Angela Carter, a primazia de subverter



O grande trabalho de Angela Carter é o de dinamitar os arquétipos tradicionais da literatura universal; dos contos orais coletados pelos irmãos Grimm até mesmo personagens e situações da obra de William Shakespeare, todos passam por uma prosa ousada, eivada de um imaginário gótico no qual se misturam fadas, vampiros, lobos e chapeuzinhos vermelhos, passam à rede de significações que envolvem o feminismo, o tabu, o simbolismo e a cultura pop. 

Angela Carter é, portanto, uma escritora cuja obra estar além de qualquer classificação generalista. Nasceu no condado de Sussex mas muito pequena fugiu com avó por causa dos bombardeios alemães na Segunda Guerra Mundial. O périplo levou a família se instalar em Londres, onde seu pai passou a trabalhar como jornalista. Ela seguiu seus passos e desde os 19 anos esteve metida entre tintas e papéis. Depois se casou e estudou literatura inglesa na Universidade de Bristol e chegou a trabalhar em cursos de escrita criativa frequentados por alunos como Kazuo Ishiguro, o escritor que recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 2017. O contato com a literatura e as trocas de conhecimento nas atividades como professora lhe deram a oportunidade de construir uma extensa bagagem literária que serve-lhe na elaboração de sua obra, ora explicitamente ora subtendida.

A grande quantidade de alusões a outras obras e escritores, juntamente com o intrincado conteúdo da sua prosa é um dos elementos que fornecem um valor estético à sua obra. É autora de romances e contos. O seu terceiro romance, Diversas percepções, levado ao cinema em 1987, ganhou o Prêmio Somerset Maughan; o dinheiro do galardão favoreceu-lhe a separação e a realização do sonho de ir morar no Japão, onde viveu vários anos que deixaram marcas profundas no seu estilo literário como demonstra vários de seus contos em Fogo artificial e o seu romance As infernais máquinas do desejo de Dr. Hoffman.

Do Japão, Carter viajou a diversos países da Ásia, Europa e veio para os Estados Unidos, onde foi escritora residente em várias universidades como Sheffield, Brown, Adelaide e East Anglia. Os trânsitos serviram-lhe para fortalecer amizades no universo literário; amizades como a do escritor Salman Rushdie, quem chegou a assinar o prólogo de um de seus livros. O autor de Os versos satânicos descreve a amiga como "a mais particular, independente e idiossincrática das escritoras" e assinala que foi "desdenhada por muitos por tê-la como uma figura marginal" e convertida numa das autoras contemporâneas "mais estudada nas universidades britânicas".

De fato, depois de sua morte, em 16 de fevereiro de 1992, a imagem de intelectual marginal e de escritora original e inteligente havia sido substituída pela de autora de culto que alçou a cultura pop a outros patamares; criadora original, dela se diz muito mais sobre espírito contraventor aos modismos, empenhada na revisão das fronteiras de gênero a partir da criação de uma obra que flerta com os elementos do fantástico, o terror gótico e a ficção científica em sua variante menos tecnológica. Três ingredientes, portanto, dão molde à sua obra: o surrealismo, a imaginação e a exploração da mitologia feminina. Da psicanálise freudiana ao expressionismo alemão, passando pela tradição da pantomima britânica, impulsionada por James Planché e Henry James Byron, ou um decadentismo herdado de Huysmans e Villiers de I'Isle-Adam, Carter usou as mais variadas perspectivas para redigir suas próprias regras e consolidar um universo ficcional muito próprio. 

Deste, estão publicados no Brasil até o presente A paixão da nova Eva, Noites no circo e As infernais máquinas do desejo de Dr. Hoffman, da forma romance e  103 contos de fadas. Recentemente sua obra mais famosa, A câmara sangrenta e outras histórias foi publicada numa tiragem limitada e exclusiva para assinantes de um clube de leituras brasileiro – o que reabriu o interesse sobre sua obra por aqui. Sua contística mostra uma esplêndida imaginação criativa e uma admirável capacidade de assumir traços multissignificativos no universo da criação literária.

As histórias de A câmara sangrenta se baseiam em figuras emblemáticas da literatura infantil – figuras catalogadas com incrível tratamento em 103 contos de fadas. São versões extremamente audaciosas servidas com uma ironia que não hesita em entrar nos territórios do grotesco, por uma escrita de tintas fortes e romântica, intervista de uma sensualidade impressionista que poucas vezes terá alcançado a expressividade que aí alcança tão poderosa.

Ao todo são dez contos nos quais a escritora subverte os tópicos da literatura de tradição oral fixada por Charles Perrault e os irmãos Grimm. A Bela e a Fera, Branca de Neve, Chapeuzinho Vermelho, o Gato de Botas ou Barba Azul são os protagonistas dos contos da antologia aqui em questão. Transcorrem em espaços opressores por uma prosa na qual abundam os perfumes pesados, naturais ou artificiais, flores ou vegetação sufocantes que corrompem e degradam esses espaços através dos quais discorre como pode a inocência e onde uma astuciosa e desavergonhada sexualidade se esconde sob uma sarcástica capa de dignidade. É um trabalho fascinante e provocador.

A obra de Angela Carter coloca em relevo a mensagem considerada retrógrada dos contos tradicionais e a substitui por conteúdos mais próximos à época da escritora. Deste modo, as personagens assumem outros papéis e provocam surpresa no leitor. No rol dessa inversão uma lista de elementos que misturam erotismo, terror e uma boa dose de humor negro.

Além da proposição de uma revisão de sentidos, estes contos são crítica literária. Desconstrói alguns mitos que são perigosos porque criam estereótipos. Carter tem plena ciência, e por isso propõe revista, que a tradição oral europeia é dotada de uma rica imaginação, entretanto, sua sabedoria (a dos contos) encontram laços com um mundo arcaico, cheio de superstições e fundado numa mentalidade fechada sobre os papéis masculino e feminino. Enquanto discurso crítica, a ela cabe revelar essas nuances que foram ao longo do tempo aplainadas ou disfarçadas pelas artimanhas da cultura – que o diga Walt Disney.  

Alguns dos textos de A câmara sangrenta remetem à literatura gótica e ao papel da mulher na obra de Sade – este um protagonista de um dos seus ensaios. Outros adquirem as maneiras e os movimentos cenográficos da Commedia dell’arte; uma das aventuras da moça casada com o temível Barba Azul acaba com a intervenção salvadora da mãe da jovem esposa; a ideia de que o lobo é, na verdade, a avó de Chapeuzinho Vermelho... Enfim, o leitor encontra aí um extenso trabalho que aprofunda as relações muito estreitas entre a psicanálise e os contos populares – o que haveria feito a felicidade de Bruno Bettelheim. E a imaginação de Angela Carter não se detém. Mostra, como não difícil perceber, um conhecimento extraordinário dos clássicos da literatura.

O amigo Salman Rushdie, considera que os contos são o ponto forte da obra de Carter, enquanto os romances "podem ser cansativos" devido ao seu estilo exuberante e complexo. Ele também considera A câmara sangrenta sua obra-prima, "o livro em que seu estilo elevado e veemente casa perfeitamente com as necessidades de seus contos". A opinião parece ganhar relevo entre outros lugares da crítica e entre outros leitores. Um dos contos da coletânea A companhia dos lobos foi também adaptado para o cinema em 1984 por Neil Jordan. 

Mas não apenas A câmara sangrenta é digna de toda admiração. Há uma coletânea ainda sem tradução no Brasil chamada Black Venus, em que o leitor encontra homenagens literárias de primeira grandeza: o belíssimo retrato, quase elegíaco, de Jeanne Duval, a amante negra de Charles Baudelaire; a comovente representação da figura de Edgar Allan Poe; o tratamento do mundo de Sonho de uma noite de verão dentro do qual a escritora finda recobrando “o bosque de Mendhelson”. Nesse ínterim, não é gratuito o retorno a Poe e Baudelaire; um, o criador da narrativa moderna e o outro, da poesia moderna. Angela Carter vai ao coração dos novos lugares da escrita.

Toda sua literatura tem um clima lendário carregado de uma sensualidade mórbida e tudo aí vai direto ao grande assunto de seu interesse: a relação entre identidade e representação. É assim nos contos citados neste texto. A escritora inglesa inscreve-se no rol das figuras que indagam sem medo os limites da escrita e tenciona tais limites ao extremo a fim de provar nossa capacidade de imaginação a começar pela sua própria. É uma proposta fascinante, repleta de imagens audaciosas como só a boa literatura é capaz de propiciar.


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