O olhar diferente de Herta Müller

Por Claudia Kalász



Estes dois livros são aqueles que consagraram Herta Müller como uma das mais poderosas escritoras da jovem literatura romena em língua alemã. Desde que a autora, em 1987, se refugiou na Alemanha como dissidente do regime de Nicolau Ceaucescu, o mapa político da Europa mudou radicalmente. Os dois livros são um privilégio para os leitores porque os levam a conhecer alguns relatos inscritos na atmosfera anódina de uma ditadura que, ainda bem, já não existe; são textos que podem refrescar nossa memória, mas pode também manifestar – desde longe – as técnicas de intensificação das quais dispõem esta autora para converter experiências pessoais em literatura, isto é, em experiências que nunca se tornam ultrapassadas. Toda a maestria de sua linguagem densa e precisa se encontra já nessas primeiras criações de uma obra coerente que ao longo dos anos foi ampliando-se, a um ritmo pausado mas constante, com romances, ensaios e poemas, premiados com múltiplos prêmios.

Herta Müller se manteve fiel à sua particular maneira de escrever acerca da Romênia durante e depois da ditadura e sobre os dois conflitos mais recentes nos Bálcãs, assim como certas idiossincrasias alemães e ocidentais em geral. Esta constante não foi apreciada totalmente pela crítica alemã que, depois de aclamar inicialmente a dissidente, mais adiante não a perdoaria sua falta de adaptação a argumentos mais centrados em seu país de acolhida. De modo que, Herta Müller se converteu numa das maiores escritoras alemãs sem repercussão midiática. Não se deixar reger pelos modismos literários confere ainda mais mérito a essas duas obras.

De uma maneira mais ou menos direta, repetimos, todos os livros da escritora se baseiam em experiências próprias da autora, tanto os quinze textos enfeixados pelo título Depressões como o relato O homem é um grande faisão no mundo (na verdade, um longo poema em prosa) se desenvolvem na comunidade de minoria suábia de Banat (região histórica cuja maior parte se situa agora no oeste da Romênia), muito parecida com o povoado natal de Herta Müller. Aí se guardam zelosamente os tradicionais valores conservadores com a língua alemã. Banat constitui, ao lado de Siebenbürgen (berço de Rose Ausländer e Oskar Pastior) e de Czernowitz, região de Bucovina (origem de Paul Celan), uma das ilhas da cultura alemã na Romênia. Os alemães destas regiões não foram expulsos do país como ocorreu, por exemplo, na Polônia, embora não estiveram livres de passar por graves discriminações culturais e econômicas, a causa da miséria rural que impregna as narrativas.



Porém, longe de querer defender a endogamia cultural, Depressões descobre outra miséria: a das necessidades humanas de uma família presa nas convenções religiosas, nas superstições e no ódio. Vistas através do olhar não corrompido de uma menina solitária e infeliz, as atitudes dos adultos aparecem em toda sua robustez, falsidade, ignorância e crueldade. Sobretudo o sexo e a morte, tabus onipresentes, assediam a imaginação infantil. Carente de explicações, a menina atribui a partir de sua angústia uma dimensão fantástica, de pesadelo sem acordar: 

“Eu tinha areia na calcinha. Ela me escoriava ao andar e era a mesma dor da morte dos mariscos. Entrei na água até a barriga. Coloquei minha mão sob o elástico da calcinha e lavei a areia que estava entre minhas pernas. Fiquei com a impressão de estar fazendo algo proibido, mas ninguém estava me vendo. Vovô olhava para sua areia, que caía ininterruptamente na margem. Deus está em toda parte. Recordei-me desta frase que eu sempre ouvia nas aulas de religião. Eu procurava Deus em árvores e o encontrava então, com sua grande barba branca, bem no alto sobre as folhas, bem no alto do verão”.

Em termos autobiográficos, esta desapiedada crônica de um povo, de uma família e de uma infância traumática depois da Segunda Guerra Mundial, que foi publicada na Romênia em 1982, representa um ajuste de contas da autora com seu pai nacionalista e com todo um país, como ilustram suas palavras: “Fui humilhada por meu pai alemão e outra vez humilhada e enganada pelo silêncio da história romena”. Num romance posterior, Herta Müller estabelece um certo paralelismo entre o microcosmo rural, sua intolerância, seus mecanismos de controle e o Estado totalitário: “Numa ditadura não pode haver cidades, pois tudo é pequeno quando se encontra sob vigilância”.



O homem é um grande faisão no mundo trata da dificuldade de escapar da dita província em seu duplo sentido. Enquanto o faisão em alemão encarna o conceito de fanfarrão, nesta frase romena significa o perdedor. O título ilustra como a autora enriquece seu idioma materno, o alemão, com a expressividade metafórica do romeno, criando assim uma linguagem muito própria que quebra o inócuo convencionalismo das palavras. Este livro foi publicado diretamente na Alemanha em 1986, devido às represálias que Herta Müller havia sofrido quando se negou a colaborar com o serviço secreto do seu país.

Compartilhou a perseguição política com um importante grupo de escritores de Banat (Banater Autorengruppe), formado em finais dos anos 1960, no quanto a autoria havia acabado de entrar em 1976. Inicialmente protegido pela nova Constituição de Ceaucescu, que pretendia garantir os direitos das minorias, o grupo foi distanciando-se do regime até que em 1987, quase todos os membros buscaram asilo político na Alemanha.

Herta Müller escreveu a história do peleiro Windisch e sua família, que, mesmo com o visto de emigração para a Alemanha, vive à espera do que poderá suceder fora de seu lugar, enquanto ela própria esperava a permissão de saída do seu país. Capítulo por capítulo, observa como ao redor se torna estranho sob o olhar da despedida e como, sob a repressão e a humilhação, a chantagem, a paisagem comum vai perdendo-se na mesma proporção que a propriedade e a integridade moral. “Desde que se propôs emigrar [Windisch] vê o fim em todos os lugares do povoado”.

Aqui, o olhar diferente pertence ao homem reprimido, para o qual as coisas e pessoas que o rodeiam perdem sua familiaridade. “Diferente não significa para mim o contrário do conhecido, mas o contrário de familiar. Coisas diferentes não têm que ser estranhas; coisas conhecidas, ao contrário, podem se tornar estranhas”, explica Herta Müller num de seus ensaios, defendendo que o olhar diferente não está relacionado à percepção do imigrante num país estrangeiro, mas a qualquer situação alterada e que se produz fora da criação artística. Sem dúvidas, a arte tem que encontrar a maneira de expressá-la e consegue; no caso da prosa poética de Herta Müller, mediante a fusão de laconismo, lirismo, imaginação surreal e realismo radical.

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