para o interior dos seus trabalhos relatos de eventos verídicos e, sobre a sua malha, tecer a devida – e pessoal – consideração. Em “Da democracia”, por forma a ilustrar o que foi dito, encontraremos a recuperação do famoso episódio entre o falecido Presidente da Venezuela, Hugo Chávez, e o anterior monarca espanhol, Juan Carlos («o rei matador de elefantes», como sem complacência é apelidado). Até a mais famosa frase extraída dos ditames então extrapolados detém a sua vez, embora não em contornos de conclusão: «Porque não te calas?».

No mesmo sentido criativo encaixa-se “O país sem governo”, conto que, pela célere (e naturalmente imprudente) leitura da epígrafe ostentada, bem poderia referir-se ao próprio Portugal. Contudo, a situação exposta é aquela que a Bélgica atravessou anos atrás, aquando do seu processo de indefinição governativa. Assim se comprova que a realidade social, seja nacional ou estrangeira, e a sua consequente evolução é algo a que Mésseder não permanece indiferente, fazendo dela, inclusive, um trampolim para a exposição de ideias e posições de teor político, onde, ainda que de um modo muito diluído, se denota uma certa inclinação para a ideologia anarquista.

Além do exposto, também adquirem forma explorações temáticas que surgem quase como uma consequência da base observadora que caracteriza o autor e da sua propensão para a abordagem de assuntos quotidianos, sejam eles políticos ou meramente comportamentais. No primeiro caso, o da observação, diversos contos têm a sua correspondência no universo que os veste: o das viagens. É flagrante exemplo disso mesmo o “Comboio da noite”, divido por três partes (sempre breves, como já sabemos): “Mulheres conversando” («Trinta anos e muitos. (…) As outras (…) bebem-lhe as palavras experientes.»); “Mulheres sós” («Deprimem um pouco estes bares de comboio onde se bebe uma cerveja triste») e “Homens” («Regressam a casa ressentidos, sem outra direcção que a dos carris (...)»). É aqui que a veia realista, ainda beneficiando dos floreados adornos da metáfora que, em todo o caso, é sempre sóbria, atinge o seu máximo expoente.

Não poderemos terminar esta discussão sem sublinhar os agradáveis e até divertidos apólogos que, com esse mesmo nome, surgem ao longo deste livro. Ostentando sempre o mesmo título, “Apólogo”, são três no seu total e desenvolvem-se a partir do descontraído diálogo entre dois livros. Naturalmente, esse é o pretexto para que pertinentes mensagens e reflexões sejam passadas ao leitor, instigando até uma certa meditação por parte de quem os ler. Neste parâmetro, denota-se facilmente as influências da literatura infantil que Mésseder frequentemente produz.

Aprimorando a súmula deste trabalho, poderemos do mesmo dizer que é breve, mas igualmente diverso e interessante em termos de conteúdo que oscila entre o registo de ideias e um labor de percepções captadas. Apesar da aparente concisão, existe um convite, sempre desafiador, à leitura entre-linhas. Por isso, o modelo que ao leitor é proposto dota-se de uma lustrosa criatividade e de uma bem administrada originalidade, sendo o resultado final algo de muito convincente. E, sem totalizar sequer cinquenta páginas ditas “úteis”, isto é, de teor puramente narrativo, é certo que Contos do quarto minguante é um livro que fielmente cumpre a finalidade a que se propôs.


«A visão acromática de certos daltónicos é perigosa. Tende a ver na vida colectiva um interminável, estéril conflito entre o preto e o branco. Qualquer que seja  a cor oculta sobre o preto percebido pelo paciente, acontece que esta última, dominante, é a cor da fome e do ressentimento social (…). Convém, pois, manter debaixo de olho o olho do daltónico de visão acromática. (…) A revelar-se impossível a correcção, impõem-se medidas drásticas, pois é sinal de que o paciente se tornou um ser inviável.» (“Monólogo oftalmológico”).


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Pedro Belo Clara é colunista do Letras in.verso e re.verso. Por decisão do editor do blog, nos textos aqui publicados preservamos a grafia original portuguesa. Nascido em Lisboa, Pedro é formado em Gestão Empresarial e pós-graduado em Comunicação de Marketing. Atualmente centrado em sua atividade de formador e de escritor, participou, com seus trabalhos literários, em exposições de pintura e em diversas coletâneas de poesia lusófona, tendo sido igualmente preletor de sessões literárias. Colaborador e membro de portais artísticos, assim como colunista de revistas e blogues literários, tanto portugueses como brasileiros, é autor dos livros A jornada da loucura (2010), Nova era (2011), Palavras de luz (2012) e O velho sábio das montanhas (2013) – sendo os dois primeiros de poesia. Outros trabalhos poderão ser igualmente encontrados no blogue pessoal do autor – Recortes do Real (artigos e crônicas diversas).
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