Onze livros para ler na estrada

Reiteradas vezes, o Letras visitou o tema literatura e viagem para compor listas como estas (veja o final desta postagem). Mas, depois de nos concentrar tanto nos livros que nos situam em trajetórias, vividas fisicamente ou pela imaginação e sobretudo naqueles que dizem de um lugar e-ou de uma cultura, gostaríamos de dedicar atenção aos livros de itinerários, aos livros que foram escritos em viagem ou aqueles cuja narrativa se constitui itinerário por estradas diversas.

Sim, o trânsito e as viagens por estradas têm sido fonte de inspiração para muitos escritores. Está na base de um segmento de obras literárias conhecidas como road trips ou road novel e tem sua origem, adivinhem, nos Estados Unidos. Os dos títulos aqui citados oferece um panorama que atravessa desde a primeira geração das viagens em carros, aos do tempo de um sonho de singrar o país ou mesmo continentes numa boleia e aos itinerários de perdição dos sujeitos em perquirição na narrativa contemporânea. Foi a partir dessas observações que nasceu esta lista.

Ela tem – como todas as listas – suas limitações. Por exemplo, haverá títulos não presentes porque julgamos não satisfatório compor esse campo de interesses; haverá outros que se ausentam por nossas próprias limitações de leituras; e haverá obras que já estiveram noutras listas do gênero. E, como costumamos lembrar nestas ocasiões, não é de interesse ser esta uma lista acabada porque, bem sabemos, não existem listas acabadas. Outro aviso: em parte, os comentários sobre as obras são reproduções de sinopses oferecidas pelas editoras para divulgação desses livros.

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Os invictos, de William Faulkner. Este é foi o último livro escrito por um dos escritores que revolucionaram a narrativa contemporânea. Trata-se de um romance que narra a história de Lucius e seus comparsas de aventura, os empregados Ned e Boon numa fuga entre Jefferson e Memphis. Idealizada por Boon, o chofer do carro do avô de Lucius, a empreitada de quatro dias pelo interior do Condado de Yoknapatawpha, serve ao narrador para uma extensa diversidade de abordagens que vão do autoconhecimento, sobretudo do menino Lucius, à revelação de uma era em transição nos Estados Unidos. Aqui, o carro é símbolo da interiorização do espírito moderno naquele país e serve de meio pelo qual a narrativa se constrói – do embate entre tradição e modernidade.

António Lobo Antunes

Explicação dos pássaros, de Antonio Lobo Antunes. Este é o quarto título do escritor português. Nele, a viagem se constitui como nas obras aqui citadas, em tema e elemento estruturador da narrativa. Rui S. é um professor universitário em profunda crise de identidade. Abandonado pela primeira companheira, com quem teve dois filhos, casou-se novamente para evitar a solidão. A solidão lhe um fardo, uma constante que nasce não apenas no fim do primeiro casamento, mas pelo desprezo que sofre pela família devido a escolha que fez para a vida. Toda a narrativa desse romance se dá ao volante, enquanto Rui S. parte do hospital de Lisboa, onde visitou sua mãe no leito de morte, ao lado de sua segunda companheira, Marília. A viagem de quatro dias é motivo de reflexão para tomar coragem de pedir o fim do novo casamento e se torna num itinerário assobrado pelas antigas recordações e por um desfecho trágico.

Lições de vida, de Anne Tyler. Com este título a escritora ganhou o Prêmio Pulitzer de Literatura em 1989. Nele, a autora revela que uma mulher pode aprender mais de seu companheiro durante uma viagem de carro do que no restante de toda sua vida em comum. O contrário, isto é, um homem pode aprender mais sobre sua companheira durante uma viagem de carro do que no restante de toda sua vida em comum, também é verdadeiro. Maggie Moran, a protagonista da narrativa viaja com seu companheiro Ira de Baltimore à Pennsylvania, onde precisam estar para um funeral. Ela é impetuosa, desastrada, desajeitada, propensa a acidentes e tagarela; ele, totalmente ao contrário, reservado, tem uma mania irritante de assobiar músicas que traem seus pensamentos mais profundos e acha que sua companheira transforma os fatos de maneira que se encaixem na sua opinião sobre as pessoas que ama. O longo itinerário além de revelá-los um para o outro, revelam-lhe sobre os filhos, a cultura das novas gerações e os complexos valores sociais pelos quais nem um nem outro mais se reconhecem.

Julio Cortázar e Carol Dunlop

Os autonautas da cosmopista, de Julio Cortázar e Carol Dunlop. É um dos textos mais célebres dada a circunstância em que o casal vivenciou esse acontecimento. Carol havia descoberto que estava presa numa doença terminal e ela e Cortázar decidiram então viver uma viagem que duraria em média oito horas, de Paris a Marselha, em mais de um mês. Aí se recolhe grande parte das muitas experiências na boleia. A viagem realizada na camioneta apelidada de Fafner oferece uma espécie de retorno à distopia de A autoestrada do sul, a sobre um engarrafamento que se prolonga por várias semanas. Os trinta e um dias de viagem são relatados com atenção ora engraçada ora insólita sobre obrigações autoimpostas e um registro diarístico que se perpetua ao modo de uma colagem de discursos cujo interesse é o de revelar a paisagem diversa que é encontrada pelo caminho.  

Outros cantos, de Maria Valéria Rezende. É enquanto retorna ao Nordeste, que a narradora, recorda suas vivências de há anos como professora numa missão de alfabetização no interior da região. A viagem aqui não corre na boleia de um carro, mas num ônibus desses que cruzam de uma cidadezinha a outra e param a todo instante. Durante o percurso se descortina outro Nordeste, o do Brasil avançado pelos investimentos das políticas públicas e ainda em constante metamorfose pela acessibilidade ao consumo. Esse retrato se contrapõe ao da miséria profunda vivenciado pela professora quando jovem. Sua viagem oferece um retrato de um país situado numa zona diversa e complexa de transformações socioeconômicas e culturais.

Numa noite escura saí da minha casa silenciosa, de Peter Handke. Eis uma história misteriosa, onde o real e o imaginário se cruzam. Num dia de chuva e sem motivo aparente, o farmacêutico de Taxham, nos arredores de Salzburgo, empreende uma longa viagem em direção ao imprevisto e à aventura, desde a Áustria até à Andaluzia. A viagem é realizada com dois companheiros ocasionais e mudos, mas o regresso se dá sozinho, depois de um percurso aparentemente arbitrário. Peter Handke parte dos versos do poeta espanhol San Juan de la Cruz, que dão origem ao título do romance em questão, para nos levar a uma viagem pelo desconhecido. Um périplo pelos medos, fantasmas, solidões que assombram os homens numa narrativa entre o mágico e o real. A viagem aqui é ao interior de nós mesmos – um dos temas mais significativos no conjunto da obra do escritor austríaco.

On the road, de Jack Kerouac. Este é talvez o título nunca esquecido quando o assunto é literatura e viagem. É, não por acaso, um dos romances fundamentais da literatura estadunidense do seu tempo e marco de uma geração responsável por uma das mais significativas transformações criativas naquele país. A criação de On the road se deu a partir de uma viagem realizada por Kerouac realizada pela Rota 66 que cruza os Estados Unidos de leste a oeste. E sua importância não se apresenta apenas pela maneira como esse tema serviu ao escritor, mas como ele imprimiu, pela rapidez e fluidez da escrita, o ritmo de sua obra ao andamento da viagem; viagem realizada não numa só boleia e sim em vários carros, afinal todo o longo itinerário entre Nova York e São Francisco durou sete anos. O livro desde sua publicação logo se tornou símbolo da chamada Geração Beat, a responsável pelas transformações literárias e culturais dos Estados Unidos pós-anos 1950. A viagem em Kerouac funde ação, emoção, sonho e reflexão.

Crash, de J. G. Ballard. O romance de 1973, é considerado radical, incômodo e perturbador. Narrado em primeira pessoa por um roteirista de cinema e publicidade, o livro mistura um minucioso realismo à mais ousada fantasia ao retratar uma espécie de irmandade de indivíduos doentios, obcecados pelas possibilidades eróticas dos desastres de automóvel. O líder do grupo, Robert Vaughan, passa seus dias nas vias expressas da região do aeroporto de Londres, procurando acidentes sangrentos, que ele fotografa em todos os detalhes escabrosos. Depois, com prostitutas colhidas à beira da estrada, busca reproduzir, em bizarros atos sexuais no interior do carro, as posições das vítimas lesionadas. Conduzido por um narrador cada vez mais perplexo e fascinado com a descoberta desse mundo em que o erótico, o mecânico e o macabro parecem se fundir, Crash pode ser lido como um retrato singular, sob a forma de pesadelo, da realidade insana em que trafegamos todos os dias.

John Steinbeck e o poodle Charley

Viajando com Charley, de John Steinbeck. Na década de 1960, o escritor estadunidense, autor de obras marcantes na literatura como As vinhas da ira, decidiu à maneira dos autores Beat por uma viagem pelo interior do seu país. Num trailer que batizou de "Rocinante", homenagem ao cavalo do Dom Quixote, ele percorreu de Nova York, ao longo da fronteira dos EEUU, do Maine ao Pacífico, depois do vale de Salinas, na Califórnia, onde nasceu, passando pelo Texas ao sul do país até regressar novamente a Nova York; um percurso de 16 mil quilômetros, cujo interesse era redescobrir sua pátria ou dela despedir-se, se levarmos em consideração a opinião do filho Thom Steinbeck. A viagem não foi solitária; foi ao lado do poodle Charley. A rota serve ao escritor para uma visão acurada sobre a paisagem natural e humana que encontra pelo caminho e para uma sorte diversa de perquirições reflexivas sobre assuntos diversos.

Todos nós adorávamos caubóis, de Carol Bensimon. As personagens nesse romance vagam como forasteiras na própria terra onde nasceram, tentando compreender sua identidade. Narrada pela bela e deslocada Cora, essa viagem ganha contornos de sarcasmo, pós-feminismo e drama. É uma jornada que acontece para frente e para trás, entre lembranças dos anos 1990, fragmentos da vida em Paris e a promessa de liberdade que as vastas paisagens do sul do país trazem. Há entre Cora e Julia uma distância de anos, depois de uma intensa relação do tempo da faculdade ter acabado de uma maneira estranha, com a partida repentina de Julia para Montreal. A viagem marca não apenas um reencontro com a reaproximação das duas através de seus conflitos particulares; dentre eles, enquanto Cora precisa lidar com o fato de que seu pai, casado com uma mulher muito mais jovem, vai ter um segundo filho, Julia anda às voltas com um ex-namorado americano e um trauma de infância.

A música do acaso, de Paul Auster. Este é um livro ideal para quem ainda não leu nada do escritor estadunidense. O protagonista da narrativa tem sua vida virada ao avesso quando sua companheira o deixa e, ao mesmo tempo, ele recebe uma inesperada herança de seu pai, figura que nunca conheceu. Assim, decide viajar pelos Estados Unidos num SAAB vermelho. A narrativa se divide em duas partes: a primeira, a da road trip solitária de Jim Nashe, que vai de motel em motel e nunca dorme duas vezes no mesmo; e a segunda parte quando conhece um jovem jogador de pôquer e dá-se então o tema principal que serve de título à obra. Aqui, a viagem se torna em metáfora de como é fácil perdermos nossa identidade e de quão inexplicáveis são as regras que regulam nossas vidas.

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