A nova edição de o Livro do desassossego



“É o único escritor morto que publica mais que escritores vivos; um milagre, um símbolo da modernidade”. Pessoa não inventava personagens, inventava poetas, escritores completos. O entusiasmo é de Antonio Sáez Delgado, tradutor da nova versão de o Livro do desassossego para o espanhol. A edição chega por lá nesta semana. No Brasil, ainda circula a versão organizada por Richard Zenith e publicada pela Companhia das Letras em dois formatos, um normal e outro de bolso; mas, como a editora Tinta da China tem, timidamente, adentrado o mercado nacional, é  possível encontrar também a versão mais recente do livro atribuído a Bernardo Soares organizada pelo também pessoano Jerónimo Pizarro. A referência, portanto, de Sáez Delgado, é sobre essa edição recente e não a organizada por Zenith.

Enquanto isso, a nova versão do Livro do desassossego não é mais nenhuma uma obra-mestra de Fernando Pessoa; quando muito, uma releitura diferente como é dado às releituras, de um título que desde sua publicação tem servido de debate entre os estudiosos da obra pessoana. A versão apresentada por Pizarro, portanto, pouco tem a ver com as versões anteriores. Isso porque, pela primeira vez, por exemplo, o organizador tem a preocupação de uma releitura dos textos originais com o intuito de galgar entre a quantidade ampla de fragmentos uma certa cronologia dos textos. Com isso, essa versão pode eliminar passagens que não pertenciam às versões anteriores e unificar outras (foi de 700 para 450 delas). De modo que, é esta mais que uma reescritura; é uma lapidação daquilo que mesmo o próprio Pessoa não chegou a escrever deveras. O pesquisador pessoano consegue então, deixar o livro um tanto mais claro frente à sinuosidade das outras versões. O que, de certo, é já uma grande ambição.



A tarefa muito se assemelha ao exercício ainda contemporâneo dos que sonham com o Santo Graal, dos que buscam a fórmula do ouro; isso porque, para além da grande leva de fragmentos que deu forma à obra, tais textos estiveram imersos entre outra extensa quantidade de  escritos diante dos quais os pesquisadores já há muito têm trabalhado. O famoso baú de Pessoa tem mais de trinta mil folhas manuscritas ou datilografadas. A gênese do Livro do desassossego foi esta: estava numa ordem ou numa composição “incoerente”. 

Além da obra construída como se um grande quebra-cabeças, o restante dos escritos deixados por Pessoa produzidos eles, grande parte, muito tempo antes dos anos que antecederam sua morte, são ainda partes de uma herança de valor incalculável deixada à humanidade, mesmo ainda não sendo possível se calcular o que ainda não se foi publicado. Oitenta anos depois, esse baú segue provocando pesquisadores, editores, tradutores e apaixonados leitores de um autor que compôs uma obra desordenada, uma personalidade tão misantropa como poliédrica.

Para que o Livro do desassossego viesse é a lume em 1982, se passaram 47 anos de pesquisa, o mesmo tempo que viveu Pessoa. O tardar se deu, claro está, às custas de se ordenar os fragmentos e buscar uma certeza em torno da autoria dos textos. Seriam eles de Pessoa ou de mais um heterônimo? A variabilidade da forma, mas sua aproximação, foi o que deu autonomia para que pesquisadores atribuíssem, inicialmente, não ao poeta português,  mas a um dos heterônimos forjados por ele – Bernardo Soares. Mesmo assim, esses escritos seguiram, depois de um certo senso em torno da sua organização, provocando o desconcerto. E não findará, claro está, com a chegada dessa nova versão da obra. Talvez seja essa justamente a forma do livro: não ter forma.

“Pessoa é um constante work in progress, um processo inesgotável de criação e atualização textual”, diz Sáez, que é professor de tradução e literatura comparada na Universidade de Évora desde 1995 e premiado neste mesmo ano com o prestigiado prêmio Eduardo Lourenço. “É um livro [o do desassossego] construído com a acumulação de fragmentos e a ele seu autor nunca chegou a dar forma definitiva – embora título e autoria sejam nem um pouco estranhas a seu mundo, marcado por um ciclo de escrita muito amplo e que persegue uma evolução estética do autor real e da obra, Pessoa, e os dois autores fictícios por ele criados, os semi-heterônimos Vicente Guedes e Bernardo Soares”. Guedes é outro heterônimo a quem os pesquisadores agora atribuem parte da escrita do Livro do desassossego.


A edição reorganizada por Jerónimo Pizarro é trabalho de uma equipe de pesquisadores cujo objetivo de sua organização é estabelecer uma ordem ao caos deixado por Pessoa. O grupo já deu a conhecimento várias edições críticas (cf. vimos acompanhando assiduamente neste espaço); seu interesse, portanto, está primeiro em dar forma a um campo mais ou menos seguro pelo qual outras gerações de estudiosos e também de leitores comuns possam melhor trafegar. Além da equipe a que pertence o professor colombiano, há outra patente na Universidade Nova de Lisboa. Mais antiga, essa tem estado preocupada mais em tornar a obra do português acessível aos leitores comuns e trata-se de um grupo dedicado mais a organizar a obra poética de Pessoa porque partem do princípio de que sua poesia é superior à prosa. Daí já se publicou cinco extensos volumes com a obra do gênero, todos eles encerrados pelo próprio poeta. Faltam vir a lume mais outros cinco tomos cuja data ainda não está próxima.

O desassossego de Pizarro começou desde quando foi autorizado pela Biblioteca Nacional de Portugal a, mesmo já não integrando a equipe técnica do primeiro grupo de pesquisadores, dá continuidade com os trabalhos de investigação. Todo o trabalho de reescrita do Livro nasceu do zero, do contato com os manuscritos e datiloscritos atribuídos à obra.

Com os cortes feitos e a junção de outros fragmentos, a obra ora apresentada além de mais curta, aparece dividida em duas fases de escrita: a de textos escritos entre 1913 e 1920 cujo primeiro heterônimo seria aquele citado por Sáez, Vicente Guedes; a segunda fase com textos entre 1929 e 1934, esses sim, escritos por Bernardo Soares. “A leitura é mais clara. A primeira parte tem um estilo simbolista-decadente, mais esteticista”, explica Pizarro. “A segunda parte é mais sóbria e embora semelhante ao um rol de notas, aparenta uma unidade; é sempre sobre a reflexão do tédio e da inação, da perplexidade ante a condição humana, do ceticismo e o elemento de união é a cidade de Lisboa, chave para a atmosfera do livro. Pessoa é Lisboa.”

Mesmo assim, é possível que a reorganização proposta por Pizarro não signifique um fechamento da edição. Segundo um levantamento realizado pela Universidade de Coimbra,  atualmente existem 16 edições diferentes da obra só em Portugal. Possivelmente cada tradução a outro idioma, por exemplo, represente outras mudanças na obra. “Há valores subjetivos do tradutor que propõem soluções diferentes para o texto, pelo que se pode compreender que haja milhões de Desassossegos”, sublinha Pizarro.

Sáez sublinha que o ordenamento cronológico nos informa da evolução da escrita da obra; outros haviam organizado por aproximação temática ou por fases, mas não cronologicamente. “Assim vemos que o livro evolui e o escritor também; o que tentava Pessoa em 1910 é radicalmente diferente de seu estilo de escrita nos anos 30”. Pizarro diz o porquê dessa versão cronológica: “Nos textos da primeira parte do Livro do desassossego, que corresponde a 1913-1918, Pessoa nunca coloca datas. É um diário simbolista, de paisagens, lagos, ninfas. No segundo corpus, que vai de 1928 a 1934, tudo está concluído. É a parte centrada na cidade de Lisboa. A cidade, seu tempo, seu clima vai absorvendo todo o livro e se abandona absolutamente aquele simbolismo”.

“A grande mudança nessa organização cronológica dos textos é também sua seleção. O Desassossego era um livro muito impuro”, diz Pizarro. “Havia incluído muita coisa que Pessoa não escreveu. É um livro canonizado antes do tempo, em termos filológicos, que tinha textos que não pertencem a ele e numa ordem póstuma e subjetiva. Muitos outros fragmentos não eram do livro; as edições portuguesas variam entre 400 e 700 fragmentos.” Para o pesquisador pessoano o leitor encontra no novo Desassossego uma trajetória diáfana de um work in progress tão decisivo quanto o Ulysses de Joyce.

Outra marca do trabalho em que Pizarro está metido, além da leva de textos inéditos apresentados nos últimos anos, foi alcançar a publicação da obra completa de Álvaro de Campos, a prosa e a poesia reunida num só volume. “Sempre tem se dado prevalência à poesia de Pessoa”, observa o pesquisador, “mas é um escritor muitíssimo mais amplo, abarca o ensaio político, a filosofia, a psicologia, o esoterismo, a astrologia... durante décadas os pesquisadores têm se concentrado em sua poesia. Reduziram 30 mil páginas escritas às 4 mil da poesia.”

Um trabalho de fôlego desses tem revelado aos leitores outra imagem de Pessoa; deixa de ser o poeta misantropo e distraído para ser um escritor curioso e preocupado com muitos dos acontecimentos sociais e históricos de seu tempo. “Pessoa é o maior milagre da literatura dos últimos 30 anos. Morreu bastante esquecido; os únicos que o publicavam eram seus amigos. Apenas meio século depois de sua morte, seus restos foram transladados para o Monastério dos Jerónimos, reconhecido por seu próprio país como se merece”, relembra Sáez. “Eu o colocaria ao lado de Borges como o maior escritor do século XX”, conclui.

Sabedores de que o Livro do desassossego foi escrito a quatro mãos por assim dizer, fica-nos a pergunta? Por que outros eus? Talvez porque sejam outros eus encarregados de sofrer por nós, passar por nossas angústias, pelo que sofremos; ou sonhar com nós com outra possibilidade de compreensão de nós.

Pessoa concebeu este livro único por longos 25 anos. Fez sua encomenda a Guedes para que o escrevesse, depois a Soares, gente real, que sofreu pela sua incontida tristeza, seu infortúnio nato. Soares, já sabemos, um obscuro auxiliar de escrita na Rua dos Douradores, decide sonhar sua vida que tanto se parece a vida real dele próprio. Pessoa, funcionário desconhecido, porém atento e sensível como um Baudelaire, incorruptível e orgulhoso como um Nietzsche. Assim, foi como converteu seu desassossego no diário de um inadaptado. Todos os que escrevem um diário o são, mas nunca ninguém haverá visto com maior delicadeza aquela Lisboa cosmopolita e provinciana, a dos pobres homens, poetas ou barbeiros, empregados ou rentistas que “têm como eu seu futuro no seu passado”.

Não se diz neste livro coisas tão abismais e íntimas sobre cada um nós. Mas é esta uma escrita que Soares romanceia, um poema do próprio Pessoa colocado na boca de Guedes, um grande diário sobre Lisboa... Além de sua estrutura complexa, caleidoscópica, é este também mais que um livro, é nossa própria e gris biografia, é a consciência ou a recordação daquilo que toda vez passamos diante da realidade. É uma obra vestida de vida própria entre sonhos e realidades.

Ligações a esta post:


*Texto escrito a partir de notas de "Pessoa desassossegado pero en orden", de Javier Martín, e "Diario de un inadaptado", de Andrés Trapiello, El País


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