A morte do pai, de Karl Ove Knausgård

Por Pedro Fernandes

Karl Ove Knausgård

Este não o primeiro título do escritor norueguês: em seu país já publicou Ute av Verden (Fora do mundo, em tradução livre) e En Tid for Alt (Tudo tem seu tempo), ambos inéditos no Brasil. O primeiro foi a obra com que venceu o Prêmio da Crítica na Noruega em 1998. Agora, este A morte do pai é o primeiro título de uma série chamada “Minha luta” a qual pertencem outros cinco livros. O segundo, Um outro amor foi publicado por aqui recentemente e comentaremos numa próxima ocasião. Esta extensa obra, com quase quatro mil páginas, tem causado certo reboliço no país de origem e tida boa recepção por aqui, a ponto de ser comparado pela crítica com o Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust. Gostaria de expurgar essa comparação porque ainda não li a obra máxima do escritor francês; endossar essa voz da crítica (voz não confiável, diga-se) pode estar endossando certa ignorância e atribuindo fama a algo que não seja verdade. Ou seja, não tratarei de relações entre uma obra e o outra. Ao menos por enquanto. Melhor falar sobre o que, de fato, conhecemos. 

Se há uma relação, de fato, com o Em busca do tempo perdido, esta deve nascer do lugar onde está abrigada a obra de Knausgård: trata-se, ao modo da obra do escritor francês, de um romance de cunho memorialístico. Cada livro é como sendo um parte importante da vida do próprio autor, sendo que, como é caráter do fluxo da memória, não estamos diante de uma linearidade ou cronologia biográfica, mas de um exercício de perscrutar os lugares do passado a partir de uma posicionamento diverso, mas sustentado por uma nebulosa de nostalgia, como é dado ao ato de rememorização.

Apesar de o título sugerir a morte do pai como acontecimento principal desse primeiro volume de “Minha Luta”, e ela está na narrativa dominando quase toda a segunda parte do livro, não podemos reduzir este romance a apenas este acontecimento. A morte do pai é um romance sobre a complexa relação pai-filho, que perscruta seus interstícios, tenta sondar seus lugares individuais e sobretudo o lugar do outro num exercício de aguçada reflexão em torno de acontecimentos, não apenas de uma circunstância, mas de toda uma vida. “Por muitos anos eu tentara escrever sobre meu pai, mas jamais conseguira, decerto porque o tema era próximo demais da minha vida, e portanto nada fácil de transpor para outra forma, o que, naturalmente, é um pré-requisito da literatura.”

Volume 1 de Minha Luta, publicado no Brasil
pela Companhia das Letras

O que talvez mais chame atenção do leitor nessa reconstrução do passado é a capacidade de Knausgård sobre o miúdo dos acontecimentos, como se estivéssemos diante daqueles escritores do naturalismo-realismo que não desperdiçavam um detalhe qualquer em nome da harmonia da situação acontecida. Mas, não esperem uma narrativa tomada pelo excesso das fronteiras da descrição. Embora o narrador se deixe influenciar em vários momentos por essas fronteiras, tudo não é apenas muito plástico e imagético (um roteiro para cinema saído daí cairia muito bem) mas de uma mobilidade tanta e intensa que prende o leitor desde a primeira linha. Ficamos tomado pelo que vem depois, pelo desfecho de determinadas situações, como se estivéssemos na companhia de um amigo que nos para para contar sobre sua vida.

Que este envolvimento ou enovelamento seja uma recorrente da obra, é também uma estratégia que sempre nos repõe o fôlego suficiente para a extensa quantidade de páginas que ainda temos pela frente. Também é esse exercício de recriação da memória, assim exposta tão nítida, tão próxima de quem lê, um dos pontos de maior riqueza do romance; um dos que pega pela fraqueza do leitor: nunca perdermos a sede de saber sobre a vida alheia. Se isso não for verdade, alguém então, crie uma teoria em que seja palpável a extensa quantidade de biografias propositalmente não autorizadas, a leva de mídias cuja preocupação é comezinho das celebridades. O gênero memorialístico, como toda narrativa, é também uma criação ficcional – coisa que toda realidade talvez assim seja – mas, quando nos aproximamos de referências tão palpáveis ficamos diante de um tornar-se verdade pura.

E A morte do pai é um romance recheado dessas referências que aproximam o vivido pelo narrador do universo dos leitores: o contato com as artes plásticas, as leituras, as músicas, as firulas da adolescência, a necessidade de antecipação da liberdade, as primeiras relações amorosas, enfim, a vida em plena pulsão. Esse exercício de construção das referências é, sem dúvidas, o ponto alto da narrativa, como também é a capacidade do narrador em transformar episódios aparentemente inúteis em acontecimentos significativos para a forma como vai construindo suas lembranças e sensações em torno da perda desse elo que sempre lhe pareceu distante – como o modo de preparo de uma comida, a compra de produtos de limpeza, a faxina necessária na casa abandonada onde o pai passou os últimos dias ao lado da avó numa eterna bebedeira. Ou mesmo a designação por extenso dos títulos das músicas e bandas que lhe marcaram a adolescência. De tudo, Knausgård busca para compor esse extenso painel de memória – lugar que é mesmo um palácio sem fim aperfeiçoando rasteiramente um termo de Santo Agostinho.

“Escrever é retirar da sombra a essência do que sabemos. É disso que a escrita se ocupa. Não do que acontece aí, mas das ações que se praticam aí, mas do em si. Aí, é esse lugar e o propósito da escrita” – reflete o narrador a certa altura. E A morte do pai é ainda essa relação complexa entre o escritor e a palavra, entre o escritor e a moral de um grupo. Ficamos diante, como se fez o escritor Knausgård e como foi sendo processada essa relação sua com a literatura ou mesmo com a concepção dessa obra. Vez ou outra Knausgård está afeito às reflexões metalinguísticas, clássicas do processo de rememoração pela escrita. Sim, porque desde a criação do código escrito, o ato de contar o vivido também se tornou um ato de reflexão da palavra.

A complexidade do lugar assumido por Knausgård paira no fato de que todo processo de rememoração inclui o outro e este outro sempre toma como verdade absoluta as dores do narrador e o que diz do outro. Por isso, pelos que estão vendo de fora, os acontecimentos que se deram com eles podem servir de motivo para rupturas – a não-verdade. Porque o contado sobre o outro só é bem contado se contado por ele. Isto é, toda história tem um ponto de vista e o ponto de vista mais cômodo é aquele contado por mim.

Assim a perda do pai se apresenta ora como eixo para estrutura de toda a leva de acontecimentos dessa primeira parte de “Minha luta”. É através dela, como se ela fosse um gatilho para o material rememorado, que se dispõem os elementos em grande parte contraditórios da vida pessoal de Karl Ove – seja porque em parte significativa da sua adolescência era essa uma das figuras principais de sua convivência e estado distante por tanto tempo o reencontro se dá na pior das situações, a morte; seja porque a própria figura paterna foi-lhe sempre contraditória.

No mesmo instante em que a morte se constitui em elo entre o passado e o presente, também é instante produtor de novas transformações pessoais na vida do narrador: a reaproximação com o irmão, a avó e os tios, com os lugares da sua infância e adolescência, os acontecimentos, assim, tudo tão estrangeiro e desencantado aos seus olhos, mas rico em sensações que o levam a pensar sobre ele próprio. Também a morte instaura uma necessidade de recomeço e renovação da própria vida, ainda que os rituais modernos não tenham mais o sentido dos do passado porque já não se morre como antigamente – há uma repulsa do corpo morto como bem se mostra em A morte do pai.

O que nos resta dizer é que esse jeito de conversa com que Karl Ove constrói sua narrativa – e um projeto que mostra grandioso e de toda uma vida – é o suficiente para colocá-lo no lugar de alguém que terá produzido uma das obras mais significativas da literatura de seu país e quiçá de toda contemporânea literatura ocidental. As confissões de alguém que espreita não apenas sua vida, mas toda a história de parte do século passado. Não dá para se falar de memória sem se ater a história. Pela intensidade, força e forma com que o narrador engendra sentimentos tão particulares em universais, A morte do pai é um livro para todos os sentidos. 


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