Seul suja

Por Pablo Augusto-Silva



Se tivéssemos como missão selecionar um trecho que resumisse o espírito do romance da coreana Bae Su-ah (1965-), Sukiyaki de Domingo (tradução Hyo-jeong Sung, Estação Liberdade, 2014), seria este diálogo entre uma exótica modelo de pelos púbicos e um jornalista:

“Daqui a dez anos? – repetiu a mulher a pergunta, como se tivesse sido pega de surpresa e logo ficou pensativa. – Acho que não estarei fazendo nada. Provavelmente não serei mais modelo de pelos púbicos daqui a dez anos. Eu não gosto de viajar e nem me dou bem com as pessoas. Realmente não sei o que será de mim daqui a dez anos. Não consigo pensar em nada concreto, questionada assim, de modo tão repentino. Mas sei que não quero ficar com a pele flácida. Pelo menos isso é certeza. Fora isso, nunca pensei no assunto.
– Não consigo te imaginar com a pele flácida daqui a dez anos.
– Ah, pode acontecer. Vou estar com mais de 30 – insistiu a mulher.
– Eu conheço várias mulheres com mais de 30 anos e nenhuma delas aparenta a idade que tem. Por isso, não há por que se preocupar.
– Eu só me comparo comigo mesma – devolveu a mulher com rispidez, acendendo outro cigarro, o que denotava não ter gostado da observação. – mas isso não vem ao caso. Eu posso não estar viva até lá.” (p.131-32).

O trecho capta a situação psíquica e social de todo o (ou falta de) enredo: quase todas as personagens estão imersas no presente sem nenhuma perspectiva quanto ao futuro. Exceções são Doo-yeon Baik, um intelectual tagarela, de caráter duvidoso, que tenta seduzir a ex-mulher de um ex-professor universitário, Ma, seu antigo amigo dos tempos de universidade, e tirar dinheiro de um tio frustrado que mal teve contato durante a vida; e Hye-jeon Park, dona de casa de classe média, ex-mulher do antigo amigo, cuja única preocupação é manter seu padrão de vida: os filhos na escola particular e uma babá, de origem pobre, porém com nível superior. Entretanto, a preocupação destes com o futuro é enganosa, deve-se sobretudo à manutenção do status, originada no medo exagerado de parcelas da classe média em decair na escala social, como aconteceu com o ex-professor Ma, o único personagem sem um prenome (decadência? Perda da identidade?); medo descomedido de se misturarem e de serem confundidas com os pobres, a maioria das personagens que vão aparecendo ao longo do romance.

Algumas das personagens, mais de dezessete, são peculiares: vemos a nova esposa do decaído ex-professor, Kyung-sook Don, com quem se casara por interesse financeiro, mas que, alfim, vê-se ludibriada por ele se recusar a trabalhar. Seu filho de 21 anos, Sae-won, fruto de outro relacionamento, um jovem consciente da própria beleza cuja única preocupação é visitar a mãe para tirar-lhe dinheiro e se divertir com a “namorada”, Hye-run Bu, uma garota belíssima que “com uns vinte quilos a menos, nenhum homem do mundo seria capaz de dizer não para uma beldade daquela. Mas, infelizmente, ela pesava mais de setenta quilos e não parava de engordar" (p. 44), uma garota sem estudos nem qualificação profissional com tendências depressivas porque tem “medo de uma velhice miserável” (p. 110).

A relação psíquica de Hye-run Bu com a mãe, a costureira Hyun-jeong Pyo, sovina e dominadora que sobrepuja emocionalmente a filha para explorá-la comercialmente é retratada de maneira notável. Uma mulher que impede a filha de sonhar mais alto não apenas devido ao medo de que a vida a machuque, sentimento comum e compreensível, senão porquanto ser ela obcecada por dinheiro. Jamais pretenderia desfazer-se de suas pequenas economias, especialmente com uma “mulher fácil” como ela enxergava a própria filha, pois para as “mulheres fáceis” juntar dinheiro é muito mais fácil do que mantê-lo, segundo a Weltanschauung desta mãe. Ela esconde o dinheiro dentro de meias sujas e os enfia no colchão, no buraco da pia, numa panela, numa velha mala com cadeado... Como todo sovina, odeia gastar; tampouco passa por sua cabeça usar o dinheiro como um empreendedor usaria, ambicionando ganhos futuros. Hyun-jeong Pyo ama o dinheiro em si mesmo, para ela “o dinheiro era a representação do poder. Era como se o monte de notas recompensasse tudo aquilo que tinha sido impossível na vida dela. Não era à toa que ela morava no térreo. Em momentos de terremoto ou incêndio, bastava sair correndo com as duas malas de dinheiro. Não era preciso pegar elevador, nem descer escadas.” (p. 55). Há outros, como os dois “pombinhos fofos”, a babá com nível superior Jin-ju e seu noivo, o jornalista Sung-Do que pretende lançar um livro com os diversos estilos de vida do mundo contemporâneo. Para isso vem entrevistando “gente esquisita” como a modelo de pelos púbicos, citada acima, ou No-yong, um mendigo-filósofo, meio Diógenes, meio artista da fome, que se recusa a trabalhar porque “tem preguiça” e não vê sentido em trabalhar para comer “se há tanta comida sendo jogada fora”. Quando a irmã não pode ajudá-lo ou lhe recusam comida, até trabalha dois dias por semana, “mas se pudesse não trabalhar nenhum...”.



A imersão neste eterno presente deve-se às preocupações advindas da limitação material de todos eles. Mesmo os poucos que conseguem safar-se materialmente da pobreza, não conseguem livrar-se psiquicamente dela (p. 270), como o jornalista Sung-do que aceita casar-se desde que a esposa consinta em não ter filhos; para ele filhos é apenas sinônimo de contrariedades: problemas financeiros, ansiedade, pobreza, “multidão”, como foi a sua infância. Sua preciosa noiva Jin-ju inicialmente tenciona, mas logo recusa interpretações pseudopsicológicas de sua relação com as mulheres: “Jin-ju pensava que esse relacionamento incômodo com a madrasta era a causa pela qual Sung-do mantinha relacionamentos tensos com as mulheres em geral. Era um sentimento reprimido, uma angústia sufocante por mantê-las afastadas. Não que ele tenha tido um problema específico com as irmãs ou com a madrasta, mas Sung-do passou a ter horror da alta densidade demográfica, pois tinha sido obrigado a aceitar uma vida com sete pessoas, num velho apartamento de dois quartos apenas. Em todas as manhãs, travava-se uma verdadeira guerra para usar o banheiro, e era impensável comer sequer uma fruta sozinho. Por causa disso, Sung-do era um daqueles que juraram nunca se casar ou formar uma família. (...) Todos esses problemas, apesar de não existirem dúvidas quanto ao amor de um pelo outro, ainda o atormentavam.”(p. 142-43). Jin-ju compreende, sem aceitar, que Sung-do tem uma mentalidade que não consegue livrar-se de seu passado miserável, como, por exemplo, o de sobreviventes de guerras que, sem se darem conta, associam fogos de artifício no réveillon a bombas ou campos minados e não à beleza e alegria da festa.

Exceção talvez seja Myung-ae Eum, uma intelectual de família abastada que estudou administração, literatura e filosofia, amiga do decaído ex-professor Ma e do tagarela Doo-yeon Baik na época de sua graduação. Tornou-se desgostosa de relacionamentos e do meio acadêmico, cuja podridão, cinismo e vaidade ela vai descobrindo ao trabalhar numa revista acadêmica. Quando tenta denunciar essa hipocrisia ouve de todo mundo que “é assim mesmo”. 

Myung-ae Eum – cujos namorados, artistas decadentes em sua maioria, estão interessados apenas em serem sustentados – leva um estilo de vida com a intenção de rebelar-se contra o materialismo contemporâneo que parece sufocá-la. Por isso “não se maquiava e nem gastava dinheiro comprando roupas caras da moda. Não fazia esforço nenhum para passar boa impressão às pessoas. Não fazia questão de falar com simpatia ou ser educada com as pessoas. Uma mulher de 40 anos com os longos cabelos soltos e trajando roupas velhas e folgadas atravessava tranquilamente a rua da cidade desvairada. A sua preocupação era uma só. Manter a independência psicológica.” (p. 86). Junto com o mendigo-filósofo, Myung-ae Eum personifica a ética nesta obra. Aliás, pensamos não ser à toa que sua Weltanschauung seja o capítulo mais longo da obra. Perguntamos: seria o alter ego da escritora (sem nenhuma confusão com o/a narrador/a)? Somos tentados a responder com um sim. Myung-ae Eum, todavia, parece não perceber que seu orgulho pela própria independência psicológica deve-se a sua independência material. Lembra-nos o "primeiro a comida, depois a moral", de Bertolt Brecht. Myung-ae Eum pode manter a sua independência psicológica (moral) porquanto não precisa preocupar-se em pagar o aluguel (comida), como as outras. 

O narrador, todavia, não é cínico, e há nisso mais uma grandeza do romance, a ponto de resvalar os pobres, por serem pobres, num relativismo ou falta de valores ético-morais. Vejamos, por exemplo, como Yoo-eun Bae, uma das personagens-ingredientes, não precisa de nenhuma consciência exterior para condenar e fugir dos próprios desejos no instante mesmo em que deseja – umas tão sonhadas férias com o marido: “(...) Imagino que estamos numa ilha. É claro que é uma ilha com uma praia privada. (...) Ficamos o dia inteiro à toa. Não precisamos nos preocupar com o horário do trabalho, não preciso me preocupar com o peso, posso comer à vontade as coisas gostosas cheias de gordura, fazer compras ilimitadas, sem pensar na fatura do cartão de crédito e sair à noite para beber. Tudo o que posso fazer é pensar. Mas não posso colocar em prática. Por quê? Porque isso é pecado. A preguiça é vergonhosa. O conforto faz o ser humano se tornar tolo. E os tolos não podem ser considerados seres humanos. São apenas lixo. Imagine o tédio, então!” (p. 159). Conclusão: os limitados pela extrema pobreza material nunca saberão o que é o tédio!

Contudo, Sukiyaki de Domingo não é uma obra seguidora da tradicional estrutura do romance (pensamos nos clássicos), com alguns protagonistas cujas agruras e aventuras vamos (re)conhecendo até chegar num clímax e na resolução final. O que vemos são numerosos personagens que vão “se acrescentando” (ao invés de apresentados ou estudados) na narrativa, formando um todo emaranhado. Alfim, vai ficando claro quem é esse emaranhado: a periferia de Seul, onde as personagens residem, cruzam-se, se encontram continuamente nos lugares de referência da região: na casa de penhores, numa lavanderia, num restaurante etc. Sukiyaki, segundo a obra, é um prato “mais ou menos japonês, mais ou menos coreano” muito apreciado no país – ou ao menos por esses coreanos quase miseráveis – um tipo de cozido no qual se vão acrescentando ingredientes, de carnes a legumes. 

A referência ao “sukiyaki de domingo”, lembra-nos a “feijoada de sábado” brasileira e toda a sociabilidade que isso implica se, alfim, entendermos que a “grande personagem” é a periferia de Seul e seus pobres, desempregados ou subempregados. É como se cada personagem fosse um ingrediente da receita que, juntados todos, formaria o prato final: o sukiyaki (a periferia). O romance mostra-nos um lado desconhecido da capital coreana – feio, sujo, malvado – que governos, livros didáticos e cadernos de economia excessivamente otimistas imprensa afora costumam não revelar, talvez de modo inconsciente, ao exaltar e difundir apenas o lado conhecido – belo, limpo, cordial – da ordem e do progresso de suas cidades. A República da Coreia não é só sucesso – Samsung, internet rápida e bons índices educacionais, segundo os estereótipos ocidentais (alguns verdadeiros, aliás). Porém, como qualquer país democrático e de livre mercado, também tem gente ambiciosa limitada pela pobreza, também tem periferias, também tem sua parcela da classe média em que “a raiva e o ódio sopram como vento frio” (p.77) quando veem seu status ameaçado.

No geral são histórias relativamente independentes, com personagens independentes. Temos a impressão de que originalmente eram contos com uma mesma temática – a falta de dinheiro, a periferia ou as ambições materiais – que depois foram “juntados”, como ingredientes, para estruturar-se nesta receita-romance. Bae Su-ah, entretanto, não trata da pobreza material que limita o indivíduo com uma linguagem crua e azeda, senão com certo lirismo que não sabemos dizer se é próprio da língua em que escreve (despertou-me aquela vontade de aprendê-la!) ou se é um amadurecimento de seu estilo. Devido às poucas traduções de ficção coreana, é-nos difícil tecer comparações. Esta, por exemplo, é sua primeira obra em português. Que venham outras.

***
Pablo é autor de O mundo como catástrofe e representação – testemunho e trauma na literatura do Sobrevivente (2010).


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