Para que serve um crítico?

Por Rafael Kafka



A pergunta que dá origem a esse texto é algo que me incomoda desde meados de 2009. Foi nesse ano que comecei a frequentar cineclubes na cidade de Belém. Na época, tais espaços eram locais ainda tímidos, novos nichos de cinema nos quais era possível ver o genuíno cinema clássico sem ter que pagar nada por isso. Além disso, após os filmes havia debates com os exibidores do filme, o que a princípio me soou como uma forma interessante de troca de ideias e incentivo ao hábito de idas ao cinema em busca de um entretenimento maduro, crítico e enriquecedor.

Eu tinha o hábito de ir a dois cineclubes naquela ocasião. Em um deles, comandado por críticos mais experiente, eu percebia a presença mais firme de debates sobre a ideia do filme si. A maior preocupação era tirar do espectador a sua impressão de leitura acerca do longa-metragem visto e assim, em uma troca impressões, gerar uma boa conversa que por si seria um motivo a mais para idas mais frequentes ao cinema.

No outro cineclube frequentado, o discurso era mais tecnicista, algo bem new critiscim para o meu gosto, o que aos poucos foi me afastando dos debates. Após alguns meses de presença assídua nas discussões pós-filme, pude perceber que nesse cineclube comandado por jovens havia uma verdadeira maçonaria das opiniões: se o espectador fosse do ciclo de amigos do grupo de estudantes universitários que comandavam as exibições, suas ideias mais irrelevantes eram vistas com um ar genial, ao passo que sendo de fora o jovem não tinha sua ideia esmiuçada e a conversa mudava de foco o mais rápido possível.

No começo, pensei que talvez eu fosse o único a sentir isso. Contudo, com o passar do tempo, outras vozes foram fazendo eco à minha, e passei a entender que realmente um discurso tecnicista, cheio de chavões críticos, uma fala fechada em si mesma com o intuito de parecer inteligente cria um público pouco fiel, que aos poucos deixa de encenar a pose de ouvinte inteligente para se divertir com algo mais interessante.

A minha dúvida com a crítica veio a aumentar após a lida de alguns textos de Bernard Shaw no qual ele mostra como os mitos literários são criados com o intuito de transformar em símbolos culturais os escritores, inclusive aqueles que até pouco tempo antes eram alvos de crítica e rejeição por parte das autoridades intelectuais.

Uma produção especial dele que muito me toca é o texto “Como tornar-se um gênio” no qual ele solta a célebre pérola de que os gênios não existem, mesmo ele sendo um segundo a crítica de seu tempo. Bernard Shaw afirma isso mostrando como certos hábitos de fala, de comportamento e de escrita até ajudam a construir a imagem do gênio, aquele ser que servirá de modelo a ser seguido por todos os novos escritores.

Acho que foi a primeira vez que me deparei com um escritor falando de crítica de forma tão ácida. Comecei então a me questionar a funcionalidade de um crítico e se todo o poder verbal tido por eles é algo justo. As minhas reflexões se tornaram ainda mais intensas quando percebi que os debates daquele primeiro cineclube, o qual outrora falava de cinema de modo vivo e preocupado com as impressões de leitura, estavam ficando vazios, pois todos estavam cansados também ali de fazerem o papel do ouvinte inteligente.

*
Há um conto de Cortázar em que ao ato de fazer crítica atinge um paroxismo poético demais. O conto em questão chama-se “O perseguidor” e é considerado por muitos o melhor produto do escritor argentino no gênero histórias curtas. (Apesar de o texto em si não ser tão pequeno, pois passa das sessenta páginas de tamanho.)

Escrito de um modo bastante peculiar, repleto de improvisos e em uma linguagem de monólogo, o conto narra a relação de dois amigos ligados ao universo da arte: Jonhny e Bruno. O primeiro é uma lenda do saxofone, perturbado demais por questões existenciais, excessos com drogas e problemas financeiros e amorosos, porém. Jonhny é o perseguidor de uma verdade mais profunda do que a vivida pelos seres humanos comuns e sua arte improvisada e cheia de traços únicos é a maior prova disso.

Já Bruno é jornalista, crítico de arte, mais especificamente a música. Tornou-se amigo de Jonhny e o admira de forma quase fanática. Escreveu um livro sobre a vida e obra de Jonhny e o acompanha em suas desventuras. Todavia, em uma de suas crises, o jazzista afirma ao amigo não gostar de seu livro, afirmando que ali havia muitas mentiras sobre o seu ser. Entramos aí na parte mais interessante do conto: o choque existente entre o fazer artístico e o falar sobre o fazer artístico.

Bruno é uma pessoa que “leu” a obra de Jonhny: suas músicas, seus improvisos, enfim: sua produção. Além disso, tem contato com a vida íntima do músico, lida de modo próximo com seus dramas pessoais, tem uma visão ímpar da obra produzida ali e escreve um livro sobre isso. Mas, imaginemos, há aquele ouvinte que não tem todos esses dados, e esse ouvinte ouve a música em um contexto, faz dela interpretações, tira impressões... Talvez ele escreva uma carta ao músico, talvez ele escreva um livro o qual nunca seja publicado ou nunca tenha público. Talvez ele apenas troque ideias em um bar com os amigos ou nos corredores da escola ou da faculdade com os colega.

Aqui já não estou na obra de Cortázar. Aqui já estou no plano da pergunta: o que os une, o anônimo personagem suposto por mim e o Bruno do escritor argentino? Os dois fazem crítica, os dois tem suas impressões de leitura, os dois falam sobre aquilo que leem de onde se localizam em relação à obra. A diferença fica por conta do suporte que é oferecido a cada um: Bruno, por ser jornalista, ao que tudo indica célebre, pode criar os seus gênios, os seus mitos, dizer quais são os modelos a se seguir.

O anônimo apenas pode falar do objeto lido sem ambicionar causar qualquer furor nas páginas de jornais.

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Podemos falar de uma “ordem do discurso” para falarmos como Foucault: nem todos podem falar sobre tudo. Apenas as pessoas julgadas autoridades pelos nichos sociais têm o poder para falar sobre assuntos julgados elevados para mente comuns. Nesse sentido, o crítico encarna o falante autorizado, com uma inteligência rara, capaz de esmiuçar as profundezas do discurso literário. Nós apenas o ouvimos sem pensar muito em qual o motivo de ele ter tanta força.

Os púlpitos desses homens da crítica eram as colunas de jornais, meios quase sempre fechados para o alcance da grande massa em qualquer posição que não fosse a de leitor/consumidor das notícias. O crítico então fazia parte de uma seita de homens das letras cuja voz tinha o poder de criar mitos (e gênios) e destruir santidades intelectuais.

Contudo, as coisas começaram a mudar. Surgiu a internet e o mundo virou uma anarquia em muitos sentidos análoga à imaginada pelos idealistas de uma sociedade livre. Nesse momento, muitos ganham voz e passam a falar do que lhes toca. Os blogs ganham força e os novos escritores que não têm espaço nos grandes meios de comunicação passam a criar seus próprios espaços para expressarem seus pensamentos.

Eles não terão, ao menos no começo, o mesmo nível de exposição de ideias do que um consagrado crítico, mas terão maior liberdade e menos pretensão. Falarão de livros dos quais gostam de um modo mais pessoal, querendo serem lidos mesmo que por seus amigos mais íntimos. Compartilharão os links de seus textos no Facebook e no Twitter, e mostrarão a nós que a ordem do discurso foi abalada: agora todos podem falar de tudo e o crítico não é mais aquela criatura tão sábia que fala de algo sobre o que não pensamos muito a respeito, mas convencionamos em achar inteligente. Agora todos são livres para expor suas ideias sobre os objetos de leitura que tanto amam.

E nesse novo caos libertário da internet, com as críticas sendo expostas de um modo mais cru e sincero, sem a pretensão de doutos sobre arte, literatura e o que mais aparecer, percebemos que a função do crítico é nada mais do que expor sua visão sobre algo. Nem sempre de modo crítico, ou nem sempre de modo criticamente livre, muitas vezes com as opiniões vendidas à necessidade de ser aceito em uma comunidade.

Percebemos agora que o crítico, como nós, é um leitor que expõe sua visão. A sua fama, o seu prestígio, deve-se ao suporte de seu texto. Um tabloide famoso dá mais forma ao texto do que um blog feito por amor à arte. Mas isso não anula que todos somos críticos quando falamos do que nos toca e aquele que recebe o rótulo de crítico nada mais do que um privilegiado que não necessariamente tem algo a mais a dizer do o resto da comunidade leitora de qualquer escritor.


*
Tenho preferência pelos críticos de blog por conta de sua linguagem mais solta e sincera. Muitas vezes, convenci-me a ler um livro após ler alguma resenha feita em algum espaço despretensioso. E por meio desta experiência criei uma visão crítica do ato de fazer crítica.

O bom crítico é aquele que fala da obra com sentimento, sem se preocupar apenas em usar um vocabulário rebuscado. Muitas das vezes o modo vazio com que as pessoas que falam de obras se expressam é oriundo de uma preocupação excessiva em impactar por meio de um léxico bonito o seu leitor. Preocupação essa que fica acima da missão de falar da obra, falar o que sentiu com ela, como tal leitura afetou sua visão de mundo; como aquele livro, conto, poema, crônica etc, foi capaz de gerar no leitor um sentimento confuso de revolta, paixão, depressão, melancolia e muitos outros.

Quando escrevo resenhas faço-o como se estivesse a escrever crônica. É o jeito sentimental de escrever meus textos críticos que no fim me deixa com a certeza de ter produzido um tecido verbal o qual me agrada demais. Minha resenhas geralmente expressam de forma clara a minha preocupação em não fechar a leitura em uma redoma de vidro interpretativa: em ver a obra fechada em si mesma.

Gosto do impacto causado, gosto da sensação de terror diante de uma ideia bem exposta e de um sentimento puro brotado em frases de efeito. E faço de tudo para expor isso em meus textos, para que, se possível, quem o ler sinta vontade de ler o objeto abordado.

(Chego a suspeitar que se os críticos falem tão difícil em seus comentários, falo aqui daquele tipo de jornal, é porque eles se sentem tão inteligentes que ao rebuscarem demais seus textos tentam afastar a grande massa daquela obra e, deixando restrita a um pequeno nicho, obtenham uma evidência forjada de que seu bom gosto significa um talento imanente para entender obras difíceis, já que os próprios leitores não buscam lê-las após ler as brilhantes exposições desses sábios homens das letras.)

Como professor, vejo nas crianças o exemplo mais claro de leitura sincera: aquela coisa empolgada com o universo ampliado da arte. Vejo no gosto irrefreável de uma criança leitora a mais bela manifestação de intelectualidade, e o modo apaixonado de tais crianças falando em leitura é tocante demais. Quando escrevo, tento imitar isso e sinto que não me cristalizo na minha imagem de criador de gênios. Um escritor só é gênio para mim se mexer com meu âmago, não por ser parte de um cânone clássico criado por nossa ordem do discurso.

O crítico apaixonado, que fala da obra com todo o ardor de uma criança apaixonada por leitura, colabora com a mudança do mundo por incentivar outros a lerem os textos abordados em suas linhas, questionar ou concordarem com as visões expostas e, quem sabe, expressar em seus espaços virtuais a sua visão de mundo, sem timidez alguma.

Nesse sentido, termino dizendo que o leitor apaixonado o qual trata de textos lidos em seus textos é um compartilhador de leitura. Um ser que hoje em dia, no mundo da internet, tem todo o espaço do mundo para ser visto. Precisa apenas de um pouco de paciência para ganhar um público que não lhe dará nada no plano financeiro. Contudo, tal público pode lhe dar a certeza de que o seu vício por leitura é algo belo e de que mais pessoas devem ser infestadas por ele.

Amém!


***

Rafael Kafka é colunista no Letras in.verso e re.verso. Aqui, ele transita entre a crônica (nova coluna do blog) e a resenha crítica. Seu nome é na verdade o pseudônimo de Paulo Rafael Bezerra Cardoso, que escolheu um belo dia se dar um apelido que ganharia uma dimensão significativa em sua vida muito grande, devido à influência do mito literário dono de obras como A Metamorfose. Rafael é escritor desde os 17 anos  (atualmente está na casa dos 24) e sempre escreveu poemas e contos, começando a explorar o universo das crônicas e resenhas em tom de crônicas desde 2011. O seu sonho é escrever um romance, porém ainda se sente cru demais para tanto. Trabalha em Belém, sua cidade natal, como professor de inglês e português, além de atuar como jornalista cultural e revisor de textos. É formado pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará em Letras com habilitação em Língua Portuguesa e começará em setembro a habilitação em Língua Inglesa pela Universidade Federal do Pará. Chama a si mesmo de um espírito vagabundo que ama trabalhar, paradoxo que se explica pela imensa paixão por aquilo que faz, mas também pelo grande amor pelas horas livres nas quais escreve, lê, joga, visita os amigos ou troca ideias sobre essa coisa chamada vida.

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