Mario Vargas Llosa: vida e liberdade (parte 2)

Por Enrique Krauze


Mario Vargas Llosa com a prima Patricia Llosa com quem se casou depois do divórcio com Julia Urquidi

A Revolução Cubana: ilusão e desencanto

Quem não saudou com entusiasmo o triunfo desses valentes barbudos que lutavam contra a ditadura, enfrentaram o Império e abririam uma era de dignidade e independência para “Nuestra América?” No México não só a esquerda os aplaudiu mas um amplo espectro que cobria o centro liberal e a direita: de Daniel Cosío Villegas a Vasconcelos. Em 1958, Vargas Llosa havia escrito manifestos de apoio à Revolução, cujo triunfo o surpreendeu em Paris. Junto com uma centena de entusiastas saiu às ruas para as celebrações. Viu e viveu, por muito tempo, com uma história de libertação:

“Cuba me parecia realmente uma forma renovada, mais moderna, mais também mais flexível e mais aberta, da revolução. Eu vivi isso como muitíssimo entusiasmo; além disso, considerando Cuba como um modelo que poderia ser seguido pela América Latina. Nunca antes disso, senti um entusiasmo e uma solidariedade tão poderosa por um feito político”.

Em 1962, Mario Vargas Llosa viajou pela primeira vez à Cuba. Encontrava-se no México como correspondente da Radiofusión – Televisión Francesa quando estourou a crise dos mísseis. A agência pediu-lhe que se mudasse para a ilha. Ali viu os aviões estadunidenses voar quase rente ao solo. Doou sangue e sentiu o delírio da imolação. De regresso à Paris, em poucos meses, recebeu a notícia de que seu primeiro romance, A cidade e os cachorros, inspirada em suas experiências em Leoncio Prado, havia obtido o Prêmio Biblioteca Breve da Seix Barral. Dois anos mais tarde, em 1964, regressou por alguns meses ao Peru, onde realizou uma breve e intensa viagem pela selva. Não era a primeira vez que fazia isso. Essas visitas deixariam uma marca profunda em sua literatura. A casa verde se passa em Piura, onde está o bordel, mas também em Santa María de Nieva, na selva. E na selva conhece pela primeira vez a lenda que anos mais tarde cristalizaria em O falador. Por outro lado, naquela estadia no Peru, Mario se divorciou de Julia Urquidi. Pouco depois casaria com sua prima, Patricia Llosa, com quem regressaria sua vida parisiense.

“A todos, cedo ou tarde, chega-lhes a sua Kronstadt”, escreveu Daniel Bell, referindo-se ao momento de desilusão com respeito à Revolução Soviética. O “Kronstadt” de Vargas Llosa não foi uma mudança radical mas um processo lento. Num primeiro momento, como tantos artistas e intelectuais do Ocidente, não só lhe cativaram os atos de justiça social (reforma agrária, educação, saúde para todos etc.) mas sobretudo o fervor cultural da Revolução. Figuras como Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir, Juan Goytisolo, Hans Magnus Enzensberger, Julio Cortázar, Mario Benedetti, Ángel Rama, José de la Colina, Carlos Rangel, Ernesto Sábato, Juan Rulfo, entre outros, chegaram à Cuba como hóspedes de honra para testemunhar os prodígios de uma revolução com liberdade. Vargas Llosa viajou a Cuba em cinco ocasiões. “Gradualmente fui vendo – a princípio o que não queria ver, a princípio inclusive o que me molestava reconhecer – uma série de manifestações que indicavam que na realidade, na prática, não era de nenhuma maneira o que a imagem, a publicidade e a ilusão nos queriam fazer ver”.

Em 1967, durante sua terceira viagem a Havana, aceitou formar parte do Conselho de colaboradoras da revista Casa de las Américas. O convite vinha de Roberto Fernández Retamar, que havia substituído em 1964 Haydée Santamaría na direção dessa influente publicação. Outros menos eram Ezequiel Martínez Estrada, Manuel Gaich, Julio Cortázar, Emmanuel Carballo, Ángel Rama, Sebastián Salazar Bondy, Mario Benedetti, Roque Dalton, René Depestre, David Viñas, Jorge Zalamea e os cubanos Edmundo Desnoes, Ambrosio Fornet, Lisandro Otero e Graziella Pogolotti. Sua empatia era ainda imensa e se entende: em 1965, um Guillermo Cabrera Infante (o diretor de Lunes de Revolución, suplemento cultural de Revolución que havia sido censurado pelo regime  e a quem Vargas Llosa havia visto em Paris nesse mesmo ano) se mostrava reticente em falar da situação cubana, atuava todavia como um diplomático. Os problemas eram conhecidos mas “se ocultavam” – recorda Llosa – “por trás de uma muralha protetora”. Nessa ocasião, Mario participou de uma entrevista coletiva com Fidel Castro em que o Comandante, encantador de serpentes, se mostrou heterodoxo e prometeu que corrigiria de imediato os desvios mostrados por seus amáveis críticos:

“Fidel, ao longo de sua conversa, se referiu muitas vezes a Marx, a Lênin, ao materialismo histórico, à dialética. Sem dúvida, nunca vi um marxista menos apegado ao emprego de fórmulas e esquemas cristalizados [...] Se de uma coisa fiquei absolutamente convencido nessa noite branca, foi do amor de Fidel por seu país e da sinceridade de sua convicção de atuar em benefício de seu povo” [Sabres e utopias, 2009].

Mas em 1967 ocorreu outro episódio que acabou o encanto. Sem que ele soubesse, seus editores haviam apresentado seu segundo romance, A casa verde, como candidato ao Prêmio Rómulo Gallegos.

(O governo democrático que outorgava o prêmio, encabeçado por Raúl Leoni, havia feito frente a uma invasão guerrilheira induzida e apoiada ativamente pelo regime cubano). Por seu estreito vínculo com a Revolução, Vargas Llosa comentou essa indicação com Alejo Carpentier, então representante cultural de Cuba em Paris. Carpentier viajou a Londres em segredo para entrevistar-se com ele e se propôs, no caso de ser o ganhador do prêmio, fazer uma doação à luta de Che Guevara, que nesse momento se encontrava em algum lugar da serra boliviana. Esse gesto, segundo Carpentier, teria uma grande repercussão na América Latina. Em sua entrevista, Carpentier leu uma carta de Haydée Santamaría, a mítica companheira de Fidel Castro na tomada do Cuartel Moncada, nessa época então poderosíssima funcionária do aparelho cultural cubano. “Naturalmente compreendemos que um escritor tem necessidades – dizia na carta Haydée Santamaría –, o que não significa que você tenha que prejudicar-se por essa ação; a revolução lhe devolverá o dinheiro discretamente, sem que isso se saiba”. A Revolução propunha a Vargas Llosa que montasse uma farsa. O escritor se indignou. Finalmente, aceitou a receber o prêmio, pronunciou um discurso em que se mostrou distanciar-se do governo da Venezuela e fez um incendiado elogio da Revolução cubana:

“Dentro de dez, vinte ou cinquenta anos, havia chegado a todos os nossos países, como agora em Cuba, a hora da justiça social. A América Latina inteira terá se emancipado do império que a saqueia, das castas que a exploram, das forças que hoje ofendem e reprimem. Eu quero que essa hora chegue o quanto antes e que a América Latine ingresse de uma vez por todas na dignidade e na vida moderna, que o socialismo nos livre de nosso anacronismo e nosso horror”.

Semanas depois, a funcionário cubana pareceu satisfeita e o felicitava pelo “grito de Caracas”. Mas esse discurso de defesa à Revolução continha também uma passagem premonitória, uma clara defesa da liberdade do escritor: “É necessário que saibam que a literatura é como o fogo, significa dissidência e rebelião, que a razão de ser do escritor é o protesto, a contradição, a crítica”.

O certo é que intervenção de Carpentier havia criado um distanciamento com a Revolução. Em 1968, dois episódios o aceleraram: as notícias que chegavam da ilha sobre a perseguição oficial a intelectuais cubanos e o apoio irrestrito de Castro à invasão soviética da Tchecoslováquia, em agosto daquele ano. Um mês mais tarde (26 de setembro) a revista peruana Caretas publicou uma entrevista com Vargas Llosa em que ele falou do “socialismo dos tanques”, condenando a postura pró-soviética de Fidel. Vargas Llosa havia vivido por uns dias na Tchecoslováquia durante a Primavera de Praga e havia se entusiasmado com o experimento de liberdade e democracia dentro do socialismo que tentava o governo de Dubček (tão diferente da atmosfera gris, de burocracia, tédio, corrupção e filas que Vargas Llosa havia testemunhado em sua passagem pela URSS em 1966). Sua indignação tinha uma base na experiência.

Gabriel García Márquez e Mario Vargas Llosa: a esquerda os uniu e o liberalismo nascente de Llosa os separou.


Por outro lado, em outubro do mesmo, Julio Cortázar lhe escrevia comentando que Carlos Franqui, Carlos Fuentes, Juan e José Agustín Goytisolo, Gabriel García Márquez, Jorge Semprún e ele mesmo estavam preparando uma “carta a Fidel sobre os problemas dos intelectuais em Cuba”. E Cortázar rematava: “Desde logo, estás incluído entre os assinantes”. No dia 12 de novembro de 1968, García Márquez, ainda muito próximo de Vargas Llosa, lhe faz saber que acarta estava já em mãos de Fidel Castro:

“Creio, sem dúvidas, que não servirá de nada. Fidel contestará, com a maior finesa que lhe seja possível, que o que ele faça com seus escritores e artistas é um assunto seu, e que portanto podemos ir à merda. Sei de boa fonte que está desgostoso com nossa atitude a respeito da Tchecoslováquia e agora tem boa oportunidade para desabafar”.

Ao assumir, em 1964, a direção da revista Casa das Américas, Roberto Fernández Retamar havia substituído o conselho de redação original por um conselho de colaboradores, à maneira da revista argentina Sur. Esta mudança implicava uma aproximação maior com a publicação cubana, a assistência a números anuais onde não só se revisava o andamento da revista mas se propunha formas de apoio efetivo para com a Revolução. A primeira reunião aconteceu em 1967, a segunda em início de 1969. Vargas Llosa não pode assistir a essa última e sua ausência foi interpretada como um afastamento. Por esses dias Vargas Llosa escreve a Carlos Fuentes (quem, certamente, levava tempo de padecer na própria pele as desconfianças e intolerância da burocracia cultural cubana). Havia conversa – diz Llosa – com Fernández Retamar “para tratar de confirmar se era certo que Edmundo Desnoes estava preso, acusado de ser um agente da CIA, mas ao falar com ele não me atrevi a perguntá-lo”. E acrescenta: “Estou extremamente inquieto, receoso e assustado com o que ocorre em Cuba e te peço que me contes o que sabes. A última que me chegou às minhas mãos foi o discurso de Lisandro Otero que produziu calafrios em mim”. Nesse mesmo mês de janeiro, de Havana, o conselho de colaboradores da Casa de las Américas em vigor (Benedetti, Carballo, Cortázar, Dalton, Depestre, Desnoes, Fernández Retamar, Fornet, Galich, Otero, Rama e Viñas) enviou a Vargas Llosa uma carta em que reclamava sua não assistência e o convocava para ir imediatamente a Havana para discutir com o ele “sobre as atitudes e opiniões tuas”. O clima ia aquecendo. Na mesma linha da carta coletiva, em 18 de janeiro, Fernández Retamr escreve a Llosa: “Quando já foi evidente que não virias, não nos restou outra coisa que falar de ti em tua ausência”. O cubano sublinha que sua presença era importante, “mais, talvez, que a dos outros [...] porque havias feito uma condenação pública da política externa da revolução; porque havias enviado a Fidel uma cópia de um texto coletivo, cujo original Haydée recebeu, em que intervias, com opiniões que devias defender, em delicadas questões do país; e porque isso ocorria enquanto estavas no caminho de ser (ou já eras) ‘escritor residente’ numa universidade estadunidense”. Vargas Llosa o contesta:

“Minha relação com Cuba é muito profunda, mas não é nem será a de um incondicional que faz suas de maneira automática todas as posições adotadas em todos os assuntos pelo poder revolucionário. Esse gênero de adesão, que inclusive num funcionário me parece lastimosa, é inconcebível para um escritor, porque, como sabes, um escritor que renuncia a pensar por conta própria, a dissidiar e opinar em voz alta já não é um escritor mas um ventríloquo. Com o enorme respeito que sinto por Fidel e pelo que representa, sigo desgosto seu apoio por sua intervenção soviética na Tchecoslováquia, porque creio que essa intervenção não suprimiu uma contrarrevolução mas um movimento de democratização interna do socialismo num país que aspirava fazer de si mesmo algo semelhante ao que, precisamente, já foi feito em Cuba”.

Uma das últimas reuniões da Casa de las Américas com participação de Llosa: o escritor está ao lado de Julio Cortázar


O assunto não terminou aí. Julio Cortázar, quem foi à reunião em Havana onde se criticou severamente a Vargas Llosa pela ausência, reclama “o descuido” de não haver ido a Havana para defender sua posição. E em meados de 1969 acrescenta: “A radicalização em Cuba é muito forte, há uma espécie de exasperação que por uma parte dá esplêndidos resultados no setor econômico, mas que situa os escritores num maniqueísmo cada vez mais simplificador do que não pode sair nada de bom...”

A respeito dos “esplêndidos resultados do setor econômico”, era obvio que muitos escritores viam o que queriam ver, o que eram induzidos a ver. Se repetia uma velha história de autoegano e ingenuidade no Ocidente, como a de muitos intelectuais conceberam ao visitar o “mundo do futuro” nos anos trinta, anos de repressão, coletivização e escassez. Vargas Llosa não suspeitava então da realidade sob a aparência. O caminho percorrido por sua Kronstadt pessoal não foi política, econômica ou social: foi cultural. Em 1971, a raiz da detenção de Herberto Padilla (e de vários intelectuais) e de sua “confissão” (processo que imitava os Processos de Moscou), Vargas Llosa decide renunciar ao comitê da revista Casa de las Américas, o mais importante órgão cultural cubano, o que já se cooptava entre vários intelectuais latino-americanos. Dirigiu a carta a Haydée Santamaría:

“Compreenderá que és o único que pode fazer logo do discurso de Fidel fustigando aos ‘escritores latino-americanos que vivem na Europa’, a quem nos proibiu a entrada em Cuba ‘por tempo indefinido e infinito’.

Irritou-lhe tanto nossa carta pedindo que esclarecesse a situação de Herberto Padilla?”

Nessa mesma carta abundava os motivos de seu distanciamento com a Revolução:

“Obrigar alguns companheiros com métodos que repugnam a dignidade humana, acusá-los de traições imaginárias e assinar cartas onde até a sintaxe parece policial, é a negação que me fez abraçar desde o primeiro dia a causa da Revolução cubana: sua decisão de lutar por justiça sem perder o respeito aos indivíduos”.

Haydée Santamaría (que uma década depois deixaria a vida num rapto de desilusão histórica e pessoal) contestou Llosa de maneira taxativa no dia 14 de maio de 1971: “Você não teve a menor falta de firmeza em somar sua voz – uma voz que nós contribuímos para que fosse escutada – ao coro dos ferozes inimigos da Revolução cubana”. Reclamava sobre suas “opiniões ridículas” sobre a Tchecoslováquia e acrescentava que a carta de renúncia o representava “de corpo inteiro” como “a viva imagem do escritor colonizado, depreciador de nosso povo, vaidoso, confiante de que a boa escrita não apenas perdoa um mal mas permite emitir juízo sobre todo um processo grandioso como a Revolução cubana”.

Cinco dias depois, Vargas Llosa publicou uma declaração. Sua renúncia, provocada por um episódio que considerava lamentável, não implicava hostilidade contra a Revolução cubana, em cujas realizações, todavia acreditava. Sua renúncia era um ato de protesto e uma afirmação da liberdade como condição essencial do socialismo: “O direito à crítica e à discrepância não é um ‘privilégio burguês’. Ao contrário, só o socialismo pode, ao sentar as bases de uma verdadeira justiça social, dar expressões como ‘liberdade de opinião’ e ‘liberdade de criação’ seu verdadeiro sentido”.

Dias depois, redigida por Vargas Llosa e assinada por um amplo conjunto de intelectuais, entre eles Carlos Fuentes, Italo Calvino, Juan Goytisolo, Simone de Beauvoir, Marguerite Duras, Carlos Franqui, Pier Paolo Pasolini, Jorge Semprún, Susan Sontag, Carlos Monsivás, Alberto Moravia, José Emílio Pacheco, José Revueltas, Juan Rulfo, Jean-Paul Sartre e duas dezenas a mais de escritores, publica-se uma carta dirigida a Fidel Castro em que comunicam sua “vingança e cólera” pelo caso Padilla. Anos depois, Vargas Llosa refletiria sobre o incidente:

“O caso Padilla serviu habilissimamente para que Cuba se separasse de certo tipo de aliados e somente tivesse os incondicionais, esses aliados que iam estar com a revolução houvesse o que houvesse, ou porque eram sectários, eram stalinistas e funcionavam como os cachorros de Pavlov, por reflexos condicionados, ou porque eram compráveis, baratos, que se compravam com uma passagem de avião, com um convite a um congresso [...] No dia seguinte depois de romper com Cuba, comecei a receber uma chuva de injúrias, o que para mim foi muito instrutivo. Passei, depois de haver sido uma figura muito popular nos meios da esquerda e nos meios rebeldes, a ser um marginal. As mesmas pessoas que me aplaudiam com muito entusiasmo quando ia dar uma conferência, se eu aparecia por ali, me insultavam e me lançavam injúrias” [Diálogo com Vargas Llosa]

O caso Padilla, admiravelmente recolhido em Persona non grata de Jorge Edwards, marcou o fim do idílio (o Kronstadt) de um setor da intelectualidade latino-americana e ocidental com a Revolução cubana. Vargas Llosa não tinha dúvida de que se tratava de uma “cópia má e inútil das piores máscaras stalinistas”. Mas em muitos grandes escritores, críticos do Estado soviético e cubano, como Octávio Paz, o ideal socialista seguia vivo. Em Vargas Llosa, por breve tempo, estaria também da mesma maneira.

De Sartre a Camus

Desde 1966, Vargas Llosa havia fixado sua residência em Londres. Nesses anos, nasceram seus filhos Álvaro (1966) e Gonzalo (1967). Sua filha Morgana nasceria em 1974, em Barcelona. Em 1971, termina seu doutorado em Literatura com uma tese sobre Cem anos de solidão, o célebre romance de Gabriel García Márquez; a tese seria publicada nesse mesmo ano com o título Gabriel García Márquez / História de um deicídio. Os intelectuais pró-castristas o tiveram na mira. O crítico literário Ángel Rama, diretor da prestigiada revista Marcha, publicou uma áspera resenha sobre esse livro, que derivaria numa polêmica com Vargas Llosa. Rama o acusava de fazer uma leitura romântica e individualista do romance de García Márquez, uma interpretação contrária à “ideia da arte como trabalho humano e social, que aborta o marxismo” (“A propósito de História de um deicídio. Va de retro”, Marcha, 5 de maio de 1972). A resposta de Vargas Llosa revela seu distanciamento das concepções ditadas pelo crítico marxista György Lukács sobre o papel da literatura na sociedade. Quase ao mesmo tempo, Casa de las Américas publicou um texto em que Carlos Rincón fazia uma crítica dogmática do “discurso teórico” de Vargas Llosa e tentava tirar sua legitimidade do caso Padilla.

Vargas Llosa se dedicou a cultivar uma zona literária mais lúcida e erótica. Em 1973, publica seu quarto romance, Pantaleão e as visitadoras (que, com tom picaresco, aborda o tema da prostituição tolerada e fomentada pelo Exército na selva peruana) e dois anos mais tarde A orgia perpétua / Flaubert e Madame Bovary, livro que foi, ao mesmo tempo, defesa sobre a literatura e resposta ao célebre ensaio de Jean-Paul Sartre O idiota da família. Em 1976, foi eleito presidente do Pen Clube Internacional, organismo em que desenvolveu uma intensa atividade literária e fez frente à repressão militar na Argentina. No ano seguinte daria a luz a Tia Júlia e o escrevinhador, em que narrava em forma de romance sua relação e casamento com sua tia, Julia Urquidi.

Distanciado definitivamente da Revolução cubana, Vargas Llosa começou a por em causa de juízo seus heróis intelectuais. Significativamente, como um primeiro parricídio criativo, desceu do pedestal Jean-Paul Sartre:

“Com a perspectiva que dá ao tempo, alguém descobre que a obra criativa do próprio Sartre é uma reprovação sistemática do ‘compromisso’ que ele exige ao escritor de seu tempo. Nem seus contos de tema rebuscado, perverso e erótico, nem seus romances de artificiosa construção influenciada por Dos Passos, nem sequer suas obras de teatro – parábolas filosóficas e morais, pastiches ideológicos – constituem um exemplo de literatura que quer romper o círculo de leitores da burguesia e chegar a um auditório de trabalhadores, nem há nada neles que, por suas anedotas, técnicas ou símbolos, transcenda o exemplo dos escritores do passado remoto ou recente e funde o que ele chama a literatura da práxis. [“Sartre veinte años después”, dezembro de 1978]

Ao mesmo tempo, revalidou Albert Camus. Em 1965, a propósito da aparição dos Cadernos, havia sustentado que os textos de Camus valiam “não por sua significação social, histórica, metafísica ou moral, mas (e em todos os casos) por sua excepcionalidade pitoresca” (“Camus y la literatura”, janeiro de 1965). Para o Vargas Llosa dos anos sessenta, Camus havia sofrido um “envelhecimento precoce”. Dez anos depois, a propósito de um atentado terrorista registrado em Lima, voltou às páginas de O homem revoltado e declarou: “Sem engar a dimensão histórica do homem, Camus sempre susteve que uma interpretação puramente econômica, sociológica, ideológica da condição humana era curta e, sempre, perigosa” (“Albert Camus y la moral de los límites”). Vargas Llosa recordava a conferência de Camus em 1948: “E quanto o famoso otimismo marxista! Ninguém foi tão longe na desconfiança, respeito ao homem como os marxistas; por acaso as fatalidades econômicas deste universo não resultam todavia mais terríveis que os caprichos divinos?” Nesta crucial releitura, publicada na revista Plural e dedicada à Octávio Paz, Vargas Llosa reivindicou o individualismo, mostrou sua desconfiança pela interpretação mecânica do marxismo, festejou o pluralismo e, seguindo o Camus de Calígula, abominou o totalitarismo. O que lhe incomodava era o maniqueísmo que percebia em muitos intelectuais e a propensão a adotar a ideologia como uma religião, mas se sentia “num limbo”: tinha que haver uma “terceira posição” distante da direita e da esquerda, dos sabres e das utopias. Um Vargas Llosa novo parecia estar nascendo nessas páginas:

“Creio que em nossos dias, aqui na América Latina, aqui em nosso próprio país, esta é a função difícil mais imperiosa para todo aquele que, por seu próprio ofício, sabe que a liberdade é a condição primeira da existência: conservar sua independência e recordar o poder a cada instante, e por todos os meios ao seu alcance, a moral dos limites”.

Em termos estritamente políticos, Vargas Llosa havia simpatizado até certo ponto com as reformas de Velasco Alvarado no Peru (semelhante às de Lázaro Cárdenas, no México) mas não duvidou enfrentá-lo quando o regime censurou à imprensa e os meios de comunicação e prendeu a revista Caretas onde publicava.

Em Cuba ou no Peru, a liberdade de expressão era, para Vargas Llosa, a liberdade cardeal, e essa convicção absoluta (presente ainda em seus tempos de adesão à Revolução cubana) foi ampliada até à forma do liberalismo mais amplo. Em fins de 1977, dá um passo adiante: entrevista Rómulo Betancourt e reafirma o apoio ao seu governo democrático. Um ano depois, sua ruptura ideológica com o socialismo é definitiva: “Estas utopias absolutas – o cristianismo com o passado, o socialismo com o presente – derramaram tanto sangue como o queriam lavar. O ocorrido com o socialismo é, sem dúvida, um desengano que não tem precedente na história” (em “Ganar batallas, no la guerra”, conferência lida em Lima em outubro de 1978 e compilada em Sabres e utopias). Mas não é muito clara, ainda, sua adesão ao liberalismo:

“Não se trata de meter todas as ideologias no mesmo saco. Algumas delas, como o liberalismo democrático, expulsaram a liberdade e outras, como fascismo, o nazismo e o marxismo staliniano, retrocederam. Mas nenhuma basta para assinalar de modo inequívoco como erradicar de maneira durável a injustiça, que acompanha o ser humano como sua sombra desde o despontar da história”.

A conversão em liberal

Faltava um passo para tornar-se liberal. Quando o deu? Muitos anos atrás, a reaparição do pai o havia lançado subitamente ao inferno da tirania. Toda sua vida havia sido remar contra essa corrente. Em 1979, aos 42 anos de idade, outro feito relacionado com o pai o precipitaria a uma revisão definitiva de seus valores. As agressões de seu pai haviam cessado tempo atrás “e, embora procurei sempre mostrar-se educado como ele, jamais demonstrei mais carinho do que tinha (isto é, nenhum). O terrível rancor, o ódio petrificado de minha meninice com ele, foram desaparecendo ao longo dos anos”. Mas o distanciamento se sustentou até o final, até janeiro de 1979, quando morreu o único tirano a quem havia querido bem. “Meu pai, estava almoçando em sua casa, havia perdido o conhecimento. Chamamos uma ambulância e o levamos à Clínica Americana, onde chegou sem vida” (Peixe na água).

Poucos meses  depois, Vargas Llosa assiste em Lima um simpósio internacional organizado por Hernando de Soto em que escuta economistas e pensadores como Friedrich Hayeck, Milton Friedman e Jean-François Revel (cuja obra A tentação totalitária o impressionou). Para então havia lido os ensaios filosóficos e históricos  de Isaiah Berlin sobre “dois conceitos de liberdade” e os famosos perfis de socialistas libertários como Alexander Herzen em Against the current. Com o tempo leria Karl Popper, outro grande clássico do pensamento liberal, em particular A sociedade aberta e seus inimigos. Outro fator importante foi sua amizade com Octávio paz e o seguimento pontual da defesa do liberalismo democrático tanto na obra do escritor mexicano como na como na revista Vuelta, onde colaborava com frequência. Mas diferentemente de Paz – outro convertido do socialismo pela democracia liberal – sua crítica ao socialismo real não só foi de ordem estética, ideológica e política como também econômica. Para abordá-la necessitava de uma emenda intelectual e uma aprendizagem:

“A fascinação dos intelectuais com o entusiasmo deriva tanto de sua vocação de posse [...] como de sua incultura econômica. Desde então tratei, ainda de maneira indisciplinada, corrigir minha ignorância nesse domínio. Em 1980, a raiz de um fellowship de um ano no The Wilson Center, em Washington, o fiz com melhor ordem e com interesse crescente”.

Era o limiar dos anos oitenta. Havia vivido e superado sua Kronstadt, mas não permaneceu no limbo, vazio de crenças. Encontrou uma fé sem grandes promessas nem voos utópicos, um método de convivência: o liberalismo democrático. Esse encontro foi um despertar: abriu-lhe horizontes, deu-lhe uma nova e peculiar claridade sobre o caráter opressivo dos diversos fanatismos da identidade (nacional, indígena, hispânica, religiosa, ideológica, política) que fizeram o século XX e que, com a cumplicidade dos demagogos e o apoio de muitos governos, hão sacrificado povos e indivíduos.

Liberal empedernido, Llosa recebe o Prêmio Nobel de Literatura. Sua obra nunca mais foi a mesma.


A rebeldia perpétua

A liberação potenciou sua obra, que a partir de então adquiriu uma nova dimensão: passou da esfera predominantemente íntima à universal. Mas o empenho central foi sempre “exorcizar” aqueles fantasmas que haviam sido também seus e que impediram o progresso material e moral de seu país e da América Latina. Esse impulso vital de liberdade frente aos fanatismos deu alento tolstoiano a essa inicial profecia do fundamentalismo moderno que é A guerra do fim do mundo, obra-mestra que não só critica o fanatismo dos milenaristas brasileiros mas a insensata resposta da República. Esse impulso inspirou também a caracterização trágica (e patética) do redenção guerrilheira em História de Mayta cujo protagonista é – como havia sido Vargas Llosa – um aluno lasallista e cujo tema é a guerrilha de corte castrista-guevarista. Sua radiografia da guerrilha continuou em Lituma nos Andes, onde adentra no mundo brutal de Sendero Luminoso. O mesmo impulso presidiu, enfim, a rigorosa crítica histórica e antropológica do indigenismo em A utopia arcaica.

Por um momento, a conjuntura histórica o distraiu com a tentação de chegar à presidência para enfrentar os males atávicos de seu país. Não triunfou por várias razões, entre outros, pelo ódio acumulado dos fantasmas coletivos que teve de experimentar de maneira descarnada. Com sua derrota,  o Peru perdeu um possível presidente, mas o idioma espanhol e a literatura recobraram um grande romancista. Depois de saldar contas com sua própria vida (em muitos sentidos, vida de romance) em Peixe na água, seguiram várias obras libertadoras: romances cômicos, amorosos e malévolos; romances evocadores de pintores excêntricos e mulheres utopias; obras de teatro; estudos pontuais sobre seus clássicos literários (Os miseráveis, Juan Carlos Onetti) e, desde então, A festa do bode, romance supremo do ditador latino-americano. “Se há algo que eu odeio – disse Vargas Llosa –, algo que me repugna profundamente, que me indigna, é a ditadura. Não é somente uma convicção política, um princípio moral: é um movimento das entranhas, uma atitude visceral, talvez porque padeci muitas ditaduras em meu próprio país, talvez porque desde pequeno vivi em carne própria essa autoridade que se impõe com brutalidade”. Seu livro cumpriu com o exorcismo maior: não há melhor reivindicação literária da liberdade no seu idioma. Plena não só de indignação moral, contida e lúcida, contra as infinitas possibilidades, personificações e aberrações do mal, o romance é um modelo de elegância formal. Em cada página o leitor encontra detalhes psicológicos – aterradores, convincentes – que o comovem e permanecem para sempre em sua memória.

A rebeldia liberal, por sua própria natureza, não se sacia. Está em seus olhares sobre o mundo atual, nos ensaios que brincam de um tema a outro, de um país a outro, e o levam a embarcar-se em polêmicas, a defender causas impopulares, a visitar lugares escusos da terra. Esse compromisso intelectual – paradoxalmente sartriano, no sentido que Sartre vislumbrou e não praticou – o levou a presidir uma Fundação Internacional para a Liberdade que respondeu grandes batalhas pela democracia latino-americana.

Em 2010, Vargas Llosa ganhou o Prêmio Nobel de Literatura. Na esfera pública sua opção pela liberdade não deixará outro caminho que seguir batendo contra o que considera injusto, opressivo e ditatorial. Na esfera íntima, além da admiração de milhões de leitores, está a lealdade pelos amigos e pela família que construiu com Patricia Llosa. O filho de Ernesto Vargas e Dorita Llosa reverteu a história e reescreveu. E ao fazer isso, reconstruiu os anos do Éden. Mas agora o pai não é o fantasma nem o atormentam ódios petrificados. É como o avô Pedro, uma boa árvore debaixo da qual crescem filhos e netos. É hora talvez em que feliz.

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