Primavera de cão, de Patrick Modiano


Por Gilberto Tavares



Depois de ter ganhado o Prêmio Nobel de Literatura em 2014, a obra de Patrick Modiano tem recebido atenção no Brasil. E nem devia. A obra do francês é naturalmente singular que dispensaria a honraria para chegar por aqui uma merecida tradução. A Editora Rocco reeditou a Trilogia da Ocupação composta de Dora Bruder, Ronda da noite e Uma rua de Roma e a Editora Record trouxe-nos a trilogia composta de Flores da ruína, Remissão da pena e Primavera de cão. A expectativa que fica para os novos leitores conquistados pelo escritor francês é que essa atenção se perpetue. 

A obra de Modiano é um tanto vasta e por esta pequena amostra é certo que uma obra fascinante. O universo poético do escritor abdica das formas literárias eminentemente prontas e tem tour de force muito próprios, sobretudo, quanto ao tratamento dado à relação literatura e memória, literatura e história e na forma de construção do romance de natureza mais subjetivista. O nos que chama atenção, e essa é uma observação construída a partir da leitura da última trilogia aqui citada, é a capacidade com que o Modiano constrói seus narradores para dar verdade ao narrado.

Primavera de cão foi publicado em 1993. O romance se desenvolve entre a primavera de 1964 e a de 1992 (o tempo real da narrativa). O narrador torna-se amigo de Francis Jansen, um fotógrafo que deixou Paris para ir morar no México, mas que, antes, deve organizar as fotografias que fez durante sua vida. Do mesmo modo que acontece no romance anterior (Flores da ruína), o narrador constata que ao longo de sua vida, em algum momento se cruzou com as personagens que aparecem nas fotografias de Jansen.

Embora um intervalo de dois anos separe os dois textos, ambos giram em torno dos temas essenciais do autor – aliás, já disseram reiteradas vezes, e nós concordamos, que a obra de Modiano é formada por uma relutância em temas e formas, como se um contínuo exercício de rascunho em busca da obra ideal ou da grande obra. Os temas de Primavera de cão, voltemos, são a memória, a passagem do tempo, Paris e a Ocupação Nazista que, estranhamente, Modiano não viveu, mas é sua obsessão desde sempre; o fato histórico volta nesses exercícios como se o autor quisesse buscar algum resquício ainda não revelado, como quem se aventura a perscrutar os limites detalhados de uma fotografia. De modo que, a Ocupação resiste como um verdadeiro leitmotiv e sempre através da recordação – como se o autor estivesse diante do relato daqueles que vivenciaram esse tempo do horror (seus pais, possivelmente).

Mas, Primavera de cão, ao lado dos dois outros romances que dão forma a essa trilogia, engendra além do narrador (forma necessária de melhor atenção por parte dos estudos críticos sobre sua obra), outros aspectos de seu particular estilo narrativo: o tempo tal como conhecemos não existe – e os saltos entre um ano e outro, por exemplo, ocorrem numa mesma frase, são superpostos como se um sonho sobre a realidade; e as personagens se tocam através de fragmentos, fantasmas, acasos, frases soltas. Tempo e sujeito são construções de memória, lapsos de memória. Com isso, o escritor propõe a compreensão de que a organização de nossas vidas, assim em linha reta, não passa de ilusão e, como se numa espécie de imanência, por uma rede de memória, todos estivéssemos em sintonia, em diálogo.

No mais, perdura nesse itinerário poético uma dose de certa melancolia – o que não deve ser, de maneira alguma, confundida com tristeza. O narrador de Modiano é o que se indaga sobre os lugares cujos sentidos estão corroídos pelo tempo ou a história vivida está adormecida num silêncio que incomoda aos de mente mais sensível.

O contato do narrador com Jansen revela a paixão do fotógrafo pelo fenomenal Robert Capa, pseudônimo do húngaro Endre Ernö Friedmann, um dos mais célebres nomes da fotografia durante a Guerra. A crítica mais acurada sobre a obra de Modiano, sempre interessada em buscar elementos sobre a biografia do autor para justificar determinada preocupações suas, atribui à relação ora construída em Primavera de cão à relação de Modiano com Raymond Queneau; sabe-se que este foi o responsável por cimentar sua carreira literária a tal ponto que indiretamente foi quem publicou seu primeiro livro, La Place de l’Étoile em 1968; ter a primeira edição publicada pela Gallimard, um dos maiores grupos editoriais franceses, só foi possível, certamente, graças à influência do amigo.

E, falando sobre influências, à medida que o narrador conhece a absoluta desesperança do amigo e começa a organizar também as fotos com ele, passa a ser um obcecado pela vida do fotógrafo e, sobretudo, com sua reclusão e certa intransigência na hora de rejeitar as assíduas chamadas telefônicas de sua amiga e de uma mulher que não se resigna a esquecê-lo. Tamanha obsessão será traduzida na sua última e brilhante teoria, segunda a qual a missão do fotógrafo deveria ser a de fundir-se com a paisagem e fazer-se um invisível.   

Por fim, é preferível acreditar nos textos que não necessitam de justificativas para sua leitura; recordamos o que disse Enrique Vila-Matas sobre a obra de Modiano. “Para adentrar na complexidade do passado e no vazio de toda identidade, Modiano trabalhou duro toda sua vida, sempre o estilo de detetive particular, de questionador constante no oculto e no sombrio. O tenebroso em seus livros parece definir-se sempre à medida que alguém avança lentamente na leitura. Há momentos de desalento, como se fôssemos conduzidos a órbita de um meteorito lento e sem nenhuma visibilidade e sem saber estamos à beira de um barranco ou de uma estrada movimentada, mas isso lhe dá todo um toque incerto e atrativo como se fôramos por um beco da Croix-Jarry: sem saída, com angústia, mas também com notável atração, com a mais estranha das fascinações, buscando ver se há iluminação nas janelas.”

Primavera de cão é retalho de enigmas. E precisa de um leitor atento para costurá-los.

Ligações a esta post:
Leia sobre A remissão da pena aqui.
E sobre Flores da ruína aqui.


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