Mo Yan, o obrigado a calar

Mo Yan. Autor de vasta obra e ganhador do Prêmio Nobel de Literatura 2012.

Mo Yan era, até a chegada da publicação de Mudança (Cosac Naify, 2013), um total desconhecido dos leitores brasileiros; e, sua repercussão ainda tímida por aqui tem respaldo em diversos fatores: um, a incipiente quantidade de tradutores do chinês para o português no Brasil; outro, da própria conjuntura histórico-social do mundo, a relação Ocidente-Oriente tem um início tardio. Além disso, o escritor chinês ganhador do Prêmio Nobel de Literatura em 2012 vive desde cedo da literatura, mas não é alguém que esteja nos grandes centros do universo editorial; prefere estar reservado ao silêncio e ao trabalho literário.

Nasceu no dia 17 de fevereiro de 1955 na aldeia de Ping’an quando este lugar era um pequeno vilarejo chamado Gaomi e pertencia à província de Shandong, a 620Km de Pequim. Quando os moradores do lugar souberam que havia sido galardoado com o prêmio máximo da literatura, logo foram a sua antiga casa e levaram o que puderam de relíquia do escritor: para dar sorte, acreditam. E a casa é muito simples, Mo Yan é de uma família de pequenos trabalhadores rurais. Foi a poesia e os livros que o levaram a sair desse mundo simples.

A casa em Ping’an foi construída pelo avô ainda em 1911, depois das inundações provocadas pelo rio Jiao que está situado a uns 50m do lugar. Mo Yan passou a infância aí entre a solidão e a fome. Ping’an era uma aldeia rural e pobre e ganharia toda atenção do escritor na sua obra. “Minha memória está repleta de solidão e fome. A década de 1960 foi uma das mais difíceis para a China. Ficava todo dia no campo cuidando de vacas e ovelhas enquanto as crianças da minha idade estudavam e jogavam na escola. Havia vezes que não via ninguém durante todo dia”, conta numa entrevista ao jornal El País em 2008.

Mas, o nome com o qual ficou conhecido no mundo inteiro não é seu verdadeiro nome. E sim Guan Moye. O pseudônimo foi escolhido pelo significado que representa para si – “não fales” – uma recordação dos primeiros anos em que não podia falar com ninguém. Foi essa ordem recebida dos pais durante os tempos turbulentos da Revolução Cultural (1996-1976); eles temiam que dissesse algo inconveniente e trouxesse problemas para família. Quando ganhou o Prêmio Nobel, agiu da mesma maneira dos tempos mais remotos: viajou sem deixar recado e ficou incomunicável por vários dias. Os mais próximos disseram que ficou desconcertado pela premiação, mesmo que sonhasse com a honraria desde quando o seu nome passou a integrar as listas de apostas entre os leitores.

Reservado e tímido, Mo Yan não foge da culpa de ser um sujeito difícil. Se na aldeia onde viveu a infância todos agora têm-lhe respeito e admiração, no meio intelectual (sim, porque nem sempre foi assim), o escritor é desafeto de muita gente; acusam-no de ser uma figura próxima ao Partido Comunista Chinês, do qual é membro, e por não apoiar intelectuais presos pelo Governo, como o Prêmio Nobel da Paz de 2010, Liu Xiaobo. Verdade ou não, Mo Yan, em outubro do mesmo ano em que ganhou o Prêmio Nobel, pediu apoio à libertação de Xiaobo. Mais: as pessoas que o criticam como à serviço do Governo certamente nunca leram sua obra; ela está repleta de situações capazes de depor contra ele. Na China, compreende o escritor, há muito que faz parte do grupo dos que superaram as limitações políticas e de classe, opinião que é corroborada pela Associação de Escritores Chineses, organização respaldada pelo PCCh – “Mo Yan é Mo Yan. Mo Yan é um representante dos agricultores. Não é um funcionário do governo. É apenas um romancista, e por isso está muito além das questões do partido”.

O silêncio imputado pela família em virtude do regime faria o jovem Mo Yan dedicar-se a outras formas de diálogo: a literatura. Gostava de ler. Leu O sonho do pavilhão vermelho (também conhecido como O sonho do quarto vermelho ou A história pedra, de Cao Xuequin) e outros grandes clássicos da literatura chinesa (À beira do mar, O romance dos três reinos, Jornada ao oeste)*. Mas não apenas isso. Devorava todo tipo de leitura. Numa época em que poucas pessoas tinham livros ou acesso a eles e quem os tinham não gostavam de emprestar, Mo Yan trabalhava para essas pessoas – moía grãos no pilão – e elas comovidas lhe emprestavam livros, quando não, ele os recebia como pagamento. Naqueles anos Ping’an era uma aldeia de aproximadamente 600 habitantes e mesmo assim não tinha luz elétrica. E à noite, tempo que tinha para ler, ficava junto ao lampião enquanto sua mãe cozinhava. Ficava aí até perto da meia-noite, até que a mãe dissesse para parar de ler porque estava gastando todo o gás.


Mo Yan. Nada foi fácil. Tinha de trabalhar para os outros para não morrer de fome e não deixar de ler.

O período em que levava cuidando de pastorear o gado foi quando deixou de estudar. Saiu da escola com 11 anos. E entre as atividades de pastor, os bicos para os vizinhos, trabalhava na colheita de algodão. Quando estava na escola tinha as melhores redações. Utilizava aquilo que aprendia sozinho com os livros. Mo Yan foi, antes de tudo, um aficionado pelo conhecimento. Acompanhava, por vezes, o tio-avô que era especialista em medicina tradicional chinesa e com ele aprendia os tratamentos e depois ia receitá-los para as tias e os mais próximos.

Além das leituras, da vivência no vilarejo, outra grande influência no desenvolvimento literário de Mo Yan foi as histórias que ouviu do avô. Em particular, as que tratavam de fantasmas que se transformavam em seres humanos e seres humanos que se transformavam em fantasmas. No povoado, à noite, as pessoas faziam fogueiras nas ruas e era no claro do fogo que essas histórias eram contadas como passatempo. É daí que nasce o interesse do escritor pelo realismo mágico latino-americano – em especial do também Prêmio Nobel de Literatura Gabriel García Márquez. A vida que levou nos tempos de formação também o aproximaria da literatura de nomes como Liev Tolstói e William Faulkner.

Nesses tempos difíceis, de miséria, a família não tinha nem televisão, nem rádio, por vezes sequer havia farinha suficiente; sobreviviam à base de ervas silvestres, comiam talos de plantas e raízes. Nessa época entre 15 e 45 milhões morreram na China durante a grande fome provocada pela combinação do Grande Salto Adiante (1958-1961) – um falido movimento de industrialização rural lançado por Mao Zedong – e as secas e inundações ocorridas nesses anos. Entre a fome e o silêncio, a única diversão era o período do Ano Novo, quando os vizinhos representavam operetas da cultura chinesa.

Outra influência foi o irmão mais velho. Guan Moxian tem 12 anos de diferença de Mo e teve a oportunidade de, não sem muito esforço, concluir uma graduação antes da Revolução Cultural. E foi com Guan que ele sempre se confessou e pediu opinião sobre seus escritos. Foi assim desde sempre, embora, a escrita, depois que saiu da escola, tenha sido cada vez mais escassa. As longas jornadas de trabalho e a pobreza não eram elementos favoráveis a um escritor.

Mo Yan em foto rara. O pai sonhava com o filho militar.

Aos 18 anos, Mo Yan foi trabalhar numa fábrica; três anos depois alistou-se no Exército Popular de Libertação. Foram as saídas que teve para não morrer de fome. Como havia uma faixa etária para entrar nessas duas frentes, os pais burlaram o sistema e alteraram a data de nascimento. Daí, em alguns lugares passou a ser alguém que nasceu em 1956. Foi então quando escreveu seu primeiro romance, Chuva numa noite de primavera. Depois dele, seguiu-se uma série de contos, tudo escrito em meio às críticas de seus superiores que sempre se queixavam de que escrevia ao invés de fazer o trabalho que lhe era devido. Foi assim até 1984, quando entrou para a Escola de Arte e Literatura do Exército. Desde então, pode se dedicar exclusivamente à sua paixão e viver dela. Anos depois abandonou o uniforme porque, segundo disse, “não tinha futuro nele”.

O rabanete transparente (1986) foi seu primeiro livro de êxito. Depois, O clã do sorgo vermelho (1987), obra composta por cinco volumes e na qual foi baseado o filme Sorgo vermelho, título que deu o Urso de Ouro no Festival de Berlim em 1988 a Zhang Yimou. Em 1992 publicou A república do vinho, onde satiriza a corrupção do Governo e a obsessão da China pela comida e pelo álcool; em 1996, Peito grande, ancas largas (trad. portuguesa), em que relata, de forma brutal e realista, desde os últimos tempos da Dinastia Qing (1644-1911) até a época pós-maoísta através da história de uma mulher que tem cinco meninas antes de chegar o ansiado menino, e todos fora do casamento. O livro foi censurado na China.

Mo Yan (o segundo da esquerda para a direita) com elenco e diretor (o último na mesma sequência) da adaptação de seu livro para o cinema. Sorgo Vermelho (1988) valeu o Urso de Ouro a Zhang Yamou.

O rio Jiao corre por trás da antiga casa onde nasceu e viveu até com 14 pessoas; o rio foi terraplanado contra as inundações. No passado, Mo Yan gostava de ir ao rio e pescar nos fins de semana. Em junho, quando as águas subiam, os pais não deixavam que os filhos fossem ao Jiao, mas iam todos, às escondidas. Se as lavouras do seu tempo são escassas, o Jiao da infância já não existe mais: está poluído. O pai recorda-lhe um menino muito travesso e inquieto, inteligente e bom estudante e esperava vê-lo militar, não escritor.

No povoado, que Mo Yan chama de “meu reino da literatura”, o escritor também chegou a dividir opiniões, antes do Prêmio Nobel. Alguns vizinhos e as autoridades locais diziam que sua literatura fazia um retrato cru das personagens e das ações inspiradas em sua terra: “Mo Yan ama sua terra, mas também a odeia. Num de seus livros disse – Gaomi é um lugar onde há muitos heróis valentes, mas também é um lugar onde há muitos bastardos e galinhas”, afirma He Lihua. Gaomi é um lugar muito conservador e as pessoas não entenderam o seu livro O clã do sorgo vermelho; o escritor recorda que na época de publicação da obra, os donos de algumas destilarias diziam para misturar a aguardente deles com o seu. “Nosso licor é bom; o dele, não. O nosso não tem urina”, recorda. No livro, o narrador descreve como a personagem principal urina na aguardente e o tem como uma boa mistura.

Cena de Sorgo Vermelho.

O clã do sorgo vermelho consolidou Mo Yan como escritor. Críticas à parte, muita gente do povoado onde ele nasceu encantou-se quando foram filmar os campos de sorgo e as proximidades da ponte de pedra de Qingsha, em Sunjiakou, próximo a Ping’an; aí em 16 de abril de 1938, 400 soldados civis realizaram uma emboscada contra os invasores japoneses. É uma área onde não se cultiva mais a planta, agora substituída por outras espécies. No passado, o sorgo era alimento para as famílias e servia no preparo de bebidas. Mo Yan cuidou muito de plantações do gênero.

Outros livros mais conhecidos entre os onze romances publicados por Mo Yan até 2012 são As baladas do alho (1988), que apresenta um retrato da China rural, ambientado nos primeiros anos do processo de reformas posto em marcha por Deng Xiaoping em finais de 1978; A vida e a morte estão me desgastando (2006), em que um pequeno proprietário de terras se reencarna em vários animais; e seu último (2009), que foi inspirado na filha de um tio-avô, que era médica e contribuiu com a realização de milhões de abortos forçados no marco da política do filho único. Desde que começou a escrever, também se dedicou às narrativas curtas, das quais tem mais de uma centena de textos.



O resultado de mais de três décadas dedicadas ao romance é uma rica literatura que mescla paisagens épicas da agitada história de seu país no último século com os ritos e tradições rurais e alma do povo chinês, mediante uma linguagem realista, mágica, descritiva, humanista, subversiva, absurda, grotesca e satírica, com toques de humor negro. O Prêmio Nobel, aliás, foi-lhe dado “pelo seu realismo alucinatório que une a ficção, a história e a contemporaneidade”.

Para a crítica, Mo Yan é um escritor satírico – elemento que se revela desde o nome que adotou para si: alguém “obrigado a calar”, mas que muito tem falado. Seu sentido de humor é tão imaginativo como sua fantasia; é um humor duro, sem concessões, mas hilariante, e sua fantasia procede de uma mistura entre a tradição chinesa, carregada de imagens e símbolos, com a tradição ocidental. É marca de um novo tempo e, claro, do apreço que nutre pelas literaturas do outro lado do globo. Se o próprio Mo Yan reconhece sua admiração pela literatura de García Márquez, no romance A república do vinho encontramos o extraordinário monólogo de Ding, de indubitável estirpe joyciana.

Alguns críticos o comparam a Franz Kafka porque percebem que, na realidade, seu lugar favorito é, por vezes, não o absurdo, mas o grotesco, através do qual solta sua imaginação sem perder de vista o prumo da grande narrativa da tradição chinesa. Seu esforço tem sido sempre o de introduzir pequenas modificações nesse território no intuito de reinventar o modo clássico de narrar e, claro, alcançar um estilo que possa ser chamado pelo nome do escritor.


* A tradução desses títulos é, até quando da escrita deste texto, desconhecida. Utilizamos uma versão a partir do correspondente em espanhol. Este texto aqui publicado é uma tradução livre a partir de "Premio merecido" (José María Guelbenzu) e "Obligado a callar" (Jose Reinoso) publicados, os dois, no El país.


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Seis poemas-canções de Zeca Afonso

Boletim Letras 360º #580

Boletim Letras 360º #574

Clarice Lispector, entrevistas

Palmeiras selvagens, de William Faulkner

Boletim Letras 360º #579