O poeta abjecto insuperável

Por Jesus Aguado 



Tantos anos depois de sua morte em Marselha devido uma gangrena continuamos a acreditar que Arthur Rimbaud existiu. Uma hipnose que dura longo tempo e converteu esse leproso das letras e esse mestre em fantasmagorias numa referência inquestionável da literatura universal. Não há poeta que não deixe de se medir com o padrão-ouro fixado por seus versos e com o padrão-vertigem fixados pela sua existência. Uma obra e uma biografia alucinadas que, todavia, conspiram contra os que, sentindo-se obrigados a colocar a Beleza em seus trilhos não se atrevem a estrangulá-la por medo qualquer dos infernos que os conduzem à desordem de todos os sentidos ou, se atrever-se,  logo em seguida pedem perdão e acabam chorando em seus braços maternais.

Ao lado de Rimbaud todos continuamos sendo elegantes parnasianos de coração sensível que, em maior ou menor grau, confiamos nas aparências do mundo e em suas inércias epistemológicas e hermenêuticas. Inclusive nossos malditos oficiais (um Allen Ginsberg, por exemplo) parecem, comparados com ele, meninos travessos escondidos no fundo de um armário (ou de um arquivo universitário) que meninos terríveis dispostos a invocar o nada cometendo crimes, selvagerias, repugnâncias e crueldades. É possível, pensando bem, que, na superfície desses tenha existido algo do estudante ou do vilão de Rimbaud e algo genuíno e essencial de Rimbaud em Paul Celan, que também lutou sem quartel com a linguagem e com a vida e fez do Sena seu Harar e mais um pouco.

Arthur Rimbaud, de fato, se parece mais com alguns santos que com os poetas. Como Sisöes, que se entregou, no Egito do século IV, à “santa abjecção” para ser depreciado por todos, ou Ikkyū, fundador do zen vermelho (vermelho da paixão) que, no Japão do século XIV, cometia toda sorte de loucuras porque, segundo ele, era fácil entrar no reino dos budas mas muito difícil entrar no mundo dos demônios.

O adolescente de Charleville, dessa estirpe embora não tenha ouvido falar deles, envenenou seu corpo para envenenar seu ser social e retorceu sua alma até retirar dela suas últimas gotas de beatnismo provinciano com gritos de blasfêmia e maldições. Um atleta do abismo que não se conformou em juntar-se a ele, mas que quis roubar suas imagens, suas visões, sua queda, seu eco e, no fim de tudo, quando se exilou de si mesmo e de sua terra indo a Abissínia, seu silêncio. E um morto-vivo, que é o que define os ascetas extremos de todas as tradições, que esmigalha seu eu (“Eu é um outro” que se tornou uma das frases mais citadas e analisadas) como pão velho que se lança aos pombos.   

Numa ocasião, Rimbaud se lamentou de haver perdido sua vida por delicadeza. Quase a perdeu de verdade quando Verlaine, seu amante, seu mantenedor e seu introdutor na cena literária parisiense, lhe atirou, no célebre episódio de Bruxelas, ferindo seu antebraço. Era o “tempo dos assassinos” e havia que escrever com uma pistola na mão enquanto apurava “um licor avaliado da fábrica de Satã”. O cansaço, a miséria, a sujidade, a pobreza, a maldade ou a idiotice, produtores de indelicadezas à solta, o fizeram inassimilável numa sociedade pacata e triste como era a burguesa inclusive em suas revoluções. Nem mesmo Verlaine, igualmente violento e pusilânime, muito impactado pelo raio que havia partido sua cabeça, compreendeu bem a Rimbaud. E se ele não conseguiu tampouco conseguiram os que vieram depois dele – Paul Claudel ou André Breton, Henry Miller ou Pierre Michon, Enid Starkie ou Edmund White, Yves Bonnefoy ou Alain Borer.

Muito delicados todos os que se aproximaram da personagem, visto que as feridas se acobertam antes de apresentar-se ao público para que não manchem nem incomodem quando isso precisamente, manchar e incomodar até a náusea, foi o que sempre pretendia Rimbaud em sua cruzada contra os bem-pensantes e os muito educados. Esplêndidos textos todos eles escreveram e até mais, mas por delicadeza perderam a vida e a poesia de Rimbaud, por respeito, por falta de valor, por medo do contágio que poderiam ter sofrido nas suas vidas e obra.

Por isso há que se conhecer Rimbaud sem intermediários e prejuízos. E por isso impressiona ver tanta intensidade junta pela primeira vez em nossa língua. Mais de mil páginas dão corpo a quem extenuou o seu em estábulos, estradas, tavernas e desertos. Seus poemas, cartas, exercícios de prosa compõe um rico e trabalho único publicado no Brasil na década passada. Organizado pelo também poeta Ivo Barroso em três volumes: Prosa poética, Poesia completa e Correspondência. Um grande trabalho dedicado a quem se orgulhou, ao menos na sua primeira fase, de não ter precisado de trabalhar nunca, de não querer trabalhar jamais e viver ocioso como um bicho.

Toda sua obra foi realizada rapidamente interessada em galgar um lugar todo seu que acabou por encontrar fora da tranquilidade de muitos que habitaram a história; que, ao contrário de seus antecessores, desistiu em tempo de fundar uma religião definitiva, uma seita ou uma poética obrigatória. O que deixou, este poeta não-vocacionado (viver foi a única vocação a qual sempre foi fiel, o único amor que nunca provocou desassossegos, a mãe severa que o acompanhou sem lhe censurar nas boas e más lutas, o pai que não se ausentou um dia para sempre) foi uma régua de medir poemas e poetas que alcança mais de 150 anos sem quebrar-se por mais pancadas que tenham descarregado nela muitos aspirantes.

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* Esta é uma tradução livre para "El abjecto insuperable", publicado em El País. 

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