Nós, os carentes

Por Abraão Vitoriano



Nós, os carentes, sofremos por basicamente tudo. Temos imunidade baixa: uma palavra sequer, mal colocada, é capaz de nos levar à enfermaria. Dormimos pouco. Falamos muito. Fazemos tempestade no balde de lágrimas.

Nós, os carentes, carregamos uma montanha de pensamentos, do mais diversos e criativos. Alcançamos os picos da sentimentalidade, obsessão e dramaticidade. Utilizamos com destreza todas as figuras de estilo: hipérbole, antítese, metonímia, paradoxo, ironia e comparação, talvez esta a mais doída.

Nós, os carentes, possuímos o gene da desconfiança, da “unha ruída”, da sensibilidade. Caso não liguem na hora marcada, arquitetamos um plano de morte, depois de imaginar as mil cenas de infidelidade, bebedeira, rejeição e chacota com a nossa imagem. De traumas ancestrais, temos um radar ligado e uma sirene nada discreta, que avisa à população terrestre qualquer desentendimento ou incompreensão entre o casal.

Nós, os carentes, somos crianças crescidas à espera de um laço, de um embrulho bem-feito, de um “beijo e se cuida”, antes de dormir. Resolvemos nossa pressa e angústia com um abraço, nosso pessimismo com mãos dadas, nosso “quase pulo da ponte” com um verso de Vinícius, algo que fale da lua, do céu, do sol, do estar junto.

Nós, os carentes, alunos reprovados no romantismo, no “casa-se ou vai para o convento”, no baú das ansiedades.  Pedimos pouco: um olhar dentro, um torpedo apaixonado e original, um beijo vagaroso para dizer “te amo”. Nem exigimos todas as datas do nosso calendário de memórias, a cor da camisa do primeiro encontro, o tipo sanguíneo, ou se esforçar para fotografar bonito no retrato dos encontros. Basta um toque repentino de delicadeza, um ouvido paciente, uma mentira-sincera que “compreendeu” e “está tudo bem”, adoramos isso.

Nós, os carentes, não chegamos a ser loucos e psicopatas, claro que depende muito da circunstância. Na verdade, somos viciados em afetos, tentamos intrinsecamente preencher vazios, lutamos contra os genéricos da solidão. Quem sabe um dia nos curaremos com a receita do amor próprio, até lá aguardaremos aquela singela declaração, mas sem o  “eu lhe amo” no final.

***


É professor da Faculdade São Francisco da Paraíba, Autor dos livros Pétalas raras (Motográfica, 2013) e Estado de graça (Penalux, 2014) e Menino-Poeta do SerTão


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