A travessia, de Robert Zemeckis

Por Pedro Fernandes



É possível que, tal como o feito de Philippe Petit, num futuro não muito distante, A travessia não seja capaz de levar o espectador a contorcer-se ante a façanha de atravessar o intervalo de pouco mais de 40 metros entre as antigas torres do Word Trade Center a 417 metros do chão. Esse apelo é uma forma de dizer que esta produção figura entre os filmes cujo valor da imagem só é possível de ser alcançado pelo espectador através do cinema 3D. 

O filme chega na ocasião quando se passam quarenta anos desse acontecimento inscrito na história recente dos recordes e teve como base para o seu roteiro a biografia desse feito escrita pelo seu próprio autor, Creativity: the perfec crime. Não é a primeira leitura para o cinema; antes, já circulou um documentário e eis aí uma das razões para o fato de esse tom mais realista (no sentido histórico) ser dispensado por Robert Zemeckis. Este feito (o filme), tal como o do artista francês foi no seu tempo, deve ser sublinhado com uma boa surpresa do cinema de 2015.

A razão para esse destaque reside em várias frentes, além da celebração dessa façanha, e este texto apenas busca enumerar algumas delas: a correta escolha da forma narrativa, a construção do drama e a organização temporal para recriar a realização do acontecimento de 7 de agosto de 1974, o texto e a interpretação do corpo de atores, sobretudo, Joseph Gordon-Levitt, quem dá vida à personagem principal desta história.

Talvez, por uma necessidade de zelar o relato original, Zemeckis preferiu adotar o formato do narrador em off; para isso, traz a personagem de Petit, no alto da Estátua da Liberdade contemplando uma Nova York que ainda deveria comentar em toda parte os feitos do artista naquela manhã de agosto. Essa inserção espacial do narrador é marcante: está aí não apenas as Torres Gêmeas como plano de fundo, o cenário onde se processará as ações principais do que será narrado por ele, mas uma ponte entre a cidade estadunidense e a França, terra natal de Petit (a Estátua da Liberdade foi presente dos franceses para os Estados Unidos no ano do centenário da assinatura da Declaração da Independência deste país).

Enquanto isso, a personagem inicia a biografia de seu feito construída em seis anos antes, mas apresentada pela narrativa de A travessia como o acontecimento de uma vida: assim, acompanhamos o primeiro encontro de Petit com o equilibrismo e o malabarismo num circo, os primeiros passos sobre uma corda como uma prática de brincadeira infantil logo tornada espécie de hobbie.

Esses momentos, somados ao conflito com a família, sobretudo o pai militar que não aprova o gosto do filho, são narrados en passant; o foco do diretor estar em determinar como se constrói essa persona assumida por Petit e sua relação com a arte-performance de rua, através da qual vai ganhar o dinheiro da sua sobrevivência, depois de deserdado de casa.

O filme sublinha outro feito inédito do artista, o de ser um dos primeiros que leva a arte circense para rua da capital francesa. Petit passa os anos que antecedem à preparação para as cenas de Nova York entre a mágica e o malabarismo nas ruas de uma cidade em que, em troca de uma boa educação dos moradores, quase tudo figura como crime. Suas apresentações sempre existiam para findar em confusão com a polícia.

Mas, há algo que o espectador já constrói sobre a figura central dessa narrativa desde quando sai de casa e vai viver de performances na rua: uma intensa determinação e dedicação às metas que assume para si. É assim que busca aprender com o circo todas os segredos do equilibrismo e, depois de organizar um pequeno grupo anárquico, podemos assim dizer, a realizar suas primeiras apresentações antes de viajar a Nova York; dentre elas, a travessia entre as torres da Catedral de Notre-Dame, feito mais ousado, que chamou atenção da mídia em seu país denunciando sempre o aspecto transgressor e criminoso da ação.

Quando Petit descobriu a existência das Torres Gêmeas, estava no consultório do dentista; desde então viu nos edifícios ainda em construção, o local ideal para a realização de seu maior desafio. Do sonho à obsessão – é nesse intervalo de tempo, entre estudo dos edifícios, planejamento da ação e realização, que se concentra a atenção de grande parte da narrativa de A travessia.

A presença do narrador em off com várias interrupções de cena, como se demonstrasse o passo a passo de como conseguiu ir de uma torre a outra na clandestinidade, é responsável ainda por quebrar os instantes de maior drama – isto é, aliviar a tensão da narrativa – agilizar e agrupar cronologicamente as ações; avoluma a quantidade de texto, uma característica típica do cinema francês, mas não permite que espectador se sinta numa monótona sucessão de fatos, porque, a atuação de Gordon-Levitt, com algum traço do ingênuo e engraçado Charlie Chaplin, principalmente nos anos em que se apresenta com artista de rua dosam o peso do narrado. Sempre fica clara ainda a originalidade com que Petit quis dar à sua figura, entre elas, a de imprimir com todas as tintas mais que a graça e a ingenuidade um toque de classe na composição de seu ser-performático.

Neste aspecto, o estadunidense soube traduzir essa persona de Petit. Não bastasse a relação de imagem entre um e outro (basta uma visão das imagens da época com a do ator), Gordon-Levitt incorpora a figura de alguém obsessivo com sua grande realização e incapaz de, preso no seu mundo individual, compreender que todo seu projeto não era apenas algo seu, devia merecer o olhar mais atento para os que se dispuseram a, de uma forma ou de outra, ajudá-lo com a empreitada. É o ímpeto característico do artista o que serve de pulsão para a meta estabelecida.

A personagem assume assim, os ideais indispensáveis na composição de grande obra; nenhuma, e nisso se assemelha a força da arquitetura e da engenharia do tempo capaz de erguer os edifícios de Nova York, se realiza enquanto grande feito sem as condições da determinação compulsiva-obsessiva. Como uma peça de arte – única, logo, nunca repetível – o feito de Petit foi mais que um crime perfeito, foi a capacidade de ultrapassar a ordem e rever os conceitos dos limites (mais que o físico) sobre o certo e o errado.

Essa parece ser a maior lição da arte performance: romper com determinismos, ser capaz de o homem superar o homem. O caráter subversivo da sua atividade não está no gesto da travessia, mas naquilo que desencadeia nas pessoas e na revisão de determinados conceitos; está provada quando o Estado revoga o método de condenação a que estaria submetido o infrator depois da repercussão do acontecimento ao redor do mundo. Antes que os mais ingênuos acusem atitudes dessa natureza como mera necessidade egocêntrica de aparecer, é preciso dizer que nenhuma obra existe para permanecer entregue à poeira do esquecimento ou ao porão das insignificâncias. Na arte, aparecer é uma necessidade; afinal, qual artista resiste sem público?

A atitude de Petit bebe em várias fontes essenciais, sobretudo, a habilidade circense do equilibrismo e do malabarismo, duas manifestações performáticas de um espaço cuja natureza da subversão é sua principal base característica. É válido citar o modo como Zemeckis constrói essa percepção, fazendo com o ato igualmente ilusionista da imagem em movimento se associe à forma irreverente com que expressa o gesto de Petit. Irreverência não sem muita tensão.

Aliás, é possível dizer que o diretor equilibrou muito bem duas qualidades da sua obra – a leveza e o drama. Se num primeiro momento, os passos de Petit e sua formação são realizados sem grandes empecilhos, à base da dedicação e da brincadeira (isto é, a irreverência em seu estado mais puro), num segundo, se avista o drama. E a forma como constrói as cenas finais de realização do feito-tema do filme explora ao limite as forças de tensão do espectador; mesmo sabendo que tudo irá se realizar, a maneira como Zemeckis constrói a narrativa é o que possibilita esse efeito. Depois é a sequência de imprevisto, o trânsito de imagens entre o colorido e o preto-e-branco, a trilha sonora, todo um harmonioso conjunto capaz de levar quem assiste ao filme a necessidade de esticar seus nervos antes e enquanto dura o ir e vir da personagem na corda.

Poderíamos ressaltar ainda outros pontos, mas esses são suficientes para demonstrar a confirmação de um exercício cinematográfico bem realizado, com habilidade, pouco malabarismo de efeitos e um bom texto – elementos fundamentais para qualquer obra do gênero.


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Boletim Letras 360º #579

Boletim Letras 360º #573

A bíblia, Péter Nádas

Seis poemas-canções de Zeca Afonso

Boletim Letras 360º #576

Confissões de uma máscara, de Yukio Mishima