Um herói de nosso tempo, Mikhail Lermontov ou o mito romântico

Mikhail Lermontov


1. Rebelde sem causa. Mikhail Lermontov é considerado o Byron russo. Seguiu o roteiro do mito romântico: fim prematuro e trágico num duelo aos 27 anos. Acontecimento que só engrandeceu sua figura depois de descobrir-se àquela altura que jovem já havia deixado uma obra deslumbrante mas ainda em desenvolvimento e o exemplo de uma vida irreverente, desmedida.

Depois da morte de Púchkin, também num duelo, esse cantor do individualismo acusou dessa perda a corte czarista. Não foi uma acusação formal, foi um poema. Um poema que custou a Lermontov a condenação ao seu primeiro desterro no Cáucaso, na Sibéria do sul. O escritor torna-se mais um a integrar a grande lista de escritores russos que sofreram com a censura e a represália.

Para o Cáucaso do Norte, o império russo impôs sua expansão a sangue e fogo.  Sua paisagem montanhosa, o cenário ideal para o mal-estar romântico, constituía também um lugar de encontro com a alteridade muçulmana e era um espaço de liberdade para os banidos da corte. Como se sabe, o conflito no Cáucaso permaneceu latente na época pós-soviética. Um diário russo, de Anna Politkóvsjaya; A guerra mais cruel, de Arkadi Bábchenko (ainda sem tradução no Brasil); Patologias, de Zakhar Prilepin (também inédito por aqui); Cadernos russos: a guerra esquecida do Cáucaso, de Igort; ou Salam, Dalgat, de Alisa Ganíeva (ainda outro inédito no nosso país) dão conta desse período.

2. Pietchórin. “Um herói de nosso tempo, meus senhores, é, efetivamente, um retrato, mas não é de um homem só: é um registro constituído pelos vícios, em pleno desenvolvimento, de nossa geração”, escreveu Lermontov sobre a edição de O herói de nosso tempo em resposta às críticas vertidas contra este conjunto de cinco histórias.

Aqui têm um espelho no qual o leitor deve se olhar, ele diz, e não se surpreendam. Pietchórin, protagonista do primeiro romance em prosa significativa da literatura russa, nos deixa em contato com diversas vozes narrativas e com uma ordem cronológica deslocada. Cínico e arrogante, carcomido pelo tédio, demoníaco, pessimista, magnético, sensível, fronteiriço com o niilismo; o único interesse que mantém Pietchórin é viajar.



3. Lermontov versus Nabokov. Como tradutor, Nabokov só o comparou com as altas literaturas. Um herói de nosso tempo, diz o autor de Lolita, foi um desses comparáveis ao valioso exercício literário que representa Shakespeare para a língua inglesa, por exemplo.

Nabokov, quem primeiro traduziu Lermontov para o idioma de Shakespeare, recriou um texto que é a fusão entre a tradução, o comentário, a criação e o duelo intelectual. As notas de fim de página são muito valiosas. Numa delas censura Lermontov quando Pietchórin não se levanta quando da entrada em cena da princesa Meri: “Estranho comportamento!” Quanto o narrador diz “Nos corações sensíveis, o sentimento da formosura e majestade da natureza é cem vezes mais vivo que em nós, que narramos, admiramos, valendo-nos da palavra e do papel!”, Nabokov – inteligente entomólogo – nega o texto: “Esta é, supostamente, uma noção romântica. É completamente falsa”.

4. A roleta russa. Para um romântico há melhor forma de comprovar-se um dono de seu destino apontando a si uma arma sem saber se está carregada e apertar o gatilho? É a questão que se coloca em O fatalista, a história que encerra Um herói de nosso tempo. O tenente Vúlich aceita a aposta de Pietchórin até às últimas consequências: leva a cabeça o cano de uma pistola escolhida à sorte.  Esta é a primeira referência literária a este jogo/aposta tal como conhecemos hoje.

5. O poeta do Cáucaso, um mito romântico. Além do canto à morte de Púchkin, acontecimento que lhe vale esse epíteto, Lermontov, antes de ser o romancista de O herói de nosso tempo, cuja tradução brasileira devemos ao sempre atento tradutor Paulo Bezerra, é tido como o poeta nacional que deu pulso às letras para continuidade do projeto literário desse período. E é como poeta que ele é sempre lembrado na Rússia. Embora seja preciso dizer que este é um dos textos em prosa mais significativos do grande século literário russo.

6. Uma biografia. Lido como romance, mas a crítica empurra-o para o rol de uma biografia de cunho psicológico, em que cada história que compõe O herói mostra um determinado traço caracterizador da personalidade complexa do herói. Tudo se reflete na elaboração de um estado de alma que se confunde com a própria vivência do autor. Os tormentos e as paixões. Bela, Maksim Maksímitch, Taman, A princesinha Mary e O fatalista são estruturados como novelas a dar forma um texto mais acabado. Publicado pela primeira vez em 1840, um ano antes da morte de Lermontov. É uma experiência indispensável à leitura.

* texto escrito a partir de notas de "El mito romántico", de Marta Rébon, El País.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Boletim Letras 360º #576

O som do rugido da onça, de Micheliny Verunschk

Boletim Letras 360º #575

Boletim Letras 360º #570

Dalton por Dalton

Boletim Letras 360º #574