Francisco e a razão institucional

Por Miguel Koleff




“Se a razão é uma espada curta e o poder uma pedra atirada de longe, estão trocados aqui os papéis de David e Golias.”

(Clara, em A segunda vida de Francisco de Assis)


Por incrível que pareça, falar de razão institucional deixa de ser uma fábula quando se pensa a sério. Há organizações que repetem os preceitos de sua fundação contra vento e maré e não se preocupam em parecer irracionais em relação aos novos tempos; outras se acomodam ao ritmo das circunstâncias, se atualizam. O vento as leva ao melhor porto e se deixam conduzir sem problemas. Entre umas e outras estão as que mudam de perspectivas sem medir a consequência de seus gestos. Para Saramago, a Igreja Católica é um das mais acomodadas. E se mantém com tanta impunidade que parece que estamos falando do mesmo quando – sem querer – mudamos de assunto.

Um texto teatro escrito em 1987 põe o dedo na chaga dessa questão. Intitula-se A segunda vida de Francisco de Assis e surpreende desde essa nomenclatura. Mais que uma segunda vida, do que se trata é da segunda vinda deste pró-homem do cristianismo que – depois de uma larga ausência – pretende retornar aos fundamentos da ordem que criou.

Entre “vida” e “vinda” há uma aproximação fonética importante que – seguramente – não passou despercebida ao autor português. A “segunda vinda” tem uma reminiscência messiânica que rondaria o texto para uma leitura apocalíptica que prefere evitar-se. A “segunda vida” – ao contrário – afirma a existência de um novo projeto que se costura diariamente. Para Saramago – sabe-se –  as promessas bíblicas são menos importantes que a materialidade do cotidiano.

Agora bem, fazendo concessões em favor do título, o verdadeiramente importante é que este regresso de Francisco pretendendo construir uma nova vida se encontra com as armadilhas de uma institucionalização cristalizada às suas costas e edificada contra seus princípios. Suponho que o mesmo se passaria com Jesus se pudesse ver hoje a Igreja que deixou nas mãos dos homens. O que é certo no texto saramaguiano é que a então ordem religiosa foi tornada uma “companhia” comercia dedicada ao lucro. E o que tinha por base original a pobreza, parte da mitologia que acompanha hoje o enriquecimento monetário. A cruz que servia de inspiração e guia se transformou num mero objeto que – não por isso – deixa de acolher algumas cínicas genuflexões. Nela se moldam os hábitos com que se vestem  durante as sessões do diretório colocando em evidência que o poder secular tomou conta da inspiração divina. É um fetiche a mais. Antes de cada reunião, agora dos acionistas da empresa, fingem respeitar a tradição e voltam – por alguns instantes – às origens.

O homem de Assis – ao retornar – tenta disputar com Elias, seu substituto, o poder da condução, mas não encontra eco na assembleia. As premissas que fundavam sua doutrina são já anacrônicas para estes sujeitos embandeirados da ficção capitalista. Sua intenção é vã e sua derrota cresce ao largo dos atos que dão corpo ao drama. Quem vê do lado de fora agora a companhia, pode dissocia-la de suas antigas imagens postais mas sabe que está diante de outra coisa.

Seguramente Saramago esboça uma crítica a esta traição dos princípios que a Igreja Católica se fez carne. O suposto voto de pobreza é um capítulo a mais da história universal da infâmia a qual todos podemos ter acesso vendo apenas o modo de ostentação com que se maneja o poder clerical e suas circunstâncias.

Há que dizer – sem dúvidas – que a figura de Francisco é claramente inspiradora para o Nobel português. Provavelmente mais que a de Jesus de Nazaré, em quem reconheceu apenas um homem humilhado por Deus. Se existissem seres assim em todos os lugares, com certeza a sociedade seria diferente e o mundo mais humano. Entretanto, o “fator Deus” domina, os bolsos acumulam mais riqueza e a injustiça reina impune pelo planeta.

À diferença de outros textos de Saramago, esta breve peça de teatro tem um final consolador porque promete uma mudança. Cabe a Clara, a famosa Clara de Assis, liderar a desobediência civil que ameaça o trono de Elias. Ela compromete seu pequeno espaço na empresa para colocar-se ao lado de Francisco nessa luta. Como boa mulher saramaguiana, abre os olhos do benfeitor que sempre seguiu, mostrando-lhe que “a pobreza não é santa” e que deve se eliminada do mundo. Sabe como ele que “formigueiro pode vencer um leão” e a ele recorre. No passado, o líder cometeu um erro muito profundo: ao louvar a pobreza, afirmo a bondade do sofrimento dos pobres e esse é um pecado que nenhuma absolvição pode libertá-lo. A partir de agora, em mudança, lutará contra isso assumindo seu nome de batismo, João.

Esta mudança de perspectiva que Saramago dá a Francisco é o que modifica a marca do texto e confirma a nova vida em questão. Claro que não há que ler esta versão como a história de uma utopia. O mais provável é que novamente seja derrotado porque o poder conspira contra suas débeis forças apesar das convicções que o movem. Mas está claro também que não   podemos acusar o escritor português de não ter contribuído para desenganar a esperança.

* Tradução livre de Pedro Fernandes para "Francisco y la razón institucional" publicada em Hoy día Córdoba.


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