Quando Borges era Giorgie

Por Jesús Ruiz Mantilla

Borges e sua mãe, 1920.


Toda noite, até morrer e apesar de seu agnosticismo, Jorge Luis Borges rezava uma Ave-maria. Há promessas que podem mais que a fé. E essa fez à sua mãe, dona Leonor Acevedo. Mas, além do laço filial, o escritor manteve com esta mulher um vínculo que deu pé a todo tipo de interpretações. Viveram juntos até a morte dela, em 1975. Ela foi que transcreveu para ele parte de sua obra, liam juntos e iam ao cinema, dividiam os gastos da casa, conversas triviais e teológicas, viagens, manias e paixões que volta e meia rondam as teorias dos especialistas.

Um cartão-postal do arquivo José María Lafuente, em Cantabria, dá ideia de sua relação íntima e poética: “O meio-dia me entrega as melhores possibilidades de um pensamento que não se deixa traduzir”, escrevia Borges de Punta del Este (Uruguai) para sua mãe nos anos trinta. “By the way, cheguei à claridade de uma janela, só para conversar com você. Georgie”.

O By the way é herança de dona Leonor. Quando Borges tinha 20 anos já era poliglota. Por empenho de sua mãe e também de seu pai, o senhor Jorge Guillermo, escritor, professor, anarquista e entusiasta do gênio de seu filho, a quem alimentou com livros, deixando à disposição sua valiosa biblioteca. O escritor se trancava aí desde criança como se preso ao tempo de uma prisão e simultaneamente uma liberdade. Saía, entre outras coisas, para viajar a Europa desde muito jovem. Aos 20 anos já havia ido ao continente duas vezes com a família.

Georgie corresponde ao tratamento familiar do pequeno Jorge Luis, além de ser o título de uma biografia da juventude escrita por Alejandro Vaccaro. Para compreender toda sua dimensão precoce do autor de O Aleph é preciso ver a torre de marfim construída por seus pais. Mais especialmente, pela dimensão temporal, a mantida por sua mãe. Falamos de Édipo?

Vaccaro não se sente cômodo com o conceito freudiano: “Pode levar a interpretações não desejadas”, assegura. Mas o certo é que Borges viveu com ela até a morte, em 1975. Só saiu de casa dois anos e meio. O tempo que durou seu casamento com Elsa Astete Millán, entre agosto 1967 e junho de 1970. Depois voltou. “A relação, sem dúvidas, era extremamente estreita tanto e quanto viviam na mesma casa, regidos pela mesma economia. A mãe de Borges cuidava de sua roupa, sua comida, iam juntos ao cinema e quando Borges começou a perder a visão se transformou em sua mão direita, amanuense e leitora de textos”.

O casamento foi organizado pela própria Leonor. A ela angustiava pensar o que seria do filho quando ela já não mais existisse. “Possuo em meus arquivos algo em torno de 200 cartas de Leonor Acevedo”, diz Vaccaro. “E nelas fica claro que estava muito preocupada pelo destino de seu filho, já adulto, com 67 anos, cego, sem filhos”.



Borges se manteve alheio à toda a irreverência de sua mãe: “No processo de seu casamento só visitou uma vez sua nova casa”, acrescenta o biógrafo. Elsa e Leonor coordenaram juntas todos os detalhes e desta maneira no dia 4 de agosto de 1967 realizou-se o casamento no Registro Civil e no dia 21 de setembro pela igreja na capela de San Nicolás de Bari, avenida Santa Fé, em Buenos Aires. A mãe de Borges tinha então 92 anos.

Mas Borges não suportou muito a relação com uma mulher culturalmente desigual e aos dois e meio pediu divórcio. A experiência de cuidar do gênio se tornou dura. Implicava não apenas o cotidiano, mas também sua obra. Leonor Acevedo chegava inclusive a sugerir finais dos contos do filho, como o de “A intrusa”. “Vamos trabalhar, meu irmão. Depois os carcarás nos ajudarão. Eu a matei hoje. Que fique aqui com as suas bugigangas. Já não causará mais dissabores”. Por isso e muito mais, justamente, Borges dedicou-lhe suas Obras completas: “Vós mesma, Mãe”.

José Luis Moure, presidente da Academia Argentina de Letras e encarregado da edição recente Borges essencial, assegura que a relação de Borges com sua mãe não define toda a dimensão da genialidade do escritor. Embora matize: “Se deveríamos aceitar essa hipótese, não deveríamos se não agradecê-la”. Mas Moure não esquece o pai, nem a irmã Norah, ambos presentes de maneira intensa na vida, obra e relações com o escritor.

“Foi desde criança um superdotado, seus interesses não respondiam aos característicos de sua idade. Sua natureza retraída, sua precoce imersão no mundo da leitura, sua incomum aproximação à figuras fortes e contraditórias – militares célebres nos quadros e na memória familiar, a avó inglesa, o pai livre-pensador, a mãe crioula velha e católica –, suas mudanças de casas e de países, as limitações físicas logo impostas por uma capacidade visual em lento declive, contribuíram por fazê-lo um introvertido, mais curioso pelo mundo intelectual que o material”, confirma Moure. Mas também um indivíduo dependente e limitador, protegido pelos desvelos incondicionais de uma mãe ao longo de mais de setenta anos, trinta e seis deles, quando viúva.

“Atribuir a essa relação a timidez de Borges, seus períodos de solidão, sua longa solteirice ou seus reiterados devaneios e fracassos afetivos ou amorosos é quase um clichê, um expediente convencional às vezes que se pede explicar características de personalidade ou de conduta surgidos de seu mundo íntimo e intransferível”, comenta Moure. Tanto que o próprio Borges disse alguma vez ao seu amigo Adolfo Bioy Casares: “Freud é o culpado de que toda obra seja vista como autobiográfica”. E a dimensão edípica está implícita nisso, segundo Norah Catelli, escritora e crítica literária. Embora seja uma questão sem resposta. “Não se pode contestar, porque o que chamamos complexo de Édipo trata-se de uma rede de relações inerentes a qualquer sujeito, seja Borges, um encanador ou eu mesma. Não importa, é condição necessária de nossa existência. Borges inventou sua figura de autor”.

* Este texto é uma tradução de "Cuando Borges era Giorgie" publicado no jornal El País.


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