Julieta, de Pedro Almodóvar



Em Julieta, ultra-sedutor opus 20 do diverso cineasta Pedro Almodóvar (depois de seus muito questionáveis filmes A pele que habito e Abraços partidos), com roteiro seu baseado em três contos do livro Fugitiva (“Daqui a pouco”, Silêncio” e “Ocasião”) da hipersensível Prêmio Nobel canadense Alice Munro, a bela filóloga a ponto de uma viagem romântica a Portugal Julieta Arcos encontra por acaso numa rua madrilenha com Bea, a ex-melhor amiga de sua filha desaparecida Antía que lhe dá notícias de está muito bem radicada na Suíça. 

Visceralmente, algo solta-se no interior da tranquila senhora que rompe com o garboso noivo argentino Lorenzo, amor que havia herdado da escultora e outrora rival Ava, muda-se para sua antiga morada e começa a escrever uma carta-desabafo-catarse, impossível de enviar por desconhecer a direção do destinatário, a sua filha, para resolver seus antigos mistérios dolorosos e assumir-se ela própria como um deles. 

É quando reaparece em bela jovem e, sempre impulsionada, sem saber, por seus sentimentos de culpa; depois de duramente desatender a necessidade de comunicação de um velho suicida no vagão de trem, conhecer o pescador Xoan Feijóo, a quem emocionalmente (enciumada depois de saber que transava com sua encantadora amiga escultora Ava) levou-o a se expor numa tempestade violenta em que perdeu a vida, arremessando-se toda sua consequente depressão sobre a pequena filha, até que esta ao completar 18 anos partiu em retiro espiritual para nunca mais voltar, sem deixar rastro.

O mistério doloroso mostra um Almodóvar contido que, por sua vez, deixa de dar suas autoindulgentes inclinações irrealistas, para regressar às suas velhas e boas épocas barrocamente sentimentais com comédias pós-modernas e melodramas sublimes de mulheres, que vão de Mulheres à beira de um ataque de nervos a Carne trêmula, com base no também saudoso tema da queda e, por conseguinte, da compaixão no sofrimento, só então interrompidas por alguns contadíssimos eflúvios de alegria em geral bastante vigorosos como os bolos de aniversário jogados ano após ano no lixo, como num rolling gag ácido.

O mistério doloroso se articula sobre uma grande supressão de acontecimentos fundamentais, uma gigantesca elipse onde se dão os mais importantes momentos da narrativa; uma elipse como as que ocorriam no centro de De salto alto e decompunha perversamente a figura do enfermeiro estuprador em Fale com ela; uma elipse muito significativa que se esvanece e dá voltas ao redor dela mesma; uma elipse que se mostra de maneira fulgurante (como de costume na eternidade de Almodóvar e mais além) na formidável sequência do banho e enxuga da depressiva Julieta por sua filha e amiga Bea para que Julieta-Ugarte pare de ser a encantadora jovem desmoronada por dentro para emergir de súbito numa lamentável Julieta-Suárez pateticamente envelhecida; e uma elipse, por fim, com o lúcido dom glorioso de transformar as relações amor-ódio com a egrégia mãe asfixiante de Tudo sobre minha mãe e com o insistente espectro materno de Volver numa aberta e definitiva relação ódio-ódio com a figura edipiana crucial: o monstro depressivo que ainda hoje ignora a si mesmo e o imbatível rol nefando jogado na afetividade de uma menina indefesa também lidando contra a morte paterna desde esse maravilhoso plano da revelação funeral entre os íntimos perfis de duas mulheres que jamais chegam tocar-se.  

O mistério doloroso se expressa mediante uma habitual plasticidade decidida a provocar de imediato o impacto que quer causar – criação certamente da direção de arte de Antxón Gómez e zelada pela equilibrada fotografia de Jean-Claude Larrieu, com base em monocromias audaciosas, que são campo para enquadramentos muito bem valorizados pela edição de José Salcedo e a onírica música de Alberto Iglesias, mais uma sentimental ação de graças por não deixar muitos espectadores do velho cinema envelhecer sozinho. Julieta faz-se de uma poderosa representação da arquifragilidade humana, as relações medidas pela carne como bem se mostram representadas numa simbólica série de estátuas sentadas sobre enorme falos; é um filme sobre o imenso mar de perda da esperança que corresponde ao aventureiro ponto grego cujo significado majestoso é explicar Julieta em sua única posição; um reverendo gosto pela desgraça de soap opera alimentada por uma obsedante canção perdida da nonagenária Chavela Vargas.  

E o mistério doloroso se consuma como tal depois de assumir-se como o martírio de Santa Julieta, aquela laica e sacrificial moça expiatória que parte com seu antigo amante até as idílicas imediações do Lago Como onde sua filha (enfim!) também se perde de igual maneira, pois não é por sorte que em épocas passadas a jovem fugitiva Antía havia decidido fugir da funesta égide materna a fim de um retiro espiritual numa muito tranquila Montanha Mágica onde obteve a revelação de uma Fé que jamais havia dado sua progenitora, e não por sorte tampouco que a moça se faça truculenta e telenovelamente inteira de A flor do meu segredo por meio da horrenda criada desconfiada e maldita Marian que invocava sem escrúpulos em seu interior e exterior os ranços valores do medievo franquista chamado a Espanha Eterna; para Almodóvar signos de uma sagrada ignomínia transferidos a passivas criaturas abjetas cujas feminilidade invejavam.


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