Dostoiévski, um romântico desgarrado entre a revolução e Deus

Por Rafael Conte



A figura de Fiódor Dostoiévski tem chegado para nós repleta de equívocos em parte devido sua esmagadora celebridade. Considerado durante muito tempo como um dos titãs do romance universal, ao lado dos maiores, sua obra tem produzido toneladas de exegeses e interpretações, nem sempre desprovidas dos ataques tão apaixonados como se ditirambos e em sua maior parte tão injustificadas que o único valor, muitas vezes, é só empecilho para seu verdadeiro conhecimento. Contra isso só existe uma solução: lê-lo, relê-lo deixando de lado todo prejuízo causado por essas leituras transversais, todo apriorismo, toda impressão superficial, própria ou alheia.

A revolução soviética condenou Dostoiévski ao limbo e ao esquecimento, pois o revolucionário juvenil que até foi condenado à morte e sofreu o exílio e os trabalhos forçados na Sibéria, abominou, na sua velhice os pecados juvenis e transformou sua obra numa criação mística. A crítica progressista para salvá-lo – e para salvar-se, pois a condena supunha ainda atentar contra a essência própria da literatura – o erigiu como um dos primeiros exemplares do realismo e o pioneiro do romance psicológico. Fez-se então um parco favor e muitos dos ataques depois dirigidos contra o escritor têm sua base não na sua obra, mas nessa deselegante defesa. Pois, apesar de seu realismo – violento e forçado – e de seu psicologismo, baseado em situações limite, de perto, muitas vezes, Dostoiévski é sobretudo um romântico retardatário, um nacionalista extremista e um escritor profundamente religioso.

As primeiras admirações deste jovem moscovita, engenheiro militar, nascido no Hospital dos Pobres de Moscou – onde seu pai era diretor –, foram a Bíblia, a história da Rússia e os românticos como Púchkin, Byron e Balzac. Quando, aos vinte e cinco anos, e já em São Petersburgo, publica Gente pobre, o sucesso é imediato: os círculos progressistas, com o crítico Bienlínski na cabeça, recebem essa obra como a de um gênio.

Mas, o jovem gênio, epiléptico desde os sete anos, é hipersensível, orgulhoso, suscetível e violento; logo rompe com a crítica e se torna cada vez mais um radical. Seu pensamento e olhos se volta para o Ocidente e pretende testemunhar a miséria e a dor do povo russo. Seus livros seguintes – O duplo, O senhor Prokhártchin, Noites brancas, Niétchka Niezvânova, Coração fraco e A mulher de outro – não alcançam o sucesso imediato. Depois vem-lhe a conspiração, a detenção e a prisão na fortaleza de Pedro e Paulo, a condenação à morte e o desterro em Omsk, na Sibéria, depois de um atroz simulacro de execução.

Durante quatro anos sofrerá o exílio, mas seu silêncio literário durará outros cinco anos. Seus primeiros livros depois da tragédia são estranhos – A aldeia de Stepántchikovo e seus habitantes, O sonho do titio e Humilhados e ofendidos –, mas com Recordações da casa dos mortos aparece um novo e definitivo Dostoiévski. O cantor justiceiro do povo russo foi substituído pelo profeta visionário, o místico obcecado por suas relações com Deus.

Memórias do subsolo e Notas de inverno sobre impressões de verão preparam o êxito de Crime e castigo, e depois o parêntesis de O jogador, chegam as grandes obras da etapa final: O idiota, Os demônios, O adolescente e o incansável trabalho de jornalista (Diário de um escritor) e seu grande testamento final, Os irmãos Karamázov, concluído pouco menos de um ano antes de sua morte.

As convulsões o acompanharam até o fim: a morte de sua primeira companheira, a epilepsia, a ruína, o jogo, os amores frustrados com Pauline, a morte de dois de seus quatro filhos do segundo casamento... Mas, um ano antes de sua morte ainda recebeu uma homenagem nacional de grandes proporções, onde até Turguêniev – seu grande rival, ocidental e cortês – se reconciliou publicamente com o escritor.  

À noite do mesmo dia de glórias, sozinho, Dostoiévski depositou no monumento a Púchkin a coroa de laurel que havia sido oferecida a ele. Seus ídolos infantis, Púchkin e Lérmontov, morreram em duelo, e seu grande inimigo, seu pai, foi assassinado por seus próprios empregados que o tinham como besta feroz (esse pai violento, ditador e alcoólatra que serviu de modelo para o pai dos Karamázov).

O estilo de Dostoiévski, segundo todos os seus exegetas russos – ou leitores do russo –, é barroco, instintivo, brilhantíssimo e intraduzível. Frente ao clássico Tolstói, ao sensível Tchekhov, ou a ocidentalizado Turguêniev, Dostoiévski é essa paixão sem a qual não surge a grande literatura. Perde-se, quando traduzido, como todos os grandes.

Depois da sua morte, em fevereiro de 1881, foram encontrados em seus baús de papéis grandes projetos que ficaram por concluir – entre eles, o principal é o manuscrito Ateísmo e hagiografia de um grande pecador. Nos esboços iniciais, o protagonista, quando menino, se deixa adorar por uma menina como se fosse um deus. Reduzir seus livros a uma panóplia de casos patológicos é não entender sua obra.

Em se tratando de Dostoiévski é preciso rastreá-lo num Ivan Karamázov que afirma a existência de Deus, pois se não tudo estaria permitido, em Aliócha, “puro” e místico, o starets Zósima, na organização de Stavróguin, o gênio frustrado do mal, ou na resposta que lhe dá Chátov em Os demônios ao ser perguntado se acredita em Deus.

“eu queria apenas saber: você mesmo crê ou não em Deus?
– Eu creio na Rússia, creio na religião ortodoxa... creio no corpo de Cristo... creio que o novo advento acontecerá na Rússia... Creio... – balbuciou Chátov com frenesi.
– E em Deus? Em Deus?
– Eu... eu hei de crer em Deus”.

Neste grito final de Chátov, e como está formulado, reside o mistério Dostoiévski.

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