Juan Gelman



O nome do poeta Juan Gelman está inscrito no mesmo rol que Jorge Luis Borges, Ernesto Sabato e Adolfo Bioy Casares. Dito isso, explode logo a conclusão de que estando diante do nome está diante da sua literatura e de uma das mais importantes para a forma da literatura latino-americana. Foi em 2014 que ficamos sem sua presença física. Deixou-nos, entretanto, uma corrente de vozes em torno de uma melhor existência entre os da comunidade humana. Logo ele, que depois da extensa dedicação às letras, esteve marcado pela morte do filho pela força da ditadura e pela busca incansável de sua neta Macarena. Um homem que se não desprezava a vida, depois dos retornos amargurados que ela lhe deu, disse sempre nunca temer a morte.

Grande parte de sua obra ficou marcada por uma veemente crítica social e política que dialogou com temas de seu tempo; mas, certa certa vez garantiu que, antes de escrever para intervir, foi por amor – um amor sem explicação – sua dedicação às letras. Seus primeiros poemas estiveram circunscritos ao temário das paixões da juventude numa Buenos Aires de outro tempo. Os arroubos da juventude, como se vê, não o venceram. Logo, Gelman terá se visto na pele de alguém a quem o dom da palavra não era apenas letra para forma sobre o papel em branco ou ainda registro impressionista do mundo. Essa consciência deve ter lhe vindo além das leituras, também do trabalho que exerceu como jornalista.

Na tábua bibliográfica do escritor argentino títulos como Cartas a mi madre, Poemas de Sidney West, Relaciones, Salarios del impío, , El juego en que andamos I, Velorio del sol, Cólera buey, Fábulas e Hacia el sur; esses são os seus mais populares num percurso marcado por uma leva de importantes premiações, dentre eles, o Cervantes (em 2007), o Pablo Neruda (em 2005) e o Rainha Sofia de Poesia Latino-Americana (em 2005).

A crítica sugere diversas linhas de abordagem sobre a poesia de Gelman, mas, de maneira unânime tem destacado o trabalho formal com a linguagem e o compromisso com a realidade – desde a presença do temário político, uma característica que lhe definiu como poeta militante.

Gelman aparece com o grupo El Pan Duro, numa apresentação coletiva no teatro La Máscara; logo publica, em 1956, seu primeiro livro, Violín y otras cuestiones, na ocasião, prefaciado por Raúl González Tuñón, quem lhe apoia na criação de uma “poesia de desobediência civil”. Tuñón destaca essa linha da poesia de resistência e de denúncia, mas, talvez temeroso pelo rótulo logo na estreia ou pelo que poderia suscitar a fama de insurgente, o poeta se distancia do tema e logo passa a um exercício mais intimista – é quando lhe vem aquela fase de encantamento por Buenos Aires, por exemplo.

Vigora ainda, nesse ínterim, um tom mais ou menos profético assemelhado ao de parte da poesia de Pablo Neruda e aproxima-se do estilo de César Vallejo (os dois nomes mais importantes de seu tempo); tenta, será, escapar da linha de orientação estética que também era marca na América Latina? Para leitores como Delfina Muschietti, não: Gelman foi o poeta que mais tentou se aproximar das vozes poéticas de seu universo, de Vallejo, por exemplo. “Vallejo pedia ’um latido humano, um timbre vital e sincero’. Em Gelman esse latido humano é algo conflitivo, instável.” Outro elemento na relação apontada por Delfina é o cruzamento entre o trabalho formal de laboratório com a linguagem e o compromisso com a realidade, com o político e o social. Sim, Vallejo nunca esteve distante disso, se nos lembramos que, dentre os principais títulos de sua bibliografia está Trilce. Todos os poetas da América Latina, aliás, terão bebido dessa corrente poética.

Num primeiro momento, sua poesia se beneficia do tom coloquial da geração dos anos 50 em contraste com os neorromânticos da década anterior e da geração surrealista de Olga Orozco e Enrique Molina; o tom profético, às vezes altissonante, verborrágico em colocação com o coloquial nunca esteve distante de se descuidar com o trabalho da forma. Mesmo que o tom poético se deixasse ter por certa intimidade, nunca Gelman terá desistido daquele timbre da realidade social. Na presença do cotidiano, lá está a responsabilidade social; essa era, de fato, sua voz.

É isso o que o ajuda a a sair do tom de poeta menor e o coloca na posição de poeta humanizado, retirando-o da posição até então comum de que o poeta tinha afeição direta com as forças do sagrado. É isso o que o resgata para o interior das vozes mais coerentes com as correntes da poesia dos anos 90, embora, ainda nesse período, a relação poesia-realidade não tenha alcançado uma posição coerente e Gelman, nesse aspecto, tenha dado um passo mais adiante da fronteira definidora do gênero. Mais ainda quando se está diante de uma obra que se coloca na posição de formadora de consciência, lembrando-se aqui de versos como “todos matamos Che Guevara” – esse poema está em Cólera buey, obra que rompe com a poesia dos três primeiros títulos, uma poesia que supunha um interlocutor conhecido, uma comunidade de pensamentos e sentimentos.

Uma das grandes conquistas de Gelman é saber ter herdado o trabalho de seus antecessores. Isso o filia na corrente dos que retrabalham a matéria poética até que esta lhe permita a entrada de outra voz. Isso terá herdado não somente do contato com os de sua língua, mas da atenção com a poesia anglo-estadunidense de nomes como Ezra Pound, ou a surrealista como Aragon ou Paul Éluard, ou ainda com a poesia de Lautréamont, com os místicos... Os quatro primeiros títulos, Violín y otras cuestiones, Velorio del solo, El juego en que andamos e Gotán são os responsáveis por cristalizar a imagem mítica de Gelman que o coloca entre os nomes que pensa a relação nem sempre cordial entre poesia e política e reforça o tema da função social da literatura.

Em Cólera buey começa a deslocar o significante. Depois vem as Traduções, 1 e 2, traduções apócrifas. Mais tarde Los poemas de Sidney West que, de fato, terão impactado a crítica de seu tempo. É quando deixa entrar outra voz, essa da poesia anglo-estadunidense, muito distante daquela voz de Gotán. É quando começa isto do laboratório de linguagem que resulta em processos de construção poética muito interessante, desde a mobilidade dos lugares sintáticos aos lugares gramaticais. Outra coisa que introduz aí com muita força é o jogo de faça como que sou outro, que faço outra coisa além de escrever. Porque se supõe poder contar histórias com personagens. Tem um elemento narrativo forte; um jogo humorístico com essas personagens.

Aí se une o consciente e o inconsciente. A herança linguística veio do iídiche que Gelman falava bem e dos versos de Pushkin em russo recitados por seu irmão Boris; depois incorporava o portenho de Villa Crespo, e outras línguas, como o francês, o inglês e o italiano. Em seu trabalho com a língua está o que chama de “linguagem aluvial da Argentina” que o representa muito bem, com as impurezas das línguas mestiças. Ainda se dedica ao espanhol antigo já quando publica Cólera buey. Gelman disse que foi ao “encontro com a língua nascente” que, todavia, não estava fixada. A abertura do ouvido poético a outros ritmos, deu também outra fluidez ao seu verso. Esse foi um dos seus compromissos de poeta: ao dedicar-se à língua espanhola vai investigar a tradição da poesia espanhola.

Apesar de a  crítica sempre vincular seu trabalho poético com dados de sua biografia, o fato é que, para Gelman, não há separação entre a poesia e o político, este forma parte de sua experiência, do que o leva a escrever; é comprometido no sentido de que a poesia é um lugar para um olhar íntimo sobre o mundo, o homem e as coisas. Foi acusado de existencialista ou ainda de panfletário. Gelman, entretanto, foi um dos que deram testemunho de seu tempo, encontrou nas palavras a possibilidade de dizer as coisas que se passavam com todos. Sua poesia deu conta de seu tempo. É um testemunho poético de seu tempo.

*

A seguir disponibilizamos um catálogo com poemas de Juan Gelman mais a tradução para o português de uma carta escrita por José Saramago, amigo do escritor argentino, com intercessão junto ao presidente do Uruguai pelas buscas da neta desaparecida. No catálogo imagens de Gelman e o fac-similar da carta ora traduzida.




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