Clara dos Anjos: a chaga dos anos 20

Por Thaís Farias Vargas

Di Cavalcanti. 

Lima Barreto: o triste contemporâneo

Clara dos Anjos é um romance do “escritor maldito”, alcunha dada a Afonso Henriques de Lima Barreto pelo literato e jornalista H. Pereira da Silva. A trama é desenvolvida nos bairros do subúrbio do Rio de Janeiro, que se transforma em palco de denúncia social, onde o cotidiano da mestiçagem é destrinchado sem floreios, sem rodeios, marcando a exclusão daqueles que residem no “refúgio dos infelizes”, como enuncia o narrador desta triste novela.

Cabe dizer antes de qualquer escrito que Lima Barreto foi avaliado negativamente no mundo literário, não só durante a existência corpórea, mas também postumamente. Muitos críticos, em especial aqueles que organizam os manuais sobre a história da literatura brasileira, relatam que o romancista escreveu sobre suas vivências, não dissociando as mazelas pessoais das obras; muitos desses críticos são ferozes no que concerne ao estudo de suas produções literárias, não se permitindo enxergar a ficção, a história, a graça do discurso limabarreteano.

Entretanto, a literatura brasileira da contemporaneidade busca questionar o que vem sendo apresentado, ou melhor, representado no campo das produções literárias, quais seriam os legitimados para falar em nome do que se considera povo brasileiro e explicitar uma identidade nacional. No livro, Literatura brasileira contemporânea: um território contestado, por exemplo, a professora e estudiosa Regina Dalcastagnè chama a responsabilidade aos que trabalham com a literatura sobre o espaço dedicado aos grupos sociais menos favorecidos, indaga o lugar de fala dos escritos e a quem se destinam, e, nesse contexto, procura situar a manifestação literária como agente de transformação da sociedade.

Há um esforço, portanto, no sentido de tentar diminuir o problema da representação das camadas marginalizadas na literatura, por isso, talvez, as obras de Lima Barreto estejam sendo redescobertas e interpretadas de maneira coerente, já que o autor, ao dar vida a tipos cotidianos que não tinham constância de vez e voz nas narrativas nacionais, trabalhava na contramão do que a literatura de seu tempo produzia. Lima Barreto ao tratar de temas como o racismo e o esquecimento do subúrbio em Clara dos Anjos, ilumina as chagas de 1920 para a contemporaneidade.

Os suburbanos em Clara dos Anjos

Um excelente leque cultural dos indivíduos que viviam à margem da “alta sociedade” carioca por volta de 1922 é encontrado em Clara dos Anjos. A história principal do romance é a tentativa frustrada de evitar o ataque à virtude e à moral da mulher negra, mestiça. A personagem Clara é utilizada para exemplificar as injustiças que ocorriam a esse nicho da sociedade, onde essas mulheres eram tidas como objetos sem importância, que após a utilização, o destino era o descarte cruel e desumano. Em paralelo a esse eixo central, várias personagens são desenvolvidas, cada uma com o seu relato de vida, na maioria das vezes, triste e desesperançado.

O cenário utilizado pelo narrador para contar essas vivências é o subúrbio, lugar onde é evidenciada a pobreza, a miséria, o esquecimento do governo, os modelos humanos que ninguém quer por perto. O narrador descreve o subúrbio da seguinte maneira (Barreto, 1997, p. 88-89):

“O subúrbio propriamente dito é uma longa faixa de terra que se alonga, desde o Rocha ou São Francisco Xavier, até Sapopemba, tendo para eixo a linha férrea da Central. (...)

Há casas, casinhas, casebres, barracões, choças, por toda a parte onde se possa fincar quatro estacas de pau e uni-las por paredes duvidosas. Todo o material para essas construções serve: são latas de fósforos distendidas, telhas velhas, folhas de zinco, e, para as nervuras das paredes de taipa, o bambu, que não é barato.

Nelas, há quase sempre uma bica para todos os habitantes e nenhuma espécie de esgoto. Toda essa população, pobríssima, vive sob a ameaça constante da varíola e, quando ela dá para aquelas bandas, é um verdadeiro flagelo. (…)

Por esse intrincado labirinto de ruas e bibocas é que vive uma grande parte da população da cidade, a cuja existência o governo fecha os olhos, embora lhe cobre atrozes impostos, empregados em obras inúteis e suntuárias noutros pontos do Rio de Janeiro.”

Na obra, não se percebe o estereótipo ou o exotismo exagerado na construção das personagens, independentemente da cor ou da condição financeira, o caráter é explicado através da educação material e moral que tiveram, da profissão que exerciam, logo a cor, o status social nada tinham a ver com o seu proceder na narrativa. A mulher negra, mestiça não é vista sexualmente, embora a conduta de outros personagens a lancem para esse estigma. O negro ou o mestiço não é necessariamente um infrator, um contraventor, um ignorante. Pode-se verificar o relatado na figura de Joaquim dos Anjos, pai de Clara, que era mestiço, tinha o ofício de carteiro, era honesto e trabalhador ou na figura de Dona Margarida Weber Pestana (vizinha de Clara), mulher proba, de origem russa, que após enviuvar criou o filho sozinha. Um trecho interessante sobre as pessoas que formavam o subúrbio é (Barreto, 1997, p. 92):

“Mais ou menos é assim o subúrbio, na sua pobreza e no abandono em que os poderes públicos o deixam. Pelas primeiras horas da manhã, de todas aquelas bibocas, alforjas, trilhos, morros, travessas, grotas, ruas, sai gente, que se encaminha para a estação mais próxima; (...) São operários, pequenos empregados, militares de todas as patentes, inferiores de milícias prestantes, funcionários públicos e gente que, apesar de honesta, vive de pequenas transações, do dia a dia, em que ganham penosamente alguns mil-réis.”

É claro que havia também grupamentos violentos, pessoas de má índole, como em qualquer sociedade, todavia a visão preconceituosa de que os excluídos sociais tendem a ser criminosos ou perigosos, além de equivocada, sustenta o desconhecimento da realidade por parte daqueles que assim os caracterizam. Curiosa é a descrição de Cassi Jones de Azevedo, o corruptor de Clara de Anjos, rapaz branco e sardento, oriundo de uma família com melhores condições financeiras, mas que nunca teve vocação para o estudo e muito menos para o trabalho. Mais uma vez, o romance mostra que a descendência étnica ou a situação financeira não são fatores determinantes para um procedimento correto, no trecho que segue, há uma crítica categórica em relação ao comportamento da personagem Cassi (Barreto, 1997, p. 33-34):

“Nunca  suportara um emprego, e a deficiência de sua instrução impedia-o que obtivesse um de acordo com as pretensões de muita coisa que herdara da mãe; além disso, devido à sua educação solta, era incapaz para o trabalho assíduo, seguido, incapacidade que, agora, roçava pela moléstia. A mórbida ternura da mãe por ele, a que não eram estranhas as suas vaidades pessoais, junto à indiferença desdenhosa do pai, com o tempo, fizeram de Cassi o tipo mais completo de vagabundo doméstico que se pode imaginar. É um tipo bem brasileiro.”

É importante salientar que a representação pitoresca ou discriminatória dos marginalizados não ocorre em Clara dos Anjos, isto porque o subúrbio é exposto sob a perspectiva de quem lá vive. Talvez a característica dominante desse local fosse o esquecimento, o que fazia a população sofrer todas as agruras possíveis.

Clara dos Anjos nos induz a reflexão de como enxergamos aqueles que experimentam uma realidade diferente da nossa, lançados a uma vida bruta, dolorida, permeada pelo preconceito social latente, pelo racismo enlouquecedor, pelo aniquilamento das esperanças.

A condição da mulher e o racismo

O filósofo e estudioso Giorgio Agamben em O que é o contemporâneo? e outros ensaios diz que (2009, p. 62- 63):

“Contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não as luzes, mas o escuro. Todos os tempos são, para quem deles experimenta contemporaneidade, obscuros. Contemporâneo é, justamente, aquele que sabe ver essa obscuridade, que é capaz de escrever mergulhando a pena nas trevas do presente.”

Clara dos Anjos é esse mergulhar nas trevas do seu tempo, o romance nos fornece uma visão do sofrimento de ser mulher, pobre, negra ou mestiça em meio a uma comunidade patriarcal, que havia extinto a escravidão há apenas trinta e quatro anos. A narrativa relata o desrespeito das instituições e do corpo social em geral às pessoas pobres e mestiças. O desrespeito era infinitamente maior quando se tratava das mulheres negras, a maioria se via abandonada nos braços da prostituição, do alcoolismo, padecendo as maiores humilhações até chegar a um estado degradante, isto, frise-se, sem a menor oportunidade de recuperação ou chance de sair desses entraves. A passagem abaixo revela a preocupação de Marramaque, padrinho de Clara, quando percebe o interesse de Cassi Jones na menina (Barreto, 1997, p. 49):

“Na sua vida, tão agitada e tão variada, ele sempre observou a atmosfera de corrupção que cerca as raparigas do nascimento e da cor de sua afilhada; e também o mau conceito em que se têm as suas virtudes de mulher. A priori, estão condenadas; e tudo e todos pareciam condenar os seus esforços e os dos seus para elevar a sua condição moral e social.”

Há no livro outros relatos, o da mulata Rosalina que acabara prostituída e bêbada, devido a um “mau passo” na vida; a história da mestiça Nair, que fora iludida por Cassi Jones, cuja mãe veio a se suicidar por não saber lidar com o futuro incerto da filha; o caso de Inês, menina negra, que  expulsa da casa de Cassi grávida, é encontrada maltrapilha e miserável pelas ruas cariocas no decorrer do romance.

Constata-se que a obra expõe uma diversidade de tipos femininos e quase todos eles acabam vitimados pela discriminação sexual, econômica e racial. Clara dos Anjos não escapa a esse processo e, após ser corrompida, depara-se com o racismo que sufoca e oprime, acabando com qualquer esperança de felicidade na vida. Para ilustrar esse processo, segue o trecho (Barreto, 1997, p. 111):

“Até ali, Clara não dissera palavra; e Dona Salustiana, mesmo antes de saber que aquela moça era mais uma vítima da libidinagem do filho, quase não a olhava; e, se o fazia, era com evidente desdém. A moça foi notando isso e encheu-se de raiva, de rancor por aquela humilhação por que passava, além de tudo que sofria e havia ainda de sofrer.

Ao ouvir a pergunta de Dona Salustiana, não se pôde conter e respondeu como fora de si:

- Que se case comigo.

"Dona Salustiana ficou lívida; a intervenção da mulatinha a exasperou. Olhou-a cheia de malvadez e indignação, demorando o olhar propositadamente. Por fim, expectorou:

- Que é que você diz, sua negra?”

A última frase da passagem supracitada provoca em Clara uma dor imensurável, grávida, sem recursos e de família humilde, chega no auge de seu desespero a proferir “Nós não somos nada nesta vida”. A sentença impactante mencionada, é a que termina a obra, convidando o leitor à reflexão sobre o racismo que corrói a vida de tantas “Claras”, não só no início do século XX, mas também e, principalmente, na atualidade do país.
               
Lima Barreto ontem e hoje

A obra de Lima Barreto é tão viva, tão original, tão verdadeira, que é impossível não ver que ela tenta suprir a ausência das camadas populares, trazendo para o presente em que foi escrita a preocupação com os que viviam a margem da sociedade letrada. Clara dos Anjos é mais que um discursar denunciante, é um protesto contra as injustiças sociais. Lima Barreto dá vez aos oprimidos em uma realidade racista, excludente, que sufocava as artes com os seus manuais de definições de alta cultura e de determinação do conceito sobre a formação o povo brasileiro.

Roland Barthes diz que “o contemporâneo é o intempestivo” (Barthes citado por Agamben, 2009, p. 58) e  a história de Clara dos Anjos explicita essa intempestividade do discurso, reclama à atualidade a existência do subúrbio, das periferias, das favelas, mostrando de que é feita a sua gente, o que pensam, o que sentem, como vivem. A chaga escondida em 1920 grita o seu reconhecimento, a sua valoração no tempo presente, enquanto parte da realidade brasileira, por essa razão, não pode a Literatura continuar vendada a sua presença.

A literatura de Lima Barreto merece ser lembrada, não apenas como resgate de uma bandeira levantada contra as injustiças sociais, mas, principalmente, como memória de um passado que existiu e que necessita dialogar com o presente, no intuito de sanar a falta de representação literária daqueles que ninguém enxerga, bem como evitar apresentações incoerentes com a realidade vivenciada por eles.

Thaís Farias Vargas é pós-graduando na especialização em Literatura Brasileira da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS. Graduada pelo Centro Universitário da Cidade do Rio de Janeiro.

Comentários

Alexandre Rosa disse…
Texto importante sobre uma temática ainda, e infelizmente, bastante atual. A autora apresenta um bom domínio da temática, embora fique muito restrita à obra "Clara dos Anjos". Um sobrevôo mais amplo sobre a obra do autor como um todo - Diário, Textos de Imprensa, contos, crônicas, ensaios, etc.- demonstraria com mais força a presença da temática na moldura mais ampla da obra barretiana.

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