A Brasileira e Pessoa

Por Pedro Fernandes



Ir a Lisboa e não ir ao café Brasileira, no Chiado, não é ir a Lisboa. Ainda mais se o viajante estuda literatura em língua portuguesa. O que tem a ver um café com a literatura, perguntarão de imediato. Tudo – responderão ao fim deste texto. Tudo – responderei eu com este texto. E pode ser que não responda. Assim como pode ser que a primeira afirmativa seja apenas a impressão de um viajante que quer estar nos lugares cuja relação de afetividade prevaleça sobre o simples fato de estar. Todo lugar tem sua história. Uns, mais histórias que outros. E eu, numa escala de preferência, sempre irei preferir esses uns.

No meu caso, a primeira imagem que me leva à Brasileira e que está marcada erroneamente na memória é a de Fernando Pessoa junto ao balcão de uma recepção a bebericar uns tragos de vinho ou coisa próxima. Sempre acreditei, porque me disseram errado ou porque li errado em alguma parte que este era um retrato tomado na Brasileira onde o Pessoa gostava de estar. A imagem deverá vir à mente do leitor comum porque, quando se fala sobre o poeta de Mensagem, é essa fotografia que está impressa em boa parte dos livros didáticos.

Até hoje, aliás, não sei com qual interesse essa figura está nos livros didáticos: se pela raridade dos registros fotográficos do poeta português, se para mostrar a figura do poeta numa situação popular e corriqueira como se dissesse “ó, ele é gente como você”, ou se, na pior das hipóteses (mas uma hipótese válida, diga-se) para desmerecer a literatura, “essa coisa de vagabundear entre não ter nada o que fazer e encher a cara” e, portanto, exercício reprovador para uma mente juvenil, “ó, se pensa em ser poeta, desiste, o poeta é tipo de vagabundo como esse da imagem”.

Não sei, mas lá está, em toda parte o “Fernando Pessoa em flagrante delitro”, apropriando-me do próprio título dado pelo poeta à fotografia que, por intermédio das mãos caridosas do sobrinho de Ophélia Queiroz foi ter nas mãos da moça em 1929 com certo ar de despojamento entre um possível casal de amantes. Pessoa trocou muitas cartas de amor ridículas com essa jovem. A face do amor tem uma pitada de ridículo, esse lugar que talvez seja o mais verdadeiro de nós mesmos. Bom, mas o local de onde foi captado o flagrante é a bodega Abel Pereira da Fonseca, especializada de vinho e licores na rua dos Fanqueiros.

E já que falei sobre o poeta de Orpheu e o mês de março de 2015 evoca a passagem do centenário da revista e da consolidação do espírito modernista em Portugal, recupero a história de que foi na Brasileira – e o Chiado já era uma das regiões de Lisboa de maior atividade cultural – que Pessoa escreveu a carta a Armando Cortes-Rodrigues referindo-se ao escândalo do primeiro número da revista.

“Ontem deitei no correio um Orpheu para si. Foi só um porque podemos dispor de muito poucos. Deve esgotar-se rapidamente a edição. Foi um triunfo absoluto, especialmente com o reclame que A Capital nos fez com uma tareia na 1.ª página, um artigo de duas colunas. Não lhe mando o jornal porque lhe escrevo à pressa, da Brasileira do Chiado. Para a mala seguinte contarei tudo detalhadamente. Há imenso que contar. Agora tenho tido muito que fazer. Da livraria depositária é que seguirão os exemplares para os assinantes e livrarias daí. Naturalmente não há números para irem para todos os nomes que v. indica. Vão para alguns. Naturalmente temos que fazer segunda edição. Somos o assunto do dia em Lisboa; sem exagero lho digo. O escândalo é enorme. Somos apontados na rua, e toda a gente – mesmo extra literária – fala no Orpheu”*.

O bilhetinho – certamente foram escritos muitos outros e muitas cartas e o nascimento de muitas ideias também – está no imaginário da cultura literária. E a pergunta é: se não houvesse um café no Chiado chamado Brasileira de onde Fernando Pessoa teria escrito bilhetinhos como esse, cartas e tido ideias. Numa tasca mais próxima, possivelmente, dirão. É possivelmente. Mas entre uma tasca e um café, o segundo é mais refinado. Tem certo ar de chic, o que era, então, o escândalo modernista: ser chic mas não mais submisso aos dogmas vigentes. Não é esse um dos embates do espírito da época? A tasca, por sua vez, é muito decadentista para servir de espaço a um movimento que trazia antes de um decadentismo um traço de fineza. Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro. As duas pontas extremas do dialogismo modernista. E, de figura literária, não foi apenas o Fernando Pessoa quem passou por aí, talvez cometa o erro, mas arrisco-me a imaginar que todas as figuras mais importantes da literatura terão passado pela Brasileira. Hoje talvez passem menos; me pareceu que aquilo agora como ponto turístico é todo sempre tumulto e já não há mais possibilidades de rabiscar bilhetinhos, cartas ou ideias que seja.

Pois bem, palco de acontecimentos tão figurativos para a cultura literária portuguesa e por albergar idas e idas de um dos elementos mais importantes (o Pessoa), depois de um encontro com José Saramago (um gênio a altura), não poderia deixar de encontrar-me com o poeta de vários nomes que não está apenas na Brasileira. Como aquele não se contentou em ser ele mesmo e fragmentou-se em vários, também está em parte de diversa da capital portuguesa (digo isso lembrando-me dos monumentos dedicados ao seu nome). Logo próximo ao café, já alcançamos o edifício onde nasceu em 13 de junho de 1888, no largo do teatro São Carlos, e à entrada do local encontramos já uma das mais enigmáticas representações monumentais do poeta: inaugurada durante as comemorações dos 120 anos do nascimento de Pessoa, a peça do escultor belga Jean-Michel Folon. A escultura de quatro metros como se sabe é de 2001 e fez parte de uma exposição itinerante do escultor na Baixa do Chiado, quando Câmara Municipal de Lisboa adquiriu a obra.

Bem mais adiante do raio geográfico onde estamos, está a Casa Fernando Pessoa, instituição cultural que alberga muito do poeta português e que, como a Fundação José Saramago, tem participação ativa na agitação de ideias em torno da cultura literária. Além dos monumentos e lugares, é preciso dizer, mesmo quem nunca tenha escutado o nome ou lido uma linha (ainda que apócrifa) do Pessoa, não poderá fugir de sua imagem em Lisboa. Pessoa multiplicou-se pela eternidade e é presença em toda parte; tornou-se obra de um fetiche.

Mas, voltemos à Brasileira. A casa foi fundada em 1905 por Adriano Teles e vendia, na ocasião, o genuíno café do Brasil; está aí o motivo bestial, aquele que pega a toda gente brasileira, imersa no mundo da literatura ou não. E a história diz que o café desde então sempre foi um dos lugares mais frequentados. Possivelmente, e devo contribuído para a estatística porque, dos poucos e corridos dias que estive na capital portuguesa, fui ao café três vezes, todas elas para intercâmbio de ideias, imaginem, literárias e um pouco de academicismo.

Foi na Brasileira que conheci pessoalmente, num dos três encontros, Pedro Belo Clara (quem já é do Letras figura íntima); e dele recebi na ocasião O velho sábio das montanhas, um seu livro editado pela Chiado Editora, do qual li poucas peças (afinal, só assim sei ler um livro de poesia, a poucos tragos) mas dotado de uma unidade estrutural, ao que parece, que reaproxima do diálogo entre este e o mundo da eternidade, assinalado por uma voz que aconselha ou diz percepções sobre a existência. Eu e Pedro Belo longe estamos das cabeças pensantes do movimento de Orpheu também não nos encontramos para forjar qualquer coisa que valha. Mas, claro, Pessoa e outras figuras povoaram nossa breve e intensa conversa enquanto o céu de Lisboa se desmanchava numa daquelas chuvas de outono. Este encontro, aliás, fosse a proposta deste conjunto de textos a narrativa e não a crônica, daria uma um conto com traços de epopeia pelo caráter de odisseia que foi. Não vou maçar o leitor com essa querela.

Voltemos ao lugar de Pessoa e já deixemos um ponto final ao texto. No Largo do Chiado, logo à entrada da Brasileira, lá está novamente o poeta, sentado como se a cumprimentar quem passa ou a convidar o transeunte para sentar junto a si. O monumento evocativo é de António Lagoa Henriques e está mais memória dos transeuntes do que o do Largo do São Carlos; foi inaugurado em 1988. Mas, não é apenas a idade da inauguração. Parece-me que, ao contrário da escultura de Folon que se fecha num hermetismo caro ao poeta (Pessoa não é hermético), enquanto Lagoa Henriques se constitui num popularizador da figura do Pessoa.

A expressão coloquial de sentado à entrada de um café com uma cadeira vazia a cumprimentar quem passa na rua é, ainda que ninguém soubesse que ali é o Pessoa, um conjunto escultórico que chama atenção a todos e convidativo – tanto que a frequência ininterrupta de visitantes tem servido ao polimento do bronze. O Pessoa da Brasileira rompe com o conceito tradicional do monumento pela simplificação da imagem e pela interação transeunte-escultura.

A escultura compõe com o café a mesma afirmativa: ir a Lisboa e não ver o Pessoa do Chiado não é ir a Lisboa.

Ligações a esta post:
Leia o primeiro texto da série, "Meu encontro com José Saramago" aqui.


* PESSOA, Fernando. Correspondência 1905-1922. Lisboa, Assírio & Alvim, 1999, p. 161 e p. 162, respectivamente.



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