História do novo sobrenome, de Elena Ferrante


Por Pedro Fernandes



Há pelo menos duas linhas através das quais é possível construir uma leitura para o segundo volume da série napolitana – uma sequência de romances da italiana Elena Ferrante que se constrói em torno do desenvolvimento de uma figura alter ego, digamos assim, da escritora e sua amiga. Enquanto no primeiro volume, o leitor encontra o período que vai da difícil infância ao casamento de Lila, aqui, sabemos sobre a nova vida dela, como a Sra. Carracci, as desavenças com um companheiro do qual se arrepende haver se casado ainda na noite de núpcias e dos desencontros e subida nos estudos de Lenu depois de ganhar uma bolsa de estudos na Universidade de Pisa.

Uma das linhas é a sobre a corrosão das relações pessoais pelo capital, se percebemos o motivo do casamento de Lila, as extensas preocupações do companheiro na estreita briga pelo território comercial com os Solara e o progressivo afastamento da amizade entre Lila e Lenu e a maneira como aquela passa a tratar essa, sobretudo no período quando larga o emprego na livraria Mezzocannone para acompanhá-la na extensa passagem das férias em Ischia, ou ainda a maneira como Stefano trata seu casamento quando a companheira, depois de grávida de uma relação fora do casamento, decide não mais contribuir diretamente com os negócios da família que tanto foi seu interesse erguer e fazê-lo lucrar, da charcutaria no bairro à loja de sapatos na Piazza dei Martiri.

A outra é a construção realizada pela narrativa de um vasto panorama sobre a violência doméstica e luta das mulheres pela emancipação e uma posição diferente da condição a que estiveram submetidas desde sempre e cujas marcas aparecem de maneira recorrente – mas não com a mesma força – já em A amiga genial. Trata-se de um desvelamento sobre a cultura machista e a extensa chaga que esta representa nas relações sociais mais simples em todas as classes; notem que, o cenário dos dois primeiros romances está situado na interrelação entre os mais simples e aqueles que ascenderam seja de que maneira tenham se utilizado. Onde se percebe um atenuante, o que não significa uma ausência dessa cultura falocêntrica, é tão somente entre aqueles dotados de uma cultura letrada, tal como entre os da família da professora Galiani ou os da família de Pietro Airota, rapaz que Lenu conhece na sua estadia em Pisa. 

Essa constante, além de assumir uma condição quase histórica, porque pertence àquele momento maior em que em grande parte das sociedades ocidentais vivíamos esse realinhamento das relações entre homem e mulher, é também um documento denunciativo porque reanima uma compreensão que começa a cair em desuso, quando ainda há muito o que se fazer a fim de se concretizar essa posição igualitária entre gêneros. Isto é, a crença de que a violência contra as mulheres não está mais na pauta do dia, sobretudo nos países em que elas denunciaram, de maneira diversa, os motivos pelos quais eram a toda maneira subjugadas – o que não verdade. É significativa a observação de Lenu, a certa altura do romance, sobre o quanto as mulheres são tornadas criaturas desfiguradas, obedientes a uma rotina que varia entre serem mães e donas de casa. 

Nesse sentido, História do novo sobrenome é quase pessimista ao constatar que, embora as relações tenham e passem por readequações, às mulheres ainda lhes cabem a parte mais tortuosa e difícil, visto que em parte, marcada pela força cultural que lhe repete inconscientemente ser a parte mais frágil nas relações, muitas vezes é do consentimento delas a condição de se submeterem aos domínios do homem. Caso que se verifica com a amiga: embora seja a mulher casada que se diferencia de grande parte das mulheres de seu bairro, pela elegância, pela liberdade de ir e vir com os amigos do tempo de solteira, pelo trabalho e o comportamento reiteradas vezes considerado vulgar pelos que lhe rodeiam, ainda é a que é violentada sexual, física e psicologicamente porque, ao se vê parte menor na relação, acostuma-se ao servilismo. 

É lógico que essa é uma afirmativa simplista e nem é apenas por esse ângulo que as situações se confirmam no romance – seja porque, em grande parte, Lenu ensaia uma saída da condição em que vive, seja porque rompe de maneira diversa a situação de pertença ao homem. Agora, antes de ganhar tônus a ideia de consentimento da submissão, o que o romance denuncia é o vigor com que se perpetua um modelo de opressão gerido pelo homem que favorece a não-saída da mulher da condição a qual foi relegada. Aqui, é válido citar a paixão descabida de um dos irmãos Solara por Lila e a proposta que é feita a ela para se livrar de Stefano; uma espécie de pacto que troca um problema por outro e tem na figura da mulher sempre a condição da submissa ao homem.

Ao tocar na compreensão de que o modelo cultural repete inconscientemente os papéis aos quais pertencem os sujeitos na sociedade, não haveremos de esquecer no sentimento de culpa que toda hora assombra Lenu quando esta se coloca em projeção à vida da amiga: a necessidade de demonstrar para si que não é menos mulher que ela ao se deixar permitir ao sexo gratuito com o namorado Antonio ou a preocupação de se ver reduzida ao lugar da professora Oliviero, mestra das duas meninas durante a infância e sempre descrita como mulher solteira, sem filhos, carrasca e rabugenta ou ainda o preenchimento das vidas com as idas e vindas do imbróglio amoroso, cujo o polo feminino, sempre coube a maior cobrança desde as relações que assume ou deixa de assumir com o homem ou a culpa pelo casamento estéril, como se percebe o de Lila e Stefano. Notável ainda é a maneira como as mulheres, as mesmas que lutam por um lugar ao sol, veem os homens que são desprovidos da atitude de dominadores ou então descritos com sensíveis ante a realidade, tal como Enzo. Isto é, todas as infiltrações danosas da cultura machista são recuperadas neste romance.

É evidente que Elena Ferrante compõem esse vasto painel como uma maneira de expor os diversos meandros de uma Itália que em muito se parece com a já descrita por outros nomes da literatura daquele país, sobretudo a de escritores com forte interesse no traço histórico social de seu povo. Mas, porque as situações descritas tocam em planos universais, o que prevalece é uma espécie de alegoria sobre a conturbada relação entre homens e mulheres desde sempre, seja pela crítica espontânea que faz sobre a maneira como o amor romântico se mostra uma farsa que corrobora com os valores da opressão, seja pela maneira como expõe o capital como um dos sistemas que melhor dão sustentação aos tais modelos. É, este romance, logo, a constatação de um modelo baseado no conservadorismo, no domínio gratuito, na segregação e interessado em coibir a diferença.

Esse sentido está presente desde o título. História do novo sobrenome se refere ao sobrenome adquirido por Lila, uma vez que se confirma que essa não é uma obra cujo núcleo é a narradora, mas a amiga. Há certa altura do romance, o leitor cairá nas reflexões de Lenu sobre o sobrenome da amiga e como em criança as duas se aventuravam em tecer combinações do seu nome com os dos possíveis companheiros e em como os desses sobrepõem-se na assinatura, no tratamento da mulher, a que perde sua identidade para o lugar do sobrenome do homem, e o reflexo dessa prática no curso da própria memória familiar – num futuro, as crianças já não mais teriam ciência de quem, de fato, foram suas avós e bisavós simplesmente porque não conhecem seus verdadeiros nomes.

Ante a diversidade de subterfúgios criados pelos homens no processo de extensa opressão para com as mulheres História do novo sobrenome acompanha as diferentes frentes nas quais elas buscam autoafirmação nesse modelo social: seja a força e dedicação que Lenu tem para com os estudos – o que a todo tempo ela questiona sobre sua serventia, principalmente quando volta às suas origens e vê que pouca coisa mudou e ela é totalmente impotente para ser autora de uma transformação profunda da realidade – seja a resistência de Lila numa relação de pura violência com Stefano, resistência que se confirma na reapropriação que narrativa faz do mito literário da Madame Bovary (sem o efeito trágico do final) e na força de não constituir de nenhuma maneira com Stefano uma gravidez e a perpetuação de seu sobrenome.

Ao compor a parte mais interessante na vida de todo indivíduo, a das experimentações amorosas, Ferrante não se fecha naquilo que tradicionalmente os romances sempre pintaram: o drama amoroso é tão somente fruto de um conflito entre a cabeça idealista do jovem e a realidade da qual faz parte. Não – o drama amoroso se confunde com uma estranha tragédia a qual a humanidade tem experimentado com variação diversa, mas nunca encontrado aquela linha horizontal da felicidade almejada. Não é puro idealismo; é um dilema entre o que o jovem sonha ser e o que não alcança.

A variação da voz narrativa – entre a primeira e a terceira pessoa construindo, por vezes, o que é preferível compreender como uma falsa onisciência, uma vez que as situações narradas de maneira externa às vivências interiores sempre são mostradas com certa propriedade ou aquelas que dizem respeito a amiga de Lenu se confundem com certos posicionamentos da própria narradora – é a grande estratégia de Ferrante nesse romance. Seu desafio é sustentar a minúcia do narrado numa situação em que os universos das duas protagonistas ganham contornos diferentes e se passam agora em situações muito distintas; apropria-se para tanto da velha estratégia da narrativa clássica, a do ouvi-dizer-por-terceiros e a do manuscrito como alternativa de não perder de vista o elo entre as duas personagens; é de um extenso diário entregue por Lila a Lenu que se compõem grande parte da narrativa, num misto de narração por dupla voz e reescritura, uma vez que num dos acessos de sentimentos contraditórios em relação ao que lê, destrói os registros da amiga – ação que cumpre um duplo sentido para o romance, o de sobreposição da escrita da narradora à escrita de Lila, sempre descrita desde A amiga genial, como a mais autêntica e melhor acabada e definitiva fusão entre as duas personagens, faces em diálogo.

Não será exagero repetir aqui uma constatação construída na leitura de A amiga genial: a beleza como Elena Ferrante trabalha a linguagem no intuito de produzir no leitor toda a sorte de sensações que busca produzir com as situações marcadas por sentimentos tão diversos – o amor, a inveja, a violência, o opróbrio, o desprezo, a angústia, o ódio, ora a força como mostra seca e contundente as relações, ora a sutileza poética com que descreve espaço e tempo. Tudo trabalha para uma harmonia cujo resultado é a pintura de um universo complexo e delicado porque é erguido com a força mais natural possível daquilo que nos constitui enquanto sujeitos. Sempre atenta aos protocolos clássicos da narração ora próxima ora distante dos acontecimentos, a medida certa encontrada pela escritora para acompanhar o passo a passo dessas duas garotas, agora mulheres, numa sociedade ora marcada por amplas modificações ora ainda presa aos arcaicos sistemas de organização, Elena Ferrante reafirma porque tem arrebatado leitores de diversas partes do mundo e sempre nos deixa à espera das próximas situações que trará para colorir essa história.

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