In Nomine Dei, de José Saramago

Por Pedro Fernandes



“Entre o homem, com a sua razão, e os animais, com o seu instinto, quem, afinal, estará mais bem dotado para o governo da vida? Se os cães tivessem inventado um deus, brigariam por diferenças de opinião quanto ao nome a dar-lhe, Perdigueiro fosse, ou Lobo-d’Alsácia? E, no caso de estarem de acordo quanto ao apelativo, andariam, gerações após gerações, a morder-se mutuamente por causa da forma das orelhas ou do tufado da cauda do seu canino deus?”

Este fragmento pertence à nota introdutória de In nome dei, edição de 1993, publicada no Brasil pela Companhia das Letras. Este livro trata-se de um texto escrito por José Saramago para o teatro. Uma encomenda, como foram todos os seus outros textos do gênero, como ele próprio lembrou em várias ocasiões. Trata-se de um texto que poderíamos dizer, vem compor uma revisão acerca do fio ideológico do discurso religioso, juntamente com O evangelho segundo Jesus Cristo, romance de 1991 e A segunda vida de Francisco de Assis, outra peça de teatro de 1987.

No romance, Saramago perscruta a formação de uma base do pensamento cristão, elevado de seita com poucos seguidores a modelo quase universal tantos mil anos depois. Propõe-se desconstruir a figura santificada de Jesus pelo homem, do herói pelo sujeito simples da periferia que atentou contra o poder e, claro, não se esquece de utilizá-lo como peça para os desígnios malignos de expansão do império monoteísta do Ocidente. A figura de Deus aí apresentada é pura encarnação da figura idealizada pelo discurso cristão: o de que, para construção de seu nome teve de sacrificar não apenas uma criatura, mas toda uma geração de seguidores.

Já na peça de 1987, o escritor português tece considerações semelhantes para a reconstrução da imagem histórica de Francisco de Assis, o homem abastado que doou toda riqueza aos pobres e foi viver com eles, transformado mais tarde, novamente pelo discurso cristão na figura-centro de manutenção de um status quo de luxo da própria Igreja. Saramago, nos dois textos, a única heresia que pratica é buscar recuperar a imagem verdadeira dessas figuras tão importantes no discurso cristão. Mas, contraditoriamente, onde os outros vêem heresia, eu vejo a mais sagrada das atitudes. Sou dos que concordam que as figuras recriadas pela literatura saramaguiana oferecem uma melhor afeição que aquilo que fizeram delas o discurso religioso.

Em In Nomine Dei, Saramago volta ao circuito dos horrores, aquele tecido no longo rosário de Deus para Jesus, no fortíssimo encontro da barca em O Evangelho, para tratar de um episódio histórico no extenso e contínuo processo de sedimentação do pensamento cristão: a guerra entre católicos e protestantes em Münster, no século XVI.

Num retorno à nota do escritor português sobre a peça, acho belo o mea-culpa feito pelo escritor, já sabedor que o texto ora proposto poderá não agradar a expectadores mais fechados, tal como os mesmos que censuram os outros textos que tocam naquilo que tem como mais sagrado: a exegese do discurso religioso. Diz Saramago: “Não é culpa minha nem do meu discreto ateísmo se em Münster, no século XVI, como em tantos outros tempos e lugares, católicos e protestantes andaram a trucidar-se uns aos outros em nome de Deus (...) para virem a alcançar, na eternidade, o mesmo Paraíso.”

De fato, o que aí se exibe é apenas um retrato sobre o horror ou o poder que um discurso tem no processo de cegueira ideológica dos seguidores. Não é, pois, um adendo contra a fé alheia, mas um questionamento acerca dos seus limites. Um questionamento que não vem apenas pela matéria do registro histórico, mas da denúncia sobre do que é capaz de fazer um homem contra outro homem apenas por professar maneira diversa de pensar sobre essa força superior pela qual chamamos de Deus.

Para não me estender mais sobre a obra, gostaria de assinalar só mais um detalhe: a maneira como o dramaturgo engendra as fronteiras entre a crença e a descrença, a fidelidade e a traição. Supõe que elas não são tão nítidas assim como foi pensada pelo Ocidente, sobretudo aqueles espíritos dogmáticos que se julgam no direito exclusivo de ter a chave de interpretação do texto religioso em nome de Deus. E em nome dele,veja-se, já se foi permitido cometer toda sorte de violações contra do homem contra o homem e ainda segue na matança indiscriminada como se um rosário de horror sem fim.

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