Consciência

Por Jeferson Luis de Carvalho



Era um sábado como qualquer outro.  O pai saiu para massagear e admirar o carro com a desculpa de ter que lavá-lo. A mãe, trabalhadora de dupla jornada durante a semana, tomou posse de seu domínio pleno e irrestrito sobre o reino residencial, distribuindo tarefas a seus fiéis súditos que usufruíam dos proveitos de uma cama aconchegante e o alimento na mesa.

Enquanto a ordem natural da casa seguia, em seu mundo, esquecido por um instante, saía o cachorro da casa. Um desses que tem seu pedigree identificado pelo não desenho do focinho e a não uniformidade do corpo, mas era feliz em sua vida e posição naquele lar. Deitou, como sempre, com seu pato de borracha na boca defronte a porta, tudo como devia ser. Até ele ouvir o baque.

O que causara aquele baque ele não sabia, apenas tinha consciência de que tinha consciência. Sim, tinha consciência de tudo e de todos. Seus ouvidos habituaram-se com os sons, seu cérebro passou a processar e dar sentido àqueles ruídos antes indecifráveis produzidos pelas pessoas da casa. Entendia o que conversavam, e mais, pensava sobre o que ouvia, nunca antes raciocinara algo.

Deu-se conta de que tinha um pato de borracha na boca. O cuspiu rapidamente, sentiu pela primeira vez um sentimento repulsivo que, logo, descobriu ser o nojo. O pato era velho e sujo. Como podia ter estado alegre e satisfeito com tal objeto, pensou imediatamente. Sentiu uma náusea momentânea, a língua cresceu como um objeto com vida autônoma, cuspiu novamente, o pato parecia ainda estar ainda em sua boca.

O pai gritou para uma das crianças saírem de perto do carro para não se molhar. A mãe lembrou o pequeno súdito que ele tinha afazeres e que deixasse o pai em paz. O cachorro estava maravilhado, entendia perfeitamente cada palavra. O que antes não passavam de barulhos indissociáveis, agora ganhavam sentido como mágica. Ninguém falava com ele, pareciam que não estavam preocupados com a presença do animal. Foi em direção ao pai, quis informar que o compreendia, que poderiam discutir coisas ou, simplesmente, passar o tempo.

 – Olá, pode parecer estranho, mas, sim, estou falando.

Tentou ser formal e educado, mas estranhamente o pai não o entendeu, fez um movimento brusco e berrou:

– Sai daqui! Marquinhos! Pega o Fagulha aqui!

Fagulha? Que nome era esse? E por que toda essa indignação? Sentiu mãos ao redor do seu corpo, foi erguido de forma brusca em direção ao peito de uma das crianças. Tentou virar a cabeça para enxergar o que estava acontecendo, mas não obteve sucesso. Tentou argumentar, contudo, novamente, a comunicação não ocorreu. Foi deixado de qualquer jeito nos fundos da residência sem antes ouvir uma reprimenda do garoto por ter estado na frente de casa. Abandonado no ponto esquecido da casa naquela manhã de sábado, sentiu-se injustiçado e ultrajado. Era velho para os padrões dos cachorros, deveria ser respeitado por um garoto tão jovem, além do mais, o que havia feito de tão grave ao tentar conversar com aquele que conhecia há tanto tempo. Começou a se dar conta de sua situação naquela casa. Estava do lado de fora, tendo inúmeras cadeiras e um belíssimo e confortável sofá do lado de dentro. Como sabia os nomes desses objetos e não seu próprio nome? Fagulha? O nome não lhe saía da cabeça. Deveria ter um nome mais pomposo, pensou. Sempre esteve a serviço daquela casa, amou aquelas pessoas, e nem o direito de repousar em um local macio adquiriu.

Sua indignação já era grande quando uma das crianças abriu a porta dos fundos e trouxe um pequeno pote nas mãos, colocou ele no chão e o encheu com ração. Não podia acreditar que o deixariam comer no chão, uma formiga distraída adentrava o pote. Foi a gota d'água.

Assistiu incrédulo a família sentada à mesa, compartilhando, ceando e divertindo-se enquanto ele estava do lado de fora, acompanhado apenas de duas formigas que sumiram dentro de sua refeição. Recolheu-se a um canto. A tristeza tomou conta de si. Amaldiçoou o momento em que tomou consciência de sua existência e das coisas que o cercavam. Em sua inocência instintiva de sobrevivência, satisfazia-se com o pouco, mas, agora, que tem consciência do que acontece, enxergou que o desprezo o acompanhava pela casa. Era apenas mais um animal de estimação, nada mais do que isso, um animal de estimação.  Tentou comer a ração junto com as formigas, a fome era grande, mas não conseguiu. A cada tentativa, era violentamente punido por seu pequeno estômago que regurgitava de forma intensa como um exército tentando sair de seu ventre. Exaustou, decidiu repousar, entretanto não encontrou local para isso. A todo canto havia insetos e sujeira, sentiu-se enojado de si mesmo, lambia os pés desses ingratos, murmurou amargurado.   

Essa situação não ficaria assim, a consciência é uma dádiva que permite que possamos pesar situações e posicionamentos para utilizá-los como base de pensamento para ações futuras. Com esse pensamento, o pobre cãozinho foi em direção ao pote pela última vez, era velho, sujo, todavia havia servido muito bem a ele. Subiu-lhe pelo meio do peito um calor e um desejo de encontrar o pato, imundo, proliferado de bactérias (como conhecia bactérias?) para um último adeus. Limitado pela porta fechada, resignou-se em cantar uma melodia triste e chorosa, uma ode a um pato rejeitado. Ao fim da canção, foi decidido em direção à piscina, daria fim àquela pobre vida.

No caminho para o momento definitivo de sua vida, um baque. As pernas perderam a rigidez, os olhos ficaram pesados, sentiu o chão rodar, tentou levantar uma pata, contudo ela pesou contra o chão, caiu.

– Marquinhos!

O grito do pai interrompera o ritual alimentar. Assustou-se com a queda brusca do cachorro, mas tão logo levantou da cadeira, o cãozinho levantou abanando o rabinho e correndo direto para o pote de ração. A consciência abandonara novamente o pobre animal.

– Você, hein pai? Parece que não conhece o Fagulha, esse vive brincando. Cachorro mais feliz não tem.

– Tá certo, filho. Tá certo...

Achou melhor não mencionar que vira o cachorro sentado nas patas traseiras e apontando as dianteiras para o céu como se estivesse cantando uma música de lamentação.

Fagulha nunca mais teve baques. Morreu de velhice sete anos depois. O pato sempre esteve com ele e, por vontade da família, foi enterrado junto ao seu corpo. Na sua lápide, as ex-crianças escreveram: Cão mais feliz do mundo!

Tudo uma questão de consciência.

***

Professor,colorado, mestrando em letras e um apaixonado por leitura.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Boletim Letras 360º #576

O som do rugido da onça, de Micheliny Verunschk

Dalton por Dalton

Boletim Letras 360º #575

Boletim Letras 360º #570

Boletim Letras 360º #574