Houellebecq e a polêmica sobre seu novo romance



Michel Houellebecq voltou a um tema caro. A publicação de seu novo livro que chegou coincidentemente na mesma semana do atentado a agência do Charlie Hebdo ganhou as rodas da polêmica a ponto da obra ser tida no rol dos escândalos de 2015. O tema caro, logo já pode o leitor deduzir, é o Islã. E o motivo para tudo chama pelo título de Soumission (título ainda inédito, mas já declarada publicação no Brasil para breve). Trata-se de um relato futurista que retrata uma França convertida ao regime islâmico depois da vitória de um novo partido, a Fraternidade Muçulmana, nas eleições de 2022.

O candidato Mohammed Bem Abbes, supera Marine Le Pen no segundo turno das eleições, graças ao apoio do resto das forças políticas, decididas a impedir a vitória inevitável da ultradireita. O país desenhado por Houellebecq, imagem deformada da França de hoje, é erguido pelos últimos resíduos de uma democracia agonizante e está composta por cidadãos desencantados pela política, unicamente interessado pela adoração aos jogadores, à moda, à atores e modelos, que se limitam a ver reality shows sobre a obesidade na televisão enquanto ingerem refeições pré-cozidas marcadas por sua insipidez.

Nesta paisagem, Houellebecq situa um narrador chamado François, professor universitário quarentão e especialista em Huysmans, grande figura do decadentismo do século XIX e autor de A rebours (1884), que se converteu ao islamismo ante as circunstâncias políticas. Ante as turbulências que se anunciam, o deprimido narrador (e claríssimo alter ego do autor) se refugia numa França profunda, onde visita cidades medievais e degusta grandes ágapes regados com armañac. Quando regressa a Paris, dias depois do resultado eleitoral, encontra com um país que já não reconhece.

Sorbonne, por exemplo, é agora uma universidade islâmica financiada por riquíssimos emires, com as paredes decoradas com versos do Corão e um reitor casado com três esposas, uma delas adolescente. Como François, os professores que não se converteram ao Islã a tempo são jubilados, mas monarquias petroleiras colocam pensões astronômicas à sua disposição. A sharia não é aplicada, mas o decote e a minissaia foram abolidos. E as mulheres, incitadas a retirar-se do mercado de trabalho em troca de numerosas ajudas públicas. Os trens contam com menu halal. Turquia, Argélia e Marrocos passaram a ser membros da União Europeia, um marco para a reconstrução do Império Romano, o que aspira o novo presidente.

Houellebecq disse não haver escrito o livro com afã provocativo. “Não tomo partido, não defendo nenhum regime. Denego toda responsabilidade”, declarou o escritor numa entrevista muito recente à revista literária The Paris Review. “Procedi uma aceleração da história, mas não posso dizer que seja uma provocação, porque não digo coisas que considere falsas apenas para provocar ódio aos outros. Condenso uma evolução que, a meu entender, é verossímil”.

Não é estranho que a polêmica adquira dimensões de assunto de estado. Em seu novo livro, Houellebecq contrapõe as raízes do cristianismo medieval – o protagonista se refugia num povoado chamado Marte, como o homem que deteve os árabes em Poitiers no ano de 732 – e uma invasão muçulmana de características quase burlescas, sazonada de teorias abjetas que ressoam no atual clima político porque passa a França é tramada. O livro parece beber da Grande Substituição, teoria formulada pelo filósofo Renaud Camus, acusado de incitação ao ódio racial, que aparece no romance como autor (fictício) dos discursos de Marine Le Pen. Segundo Camus, a população europeia terminará sendo substituída por povos imigrantes que provocariam uma mudança de civilização.

O livro tem gerado opiniões diversas; das entusiastas às escandalosas e tem sido parte de uma retaliação midiática, desde o filósofo Alain Finkielkraut – quem sustem que Houellebecq fala de um “futuro que não é seguro, mas é plausível” – ao apresentador Ali Baddou, quem assegurou que o livro lhe deu “ânsia de vômito” por sua “islamofobia”. O diretor do diário Libération, Laurent Joffrin, escreveu que o romancista não fez mais que “aquecer o assento de Marine Le Pen no Café de Flore”, refúgio da intelectualidade parisiense, fazendo entrar as teses ultradireitistas sobre a suposta invasão muçulmana no quadrilátero da literatura. E o próprio François Hollande, apresentado no romance como um político acabado, afirmou em entrevista que lerá o romance “porque provoca um debate”, mas incitou seus concidadãos a não se deixar “devorar pelo medo e a angústia” que o livro reflete.

Já em 2001, Houellebecq afirmou: “O Islã é a mais tonta das religiões”. Há quatro anos, na televisão israelita, destacou: “A tendência à colaboração com um poder perigoso, neste caso o fundamentalismo islâmico, é dominante na França”. Em Soumission descreve um Islã aparentado como “moderado” embora na realidade responda a características reacionárias. O filósofo Abdennour Bidar denunciou o que chama de “imagem errônea” do Islã, que desenha como fundamentado na “submissão a Deus, as mulheres em casa, o véu e a poligamia”. Houellebecq jura haver reexaminado suas opiniões passadas. “No fundo, o Corão é melhor do que pensava, depois de relê-lo... ou melhor lê-lo. A conclusão é que os jihadistas são maus muçulmanos”, diz.

Depois do atentado a Charlie Hebdo, Houellebecq saiu da França a título de evitar mais balbúrdia depois da chegada do romance às livrarias. O jornal satírico numa de suas charges da edição do dia do atentado deu protagonismo ao escritor que aparece caricaturado com o texto “Escândalo! Alá criou Houellebecq à sua própria imagem!”. Numa entrevista gravada e veiculada no francês Canal +, o escritor reaparece para dizer: “Sim, eu sou Charlie. Esta é a primeira vez na minha vida em que alguém que amava é assassinado.” Sobre a obra, diz que a França vive atualmente um período “hipersensível”, de “grande crispação”, em que “as pessoas perdem a calma”, mas Soumission é uma ficção e nada impede que, ainda assim, tenha personagens reais; “Se não pudermos escrever ficção neste país, faremos o quê?”. 


* Este texto foi escrito a partir da tradução de "Houellebecq contra la Francia do Islam", de Alex Vicente publicado no jornal El País e de "'Sim, sou Charlie, disse Houellebecq", de Lucinda Canelas publicado no jornal Público.


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