Cartas de Nabokov para sua mulher

Vladimir Nabokov e Véra, sua futura companheira, em Berlim, 1954.

Era início de maio de 1923. A comunidade de imigrantes russos de Berlim realizava o baile da caridade. O jovem poeta Vladimir Sirin foi abordado por uma mulher vestindo uma fantasia de arlequim preto. Ela encantou-se por ele recitando versos de cor. E depois do baile vagaram pelas ruas da cidade até tarde da noite, um encantado com o outro. Esta é uma das muitas histórias que contam de como Vladimir Nabokov e Véra Slonim se conheceram: um disfarçado por um pseudônimo, o outro por uma máscara.

Nabokov partiu para o sul da França logo depois desse encontro. Foi trabalhar como agricultor com a esperança de que o trabalho duro viesse aliviar o seu sofrimento: seu pai, um democrata, tinha sido assassinado no ano anterior ao tentar proteger um rival político da morte. Junto com a perda do pai foi consigo a imagem da noite em Berlim.

Na França, ele escreveu um poema sobre o encontro com essa mulher mascarada e misteriosa. O poema foi publicado num jornal que ele sabia que ela poderia ler. Não foi suficiente: um mês depois tomou a iniciativa e escreveu-lhe a primeira carta. “Não vou esconder isso: estou tão acostumado a não ser bem-entendido - talvez - que logo nos primeiros minutos de nosso encontro, eu pensei, ‘isso é uma piada, um truque de máscaras’... Mas, então... Há coisas que são difíceis de falar - você contagia maravilhosamente com o toque de uma palavra.”

Vladimir Nabokov e Véra. Ela e ele metidos na paixão de catar borboletas.

Nabokov não foi enganado: este era o início de um dos relacionamentos mais duradouros na história da literatura. Até a morte de Nabokov, em 1977, Véra foi sua amante, companheira, mãe de seu filho, sua editora, pesquisadora, tradutora, administradora, protetora e sua colaboradora. Ela entregou-se à sua paixão pela caça e catalogação de borboletas. Quando preencheu sua declaração de imposto nos Estados Unidos passou-se como sua assistente. Quando ele decidiu queimar os manuscritos de Lolita, ela os salvou das chamas. Quando Nabokov manteve um de seus sonhos diários nos anos sessenta, o da música, gravou ensaios para o piano enquanto Véra lhe virava as páginas da partitura.

Tudo feito com determinada autoanulação. Mesmo antes de conhecer direito Nabokov, estava convencida de que estava diante de um dos maiores nomes de sua geração e fez o possível, tudo o que estava ao seu alcance para facilitar o afloramento de sua genialidade. Isso significava desistir de quaisquer ambições literárias que ela pode ter tido - na época já havia publicado várias traduções de poesia desde o início dos anos 1920 - no intuito de promoção de sua própria obra nascente .

Toda essa dedicação transparece nas cartas trocadas entre os dois. O material reunido numa edição em russo e já traduzido para o inglês foi organizado pelo estudioso da obra de Nabokov, Brian Boyd, com orientação de Olga Voronina, do Bard College. O filho do autor de Lolita, que morreu em 2012, esteve envolvido numa primeira parte da pesquisa, antes que seu estado de saúde viesse se fragilizar. As cartas entregam um Nabokov escrevendo ao seu primeiro e mais importante leitor.

Certamente temerosa por expor a relação de intimidade entre os dois, sabe-se que muito das correspondências que chegaram às mãos de Vera e mesmo correspondências suas foram destruídas. Mas, ainda sobreviveram muitas: as dos anos 1920 referem-se mais ao companheirismo dos primeiros anos de casados e são poucas cartas; a maior parte vem dos anos 1930 quando Nabokov foi passar várias temporadas em Paris, Bruxelas e Londres em tentativas de conseguir um emprego para tentar tirar sua família do meio do nazismo em Berlim. O último período prologando que os dois estiveram longe um do outro foi no o início dos anos 1940 quando já nos Estados Unidos ele foi numa turnê de palestras pelo interior do país.

As primeiras cartas são mais líricas. Nabokov se mostra com todo pendor do poeta apaixonado a inventar uma leva de nomes carinhosos de tratamento para Vera. É também o instante em que se mostra ele próprio se descobrindo como um escritor de prosa e podemos nos deparar com reflexões de como ele vê o mundo enquanto leitor e o que ele  pensa dos novos leitores. Nas primeiras cartas escritas no verão ao sul da França Nabokov se deleita em falar sobre a relação de compatibilidades entre ele e Véra: “a única pessoa que eu posso falar sobre a sombra de uma nuvem, sobre a música de um pensamento e sobre como fui trabalhar hoje e aparecia um girassol alto no meu rosto sorrindo para mim com todas as sementes.”

Véra tornou-se seu barômetro estético: “Não posso escrever uma palavra sem ouvir como você a pronunciaria”, escreve. “Posso falar sobre tudo isso só para você”, escreve noutra ocasião. Nos anos que antecedem a publicação de seu primeiro romance em 1926, Véra se torna um campo de testes para suas ideias emergentes sobre arte e literatura. “Estou cada vez mais convicto de que a arte é a única coisa que importa na vida”, diz ele para ela. “Estou pronto para suportar a tortura chinesa para encontrar um único epíteto”, diz quando relê Madame Bovary “para o romance mais brilhante da literatura mundial”. E considera que é este “o único livro que, em três lugares, o faz sentir-se vivo diante de si próprio”.



À medida que as correspondências progridem, Nabokov torna-se mais Nabokov. Em Freiburg observa o “murmúrio das chuvas de seda dos corvos, como eles voam baixo e espalham-se entre os abetos”. Em Kent, as ovelhas são de “camurça cinza”. No metrô de Londres descer as escadas rolantes, “cachoeiras de ferro”. Ao chegar de trem em Paris e avistar “a Torre Eiffel em pé como se rendada, com arrepios iluminados correndo pela espinha”. Na mesma cidade, no metrô, diz a Véra que pediu a um condutor o que estava nos degraus de pedra que brilhavam “como um jogo de quartzo em granito”; o condutor, “com entusiasmo incomum”, dá a Nabokov “les honneurs du Metro” mostrando-lhe “onde ficar e apreciar melhor o brilho; se escrevesse isso, as pessoas diriam que eu inventei”.

Encantamento com a beleza fora do banal é típico de Nabokov, assim como é o fascínio pelo feio, o violento e o perverso. Em 1926 ele escreve a Véra para dizer a ela que certa vez seu pai havia lido e gostado de um de seus contos, “mas ele acha que devia me especializar em  assuntos mais picantes”. O conto era “A nursey tale”. E, alegremente, o escritor diz a Véra sobre seus encontros com o aberrante ou o grotesco. Num salão literário na Bélgica ele relata conhecer um poeta, cujo “nariz é uma rede de veias de cor púrpura”, é um nome famoso “porque, quando jovem, comia carne humana”. O poeta, cujo pai trabalhava para a ferrovia, viu alguém atropelado pelo trem e “correndo desesperadamente, comeu um pedaço da perna decepada pelo meio... Um poeta, ele me disse, deve experimentar de tudo”.

As cartas dos anos trinta são mais pragmáticas que as inebriantes da década anterior. Nabokov não está mais se mostrando à sua jovem  companheira, mas está buscando encontrar trabalho e estabelecer ligações entre Paris e Londres. Em meio à busca por vistos e à perseguição por editores e editoras é possível encontrar alguns retratos marcantes alcançados pela sua caneta.

Joyce, que frequenta uma das leituras de Nabokov em 1937, é “mais alto do que eu pensava, tem um terrível olhar de chumbo”. Ulysses foi para o escritor uma das quatro obras-primas do século passado (as outras foram Em busca do tempo perdido, de Proust, A metamorfose, de Kafka e Petersburg, de Bely). Ainda do encontro com Joyce o que lhe chama atenção são as agruras oculares de Joyce: “Com um olho não pode ver nada”, escreve ele, “mesmo assim aponta diretamente para você de uma maneira especial porque ele não pode movimentá-lo sem substituí-lo por um buraco; eles tiveram de operar seis vezes sem causar uma hemorragia”. Nabokov descreve o almoço com H. G. Wells, o funeral de Zamyatin e o encontro com Bunin, parecido com “uma tartaruga velha desperdiçada” e previu, bêbado, que ele iria “morrer sozinho e numa agonia horrível”; Norman Douglas é julgado como um “pederasta malicioso”.

Correndo de volta a Paris, o círculo social de Nabokov mudara: está em desacordo com sua pobreza material. O escritor perdeu todos os bens na revolução. Restaram-se os seus contatos aristocráticos. Chega a ser inusitado, quando vivia à míngua, lê-lo a meditar sobre se deve ou não pedir o castelo de um amigo perto de Perpignan para o verão. Depois é incentivado a enviar seus escritos para o rei da Bélgica. Mesmo assim não consegue o emprego pelo qual tanto se esforça, apesar de ter sido sondado para trabalhar como professor em Eton ou para o serviço de inteligência. O que queria, entretanto, era um cargo na Universidade de Leeds. Mas aí foi rejeitado.

Nabokov, Véra e o filho.

De 1937 o tom das cartas muda. A necessidade de sair de Berlim era imperativa e julgando a partir das respostas de Nabokov, Véra parecia que ficava cada vez mais impaciente pela falta de sucesso do companheiro. O escritor estava sofrendo desesperadamente com o avanço da psoríase, acordando com a roupa encharcada de sangue e incapaz de domar “a monstruosa coceira”. Só depois de ter se recuperado do pior, ele diz para Véra dos “sofrimentos indescritíveis” - “sofri antes e durante o tratamento, se não fosse ele, tinha chegado ao termo do suicídio, o que não cheguei por ter você na minha bagagem”.

No início desse mesmo ano, Nabokov tinha começado um caso com Irina Guadanini, então uma poeta aspirante. O escritor ficara na defensiva diante das acusações que certamente já tinham chegado aos ouvidos de Véra: “Eu a proíbo de ser infeliz. Eu te amo e não há força no mundo que possa tirar ou estragar um centímetro sequer desse amor sem fim. E seu deixar de lhe responder uma carta alguma vez é só porque eu absolutamente não pude lidar com a desonestidade e as reviravoltas do tempo que estou vivendo agora. Eu te amo.”

Em muitas das primeiras cartas, Nabokov pede a Véra que lhe escreva mais. Assim, uma redução no envio de correspondências era um indício de que as coisas já não estavam tão certas da parte dele. Quando Véra certamente o confrontou diretamente sobre Irina, o escritor manteve sua linha: “Meu querido amor, todas as Irinas no mundo são impotentes [...] Você não deve se guiar assim. O lado oriental de meus minutos já é colorido pela luz do nosso encontro em breve. Todo o resto é escuro e chato, menos você”. Impossibilitado de ir tranquilizar sua companheira em Berlim, ele caiu mais tempo nos braços da amante em Paris. A saúde de Véra não ia bem e ela cuidava do filho com quatro anos de idade, Dmitri; além disso, ela era judia e as Leis de Nuremberg em vigor desde 1935 levou-a a testemunhar a grande queima de livros e a perda do trabalho num escritório de advocacia quando os proprietários judeus foram forçados a sair do país.

Vera continuou a questionar Nabokov sobre o caso. Como é sabido, no verão de 1937, na Riviera Francesa, ele acabou confessando a ela sobre o envolvimento já depois de tentar romper o affair. Irina tirou-lhe satisfação. Mas Véra prevaleceu. Quando retornam a corresponderem-se, Nabokov garante que as mulheres que ele conhece o tem como “velho e gordo”. Depois desse acontecimento, as cartas diminuíram. Há apenas duas cartas entre 1945 e 1954, o período em que ele publicou romances como Lolita, e as duas são datadas de 1954.

O material mais substancial e interessante do gênero só aparece a partir dos anos nos Estados Unidos quando de sua turnê de palestras no outono de 1942. Na Carolina do Sul, onde ele lecionou no Coker College ele estava extasiado com a flora local. “É muito difícil transmitir a felicidade de passear por essa grama azulada e estranha entre arbustos de florescência (um arbusto aqui é carregado de vagens brilhantes, como se tingido de lilás - uma matriz química absolutamente chocante, enquanto a árvore principal na região é um pinheiro muito sensível).”

O biólogo e esteta poderia ter saboreado mais a riqueza natural do sul, mas ele não estava cego para a disparidade social. Observa a riqueza dos fundadores da faculdade em contraponto com as plantações de algodão e registra seu desgosto com a palavra “negrinhos”, uma “expressão que destoa em mim, lembrando-me próximo do patriarcalismo dos latifundiários russos”.

As referências históricas são muito poucas na série de cartas. Há apenas uma ocasião em que ele revela: “se não fosse por vocês dois [Véra e o filho], eu senti isso perfeitamente claro, teria ido ao Marrocos como soldado”. Mas Nabokov não menciona o que está acontecendo na Alemanha; pelas cartas é fácil esquecer que ele e Vera viveram a Revolução Russa e a ascensão do nazismo na Alemanha.

A última explosão de cartas se dá quando Nabokov passou férias na Itália na década de 1970. Ele exalta o luxo dos hotéis e reclama sobre a existência de muitos alemães no país. Então, já era provavelmente o mais famoso escritor vivo. De Montreux Palace Hotel, na Suíça, onde passou o resto de suas vidas depois de chegar, em 1961, Véra trata de toda sua correspondência e colabora com a criação da persona pública do companheiro.

Essas cartas escritas antes de começar a se preocupar com seu público - isto é, antes de Lolita o fazê-lo famoso - nos permitem espreitar atrás dessa máscara e obter uma visão singular de Nabokov. Véra, no entanto, permanece em indescritível silêncio. Ao ensinar nos anos cinquenta, Nabokov dizia a seus alunos, em referência à seu amado Flaubert, que o melhor autor é “idealmente discreto” e que “permanece difundido através do livro para que sua própria ausência torne-se uma espécie de presença radiante. Como dizem os franceses, il brille par son absense - ele brilha pro sua ausência”. Isso só poderia ser a melhor maneira de pensar sobre a presença de Vera nos poemas, nos romances e nas cartas: brilhando por sua ausência.

Ligações a esta post:
No Tumblr do Letras publicamos a reprodução de algumas dessas cartas.


*texto escrito a partir das informações de "Letters to Véra by Vladimir Nabokov" de Duncan White, The Telegraph.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Boletim Letras 360º #579

Boletim Letras 360º #573

A bíblia, Péter Nádas

Boletim Letras 360º #574

Confissões de uma máscara, de Yukio Mishima

Palmeiras selvagens, de William Faulkner