O Herói Discreto, de Mario Vargas Llosa

Por Rafael Kafka



Em O Herói Discreto, Mario Vargas Llosa se embrenha no romance policial ao mesmo tempo em que aborda questões familiares complexas em um estilo seco e ao mesmo tempo dramático o qual torna este livro bem interessante. Alguns recursos caros ao autor, como as histórias simultâneas, os flashbacks e cortes instantâneos de se mostram presentes, ampliando a dimensão verbal do enredo e aproximando-o de técnicas utilizadas pelo cinema.

Logo nas primeiras páginas o autor deixa clara a temática do romance: um belo dia, Felícito Yanaqué, bem sucedido empresário do ramo de transportes, recebe a oferta de serviços de proteção particular no meio de uma carta misteriosa e anônima. Geralmente, tais serviços possuem uma atmosfera coercitiva por trás do tom amistoso das palavras, o que já indica um aspecto interessante da obra de Vargas: o uso de elementos comuns à realidade latino-americana, no caso as milícias armadas, de modo a convocar o leitor para construir o sentido da obra de forma mais profunda, por meio do seu conhecimento de mundo, tirando assim a literatura de uma esfera “sacralizada”, distante dos problemas sociais de nosso meio.

Sabendo dos riscos trazidos pela negativa dada ao “pedido” misterioso e não querendo ceder diante de um antigo voto feito a seu pai, o qual lhe dissera para jamais deixar ninguém pisá-lo, Felícito procura a polícia, saindo de lá com uma terrível sensação de desamparo, já que os policiais afirmam só poderem fazer algo a partir do momento em que os criminosos assumam alguma ação.

Nesse momento, ele então procura Adelaida, uma velha amiga com fama de adivinha, a qual vinte anos o salvara da morte após avisá-lo sobre um possível acidente enquanto ele dirigia seu caminhão. Desde então, Adelaida se tornou uma espécie de consultora de Felícito, que passa a explicar boa parte de seu sucesso econômico pelos conselhos da adivinha, que a princípio nada tem a dizer sobre as ameaças mafiosas, mas depois diz a Felícito que pague a quantia desejada.

Surge então uma cisão em seu espírito, pois ele passa a se dividir entre o preceito moral de seu pai e os sempre respeitados presságios de sua amiga paranormal. Desolado, ele se dirige à casa de sua amante de sua amante de oito anos, Mabel, com quem compartilha os atos recentes. Ao sair dali, descobre uma segunda carta em tom mais ameaçador e passa a se sentir vigiado de todos os lados, algo reforçado pelos próprios policiais com seus avisos de cuidado redobrado, inclusive.

Ao mesmo tempo em que narra as desventuras de Felícito, Llosa também relata o desejo de Ismael, dono de uma seguradora, em se casar com sua empregada Armida e livrar-se de entregar sua fortuna a seus dois filhos gêmeos, nada preocupados com a manutenção dos negócios da família. Ismael demonstra profunda confiança em Rigoberto, seu amigo e gerente, e pede que ele seja uma das testemunhas de seu casamento civil. Este por sua vez entende que os filhos de Ismael se tornaram do jeito que são por conta do excesso de proteção dado a eles, com direito a livrá-los de problemas causados por seu temperamento inconsequente.

O casamento com Ermida ocorre de forma bastante discreta e rápida e o casal viaja para algum local secreto, sabendo do eminente acesso de fúria dos gêmeos, chamados na história de “hienas”, o que deixa Rigoberto e sua esposa Lucrecia em momentos de profunda tensão.

Mesmo no começo da história, já se percebe as marcas tradicionais do texto de Llosa, como o dinamismo narrativo e o gosto por narrativas duplas, triplas, cheias de idas e vindas ao passado. A memória aqui, quando usada, assume a forma de pura narratividade, não estancando a narrativa em nenhum momento com digressões a la Proust, como na cena do flashback que revela a conversa dos irmãos ouvida por Ismael, gerando nele o desejo de vingança. Tal cena é construída por um corte no diálogo entre Ismael para a cena entre os dois irmãos no quarto de hospital ocupado pelo pai, o que poupa o leitor de ler todo um painel descritivo a servir de preâmbulo para a obra.

No decorrer de seu romance, Llosa retoma diversas cenas de A Casa Verde e da saga de Don Rigoberto (formada pelos livros O Elogio da Madrasta e Os Cadernos de Don Rigoberto, ainda não lidos por mim). O autor faz isso de forma bastante hábil, o que permite aos leitores incautos o retorno ao passado das personagens sem prejuízo do sentido geral do enredo. Um exemplo, é a cena em que Lituma procura pistas do paradeiro de Josefino, antigo conhecido seu o qual se envolvera com Bonifácia, garota por quem o tenente Lituma era apaixonado nos tempos em que estava na cadeia. Tal procura se justifica pela lembrança de Lituma acerca dos desenhos feitos por Josefino, os quais em sua memória assemelham-se às aranhas usadas como assinaturas nas cartas recebidas por Felícito.

O clima de estranheza causado por uma camaradagem presa a outro espaço de memória se intensifica conforme as suspeitas de Lituma deixam de focar em Josefino se dirigindo para os dois primos, em especial José. Todavia, as suspeitas de Lituma são ofuscadas após ouvirem o depoimento de Mabel, liberta de seu suposto cativeiro após Felícito fingir que cumprirá as exigências dos mafiosos. O tenente Silva passa a defender a hipótese de Mabel ser cúmplice dos criminosos.

Enquanto isso, Rigoberto precisa lidar com a pressão de Miki e Escovinha, filhos de Ismael, os quais buscam de todas as formas anular o casamento deste com Armida, feito com o intuito de lhes tirar a herança. Ao mesmo tempo, ele deve auxiliar Narciso, motorista de Ismael e outra testemunha do casamento, o qual também é perseguido em diversas instâncias pelos dois irmãos.

Há também a necessidade de se lidar com as aparições de Edilberto Torres para Fonchito, seu filho, que passa a ter conversas misteriosas com um estranho sujeito o qual ninguém além do garoto enxerga e tem completo conhecimento de todas as questões familiares de Fonchito e seus parentes. As aparições passam a se dar em diferentes lugares, como espaços públicos, a escola, discotecas, o que deixa Rigoberto atordoado por se ver cada vez mais diante de um caso de aparição fantasmal, algo que seu agnosticismo o impede de crer. Nem mesmo o padre O’ Donnovan é capaz de achar uma explicação plausível dentro do campo da racionalidade para o surgimento desse personagem.

O Herói Discreto é uma narrativa que girará em torno dos fatos aqui expostos. Mesmo com alguns recursos literários mais ousados, o foco de Llosa recai nas idiossincrasias de seus personagens e por sua simplicidade este romance se torna genial. A narrativa é objetiva em sua densidade psicológica e cria a impressão no leitor de que os fatos narrados são o que há de mais importante em um livro, sem muitos espaços para firulas. Nesse sentido, Llosa parece ter aprendido com Pedro Camacho, herói novelista de Tia Julia e o Escrevinhador, que via na arte o objetivo sagrado de entreter e emocionar os leitores. É esse justamente o foco de Llosa aqui: emocionar e entreter, contar uma história mais do que dar uma lição de moral, exibindo a função da literatura em seu maior grau: provocar a imaginação do leitor.

***

Rafael Kafka é colunista no Letras in.verso e re.verso. Aqui, ele transita entre a crônica (nova coluna do blog) e a resenha crítica. Seu nome é na verdade o pseudônimo de Paulo Rafael Bezerra Cardoso, que escolheu um belo dia se dar um apelido que ganharia uma dimensão significativa em sua vida muito grande, devido à influência do mito literário dono de obras como A Metamorfose. Rafael é escritor desde os 17 anos  (atualmente está na casa dos 24) e sempre escreveu poemas e contos, começando a explorar o universo das crônicas e resenhas em tom de crônicas desde 2011. O seu sonho é escrever um romance, porém ainda se sente cru demais para tanto. Trabalha em Belém, sua cidade natal, como professor de inglês e português, além de atuar como jornalista cultural e revisor de textos. É formado pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará em Letras com habilitação em Língua Portuguesa e começará em setembro a habilitação em Língua Inglesa pela Universidade Federal do Pará. Chama a si mesmo de um espírito vagabundo que ama trabalhar, paradoxo que se explica pela imensa paixão por aquilo que faz, mas também pelo grande amor pelas horas livres nas quais escreve, lê, joga, visita os amigos ou troca ideias sobre essa coisa chamada vida.

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