A religiosidade clandestina de Hermann Hesse

Por Rafael Kafka

Hermann Hesse. Foto: Gisèle Freund


Há uma carta de Mário Andrade que circula pela internet que é bem interessante para servir de mote a esse texto. O destinatário da missiva é outro escritor brasileiro célebre, Carlos Drummond de Andrade, conhecido por seu temperamento taciturno e extremamente reservado. O assunto central da carta, dentre outros de menor importância, é o sentimento de religiosidade perante a vida. Mas Mário faz questão de falar ao amigo que tal religiosidade não é a veneração cega de alguma entidade qualquer e sim a existência plena em todas as suas possibilidades, o permitir-se a expansão sensorial e intelectual em todas as direções possíveis desta existência.

O sentido de tal assertiva se torna ainda mais pleno quando entendemos que a religiosidade como geralmente a entendemos vivida por espíritos conservadores é uma limitadora das possibilidades humanas. Em prol de uma salvação póstuma, o ser deve abrir mão de uma série de vivências pessoais para ser aceito em uma realidade superior de paz eterna. O pecado mais do que dimensão ética, quando se volta para o outro, assume uma feição de auto-suplício enquanto limitador do ser. A angústia perante a morte leva o indivíduo a aceitar o jogo de perdas em troca de um ganho incomensurável.

O espírito religioso conservador tenta colocar a realidade dentro de moldes perfeitos extinguindo dela tudo aquilo que serve como poluidor do ser neste caminho de salvação. O medo da morte invade todos os recantos do plano existencial e tudo aquilo que soa ameaça se torna digno de ser eliminado. A homossexualidade, a liberdade feminina, os cultos religiosos africanos ou que soam divergentes aos seus, tudo isso o conservador vê como arestas para impedir o seu caminho na plena realização do plano divino que existe em si.

Hermann Hesse teceu críticas bem interessantes em forma de textos literários em dois de seus mais importantes livros a esse tipo de conduta inautêntica do ser humano. O Lobo da Estepe mostra um indivíduo que se enxerga como duplo para no fim descobrir que são vários e que o segredo da felicidade é aprender a conviver com essa multiplicidade ontológica que habita em si e a náusea gerada por ela. Harry vê no teatro mágico a possibilidade de encontro consigo mesmo pelo desvairamento dos sentidos, algo que o mesmo Mário de Andrade acima citado iria colocar de forma um pouco mais didática em um prefácio que ao seu final se destrói a si mesmo. A arte é a verdadeira religiosidade do mundo, pois não oferece ao sujeito pensante e sensitivo respostas prontas de nenhuma ordem. Por meio da arte, o ser humano descobre a si mesmo por meio do que é capaz de sentir em todas as suas dimensões, fugindo dos rótulos racionalistas e religiosos típicos da cultura ocidental que dividem a espécie humana em duas esferas incomunicáveis, corpo e alma.

O mesmo tema surge em Demian, mas com um mais espiritual do que artístico. Ainda assim, os dois livros se complementam pelo debate travado em torno da salvação pela obra de arte. A salvação aqui não é assunção do ser rumo a uma estado de plenitude fechado em si mesmo no plano da paz eterna. Pela arte, a única salvação possível é a liberdade humana com toda a sua angústia e incerteza. Enquanto a religiosidade cristã promete a vida eterna exigindo do sujeito a limitação desta vida, a religiosidade prega por Mário de Andrade e Hermann Hesse promete a autenticidade diante da finitude do ser.

Sinclair é uma espécie de alter ego de Hesse, fechado em um ambiente religioso e distante de tudo que fere a moral e os bons costumes pregados por sua família. Um dia, comete um pequeno delito e passa a ser perseguido por um colega tendo de ser salvo por Demian, misterioso estudante de sua escola que causa no protagonista uma profunda atração. A partir de então se inicia uma amizade de anos que servirá como forma de ruptura de Sinclair com todos os valores religiosos por ele vivenciados até então. O medo de sair de casa some e aos poucos o jovem tímido e medroso se torna um intrépido experimentador da existência em todas as suas possibilidades. Demian se torna uma espécie de tutor espiritual e passa a injetar no espírito do jovem amigo um novo tipo de religiosidade marcado pelo signo da liberdade humana. Para Demian, a realidade humana é algo que tem em si mesmo poder de sua concretude. Muito do que ele apregoa tem ecos similares aos princípios filosóficos da primeira fase de Sartre, antes de seu engajamento com o marxismo: a existência humana é algo que se realiza sendo e se compreendendo a si mesma, marcada pela angústia de existir e de ser responsável por suas escolhas. Vale ressalta que o marxismo não anulou essa base do existencialismo sartreano, antes aperfeiçoando-a. Todavia, o discurso de Demian possui um individualismo similar ao do jovem Sartre, que dentro de um universo burguês ainda acreditava ser a vontade o maior substrato para garantir a liberdade do ser.

Sinclair vê no amigo uma releitura dos versículos bíblicos do primeiro homicídio da história – de Caim contra o irmão Abel -, não mais como um gesto de inveja e sim um gesto de liberdade. Sinclair passa a se sentir parte da tribo dos marcados pelo selo da liberdade e passa a sentir cada vez mais desejo desta liberdade. Outras figuras causarão em si a mesma sensação de êxtase libertário, como Eva, mãe de Demian, que com seu nome sugestivo será a grande paixão do jovem ex conservador dentro do romance, e Pistorius, uma espécie de meio termo entre o antigo Sinclair e o rebelde Demian.

Demian representa a religiosidade artística perseguida pelo conservadorismo, uma religiosidade que apregoa amor ao ser humano mais do que a uma entidade abstrata. Por meio de um discurso literário rico, Hesse tece uma narrativa que é um verdadeiro libelo pela liberdade humana, tão maltratada por sistemas econômicos sociais e opressores. A obra do escritor alemão se mostra profundamente atual em um contexto em que o discurso religioso se torna cada vez mais forte e convivente com práticas de barbárie institucionalizada. A consciência humana parece se dividir em camadas e a religiosidade fundamentalista parece criar uma profunda distorção cognitiva que não permite ao ser a compreensão do absurdo existencial no qual está imerso, inclusive refletido em atitudes suas. Surge então um conjunto de práticas de fragmentadas que mostra a sintonia bizarra entre o amor cristão e o ódio farisaico.

Em minha cidade, cada vez mais pregadores sobem em ônibus falando a todos pulmões de suas verdades incontestes. Muitas vezes, percebo no rosto das pessoas o incômodo com tais discursos proferidos em locais insalubres e com temperaturas horríveis. Mas o medo diante de ameaças de condenação ao inferno aos descrentes leva muitas vezes aos aplausos e cada vez mais uma religiosidade limitadora assume as rédeas das condutas humanas.

Mas como eu disse acima, a consciência humana é formada de diversas camadas e a religiosidade fundamentalista parece anular a percepção do ser. A casa de Sinclair aqui serve de metáfora para uma consciência filantrópica que não hesita em reclamar de programas sociais de combate à pobreza, muito menos condenar a liberdade feminina enquanto compartilha nudes de forma ilegal em aplicativos de mensagens. A casa de Sinclair representa o discurso que toma o lugar das coisas, como bem ilustrou Foucault, colocando o ser em estado de má-fé, de uma visão ideológica dirigida a si mesmo, julgando-se representante de uma palavra sagrada que em sua ignorância ele não percebe viver.

Talvez o espírito das obras de Hesse aqui mencionadas – e da carta de Mário de Andrade no começo – seja justamente a exposição do que é o farisaísmo. Mais do que um falso moralismo, o farisaísmo é o terror cuja visão é anulada e se assume como discurso autoritário para destruição do próximo, na forma de uma convicção falsa e absoluta. O farisaísmo é o terror disfarçado de religiosidade racional e judicativa, assumindo uma postura de limpeza moral em busca da salvação de um povo. O farisaísmo, como bem vemos em nosso país, busca fundir – mesmo que de forma tola e hipócrita – a justiça divina – ou supostamente divina – com a justiça social.

Isso significa em nossos dias não mais um espírito conservador que busca anular o próximo para se salvar depois da morte. Os fatos são outros e o espírito conservador vê na defesa dos princípios religiosos por ele defendidos a única justiça social possível: se o deus cristão a tudo abençoar, então todos nós estaremos salvos em um mundo sem corrupção. E assim, temos a criação de um olhar viciado que justifica toda sorte de crime contra a dignidade humana e sua liberdade.

Se há ainda alguma esperança para o ser humano, ela justamente reside na possibilidade de uma religiosidade valorizadora da liberdade da condição do ser humano. Por meio dessa ética libertária, há a possibilidade de entendermos a fundo o que fere o direito à liberdade de cada pessoa, até mesmo a ação do Estado que nos deveria proteger. A religiosidade não deve servir de pretexto para a escravidão do ser humano. Muito pelo contrário. O amor à vida é que nos permite ter o mínimo de empatia para lutarmos por nós e pelos outros, sem usarmos de subterfúgios para anular de nós mesmos aquilo que não queremos assumir que vemos como grotesco em nós.

***

Rafael Kafka é colunista no Letras in.verso e re.verso. Aqui, ele transita entre a crônica e a resenha crítica. Seu nome é na verdade o pseudônimo de Paulo Rafael Bezerra Cardoso, que escolheu um belo dia se dar um apelido que ganharia uma dimensão significativa em sua vida muito grande, devido à influência do mito literário dono de obras como A Metamorfose. Rafael é escritor desde os 17 anos  (atualmente está na casa dos 24) e sempre escreveu poemas e contos, começando a explorar o universo das crônicas e resenhas em tom de crônicas desde 2011. O seu sonho é escrever um romance, porém ainda se sente cru demais para tanto. Trabalha em Belém, sua cidade natal, como professor de inglês e português, além de atuar como jornalista cultural e revisor de textos. É formado pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará em Letras com habilitação em Língua Portuguesa e começará em setembro a habilitação em Língua Inglesa pela Universidade Federal do Pará. Chama a si mesmo de um espírito vagabundo que ama trabalhar, paradoxo que se explica pela imensa paixão por aquilo que faz, mas também pelo grande amor pelas horas livres nas quais escreve, lê, joga, visita os amigos ou troca ideias sobre essa coisa chamada vida.

Comentários

Estamos na presença de um texto rigoroso, que procura tentar compreender a complexa relação entre o Homem e a Religião. E o autor define, logo no início, o campo da sua visão, com o qual concordo, quando diz que "a religiosidade, como geralmente a entendemos, vivida por espíritos conservadores, é uma limitadora das possibilidades humanas". Mas, além das vivências actuais, baseadas nas Religiões do Livro, que, no Ocidente, aprofundaram, desde a sua origem, essa capacidade limitadora da mente dos crentes, o que possibilitou a sua avançada forma de institucionalização, temos de encontrar, através da Antropologia, a razão primeira dessa enraizada pré-disposição do Homem para se sujeitar acriticamente a uma tal situação de subjugação.
Dou como garantido que a crença numa entidade superior começou com os primeiros grunhidos da Humanidade. Ou seja, associou-se naturalmente ao desenvolvimento dos mais primitivos pensamentos dos Homo erectus, pensamentos ainda lineares e esquemáticos, e das primeiras tentativas de articular sons guturais, com os quais pretendiam comunicar. E nesses primeiros pensamentos, embora muito concentrados à volta das questões da sua subsistência, surgiu naturalmente a primeira pergunta sobre a sua própria identidade e a identidade de quem construíra o mundo visível a seus olhos, processo esse que durou milhares de anos, o tempo suficiente para projectarem a mente para o Além. para uma entidade invisível superior. Nascera a crença... Mais uns milhares de anos, mais à frente, quando a organização social evoluiu para as formas superiores da sua hierarquização, aceitando um líder que se impunha pelo seu poder, é que se inicia o processo da institucionalização da crença.O próprio poder político necessitava, para se legitimar, do novo poder que surgia, o poder religioso, normalmente concentrado no líder, que rapidamente sentiu a necessidade de ser acolitado por clérigos obedientes.
E assim chegamos ao Judaísmo, ao Cristianismo e ao Islamismo, a marcarem o tempo da História, e constituindo-se em objecto e pretexto de muitas guerras.
Alexandre de Castro

Postagens mais visitadas deste blog

Boletim Letras 360º #575

Ca-ca-so

Sete poemas de Miguel Torga

A criação do mundo segundo os maias

Dalton por Dalton

Boletim Letras 360º #574