Obras-primas perdidas e felizmente recuperadas

Walt Whitman: nos últimos anos, dois textos resgatados

A história da literatura está cheia de casos de obras destruídas, censuradas ou extraviadas. Por exemplo, Huckleberry Finn, de Mark Twain, foi objeto de repetidas proibições nas escolas estadunidenses devido ao uso da palavra nigger (negrada), vocábulo que nos Estados Unidos adquiriu um peso semelhante ao que começa a se trilhar nas discussões sobre racismo no Brasil dos últimos anos.

Além da censura, outra pilha de milhões de livros serviu de alimento para o fogo. Nem mesmo nós, de história tão recente, deixamos de ter nosso Fahrenheit 451. Foi assim, no nosso país naqueles anos infernais da Ditadura com obras de Jorge Amado. Mais de mil exemplares de livros seus foram queimados em praça pública pela polícia do regime, em Salvador, enquanto o escritor era levado para a cadeia.

Mas é sobre outra lista igualmente extensa que este texto precisa citar: a de obras que nunca foram sequer publicadas porque foram perdidas, acidentalmente ou conscientemente, e que muitos anos depois vieram a lume. Este texto encontra eco noutra ocasião que este blog publicou sobre a aura dos livros perdidos (ver final desta post). 

Estamos de acordo com a sentença de Margaret Atwood de que “interessar-se por um escritor porque gostamos de seu livro é como se interessar por patos porque gostamos de foie”, mas a perda de um livro, qualquer que seja, é uma tragédia, porque estamos destruindo um bocado de ideias que talvez nunca voltem a ocorrer outra vez. Síntese de cérebros preservados em formol. Isso são os livros. Inclusive os livros que trazem más ideias são necessários para não esquecermos o que devemos fazer ou pensar.

Por isso, devemos ficar felizes quando a notícia que aparece é justamente o contrário de que uma obra foi perdida. Isto é, que esteve perdida e agora foi achada. E é a partir de uma boa notícia como essa, que por esses dias correu o mundo, que gostaríamos de começar este texto.

O episódio se deu com o pai da poesia moderna nos Estados Unidos, Walt Whitman, quem, com o seu Folhas de relva se converteu num fetiche para várias gerações. Quem não se fantasiará em ficar em pé sobre a escrivaninha do professor e gritar “Oh, capitão! Meu capitão!”, a homenagem de Whitman a Abraham Lincoln que se popularizou pela cena de Rob Williams em Sociedade dos poetas mortos?

Agora, cento e sessenta e cinco anos depois, um pesquisador da Universidade de Houston, Zachary Turpin, deu uma de Sherlock Holmes até encontrar outra obra de Whitman que havia permanecido na obscuridade – Vida e aventuras de Jack Engle [tradução livre de Life and Adventures of Jack Engle]. O livro, um folhetim dickensiano, só pode ser desfrutado em 1852, e em folhetins, por alguns leitores de The New York Daily Times, porque o texto nunca chegou a adquirir o formato de livro, nem se conheceu reedição alguma noutras mídias.

As pesquisas de Turpin não são novas e são dignas de outro folhetim. Tudo começou quando localizou um caderno com notas do poeta em que ele havia preparado um rascunho do livro agora encontrado. A busca continuou em busca de informações a fim de encontrar exemplares do jornal onde Whitman havia publicado anonimamente a obra. Grande parte dos exemplares dos folhetins nunca haviam sido digitalizados e precisou de horas de dedicação entre os arquivos da Biblioteca Nacional dos Estados Unidos.

Depois de localizar os materiais, outra parte trabalhosa, foi confrontar os textos com as anotações. E só então, ao perceber que as peças se encaixavam pode ter certeza de que estava, com certeza, diante de uma nova obra; uma obra escrita na mesma época de Folhas de relva e com a qual guarda diversas relações. Integralmente recuperado, o livro foi impresso pela Universidade de Iowa e uma cópia digital incluída na edição de The Walt Whitman Quartely Review, um periódico dedicado a publicações sobre a obra do poeta. 

É verdade também que muitas obras nunca foram publicadas por desejo expresso de seus autores, como é o caso do livro de Whitman agora publicado: o estadunidense sempre quis passar para a eternidade como poeta e sempre renegou que suas obras em prosa ganhassem o formato de livro.

Franz Kafka: a recomendação não era para queimar tudo?

Caso parecido a este foi o de Franz Kafka, quem deixou expresso ao seu amigo e editor Max Brod que queimasse todo espólio e nada mais restasse que aquilo que foi publicado em vida (já falamos algumas vezes sobre isso no blog). Sorte nossa, Brod não ouviu os desejos do amigo. E hoje se conhecemos uma variada diversidade de obras suas que não A metamorfose é graças à desobediência de Brod.

Já Mark Twain deixou, antes de sua morte, mais de cinco mil páginas de autobiografia, com instruções precisas para que não se publicassem antes de cem anos. Os textos ganharam aos poucos edição, conforme o desejo do autor e o último tomo veio lume muito recentemente nos Estados Unidos como noticiamos certa vez no Letras.  

Noutros casos, a perda se deve a feitos fortuitos. Conan Doyle, criador de Sherlock Holmes, perdeu uma de suas obras ao enviá-la ao seu editor. Depois quis reescrevê-la. Mas todo mundo sabe da dificuldade que é fazer regressão. Nada sai como o que vinha sendo pensado e bloqueado pela frustração da perda é muito provável que mesmo que se consiga seguir o fio da meada de antes já o escritor não tem certeza nem estará convencido sobre o novo texto. Doyle, por exemplo, só chegou ao capítulo sexto. E o livro incompleto só veio a lume cento e trinta anos depois, graças à British Library, com o título de The Narrative of John Smith.

Temendo isso do acaso, ou querendo guardar-se para a eternidade, Júlio Verne manteve uma obra guardada num cofre só descoberta por seu neto muitas décadas depois da sua morte. Paris in the Twentieth Century guarda outro detalhe curioso: o visionário escritor descreve o que ele chama de “telégrafo fotográfico”, o qual “permite enviar a qualquer parte o fac-símile de qualquer escrita, autógrafo ou desenho e assinar contratos à dez mil quilômetros de distância”.

José Saramago e o caso de A claraboia

Isso de permanecer a obra numa gaveta ou cofre para a eternidade aconteceu à revelia com José Saramago. Depois de publicar Terra do pecado seu primeiro romance – que aliás não teria esse nome se não fosse um editor que por conta própria tivesse alterado o manuscrito de A viúva porque este título original não vendia – o escritor português dedicou-se a escrever outro livro, enviado a uma editora. Chama-se A claraboia. E simplesmente a editora, sabedora do fiasco do primeiro livro e diante de outro título suspeito a cair no esquecimento, esqueceu o datiloscrito nos seus arquivos. Era a única cópia integral da obra. Muitos anos depois, quando Saramago já havia ganhado o Prêmio Nobel de Literatura e, portanto, outra posição entre os escritores, a mesma editora entra em contato para dizer sobre a descoberta do datiloscrito e se o escritor não tinha interesse de publicá-lo. Então, o livro foi resgatado do esquecimento, mas só ganhou edição depois da morte do escritor, por sua recomendação.

Algo semelhante se deu com Suíte francesa, de Irène Némirovsky – outro caso de obra perdida e encontrada posteriormente mais emocionante. A escritora começou a escrever o livro durante a ocupação da França pelos nazistas – escrevia em segredo pelo fato de ser judia. Mas nunca conseguiu colocar um ponto final no texto, já que em 1942 ela foi presa e enviada para Auschwitz, onde morreu. O manuscrito, então, permaneceu guardado pela sua filha mais velha que nunca teve coragem de abri-lo por imaginar que se tratava de um diário pessoal da mãe e ser muito doloroso ler o que ali estava escrito. No final dos anos 1990, Denise fez um acordo com a Biblioteca Nacional francesa para doar os papéis da mãe e foi quando decidiu examinar o caderno. O que acabou descobrindo foram anotações pessoais de Némirovsky para um romance que, publicado em 2004, tornou-se logo um dos mais vendidos e quistos pelos leitores.

O número de obras perdidas e jamais encontradas, por sua vez é gigantesco: de Lope de Vega, por exemplo, só sobreviveu a quarta parte de suas duas mil obras catalogadas; de Shakespeare também outra quantidade permanecerá para sempre inédita; Lord Byron, Edmund Spencer, Thomas Carlyle, Sylvia Plath etc. A sorte, nesse universo de conspirações do acaso é que os pesquisadores amantes do resgate estão continuamente, num exército disperso mas muito atento, a encontrar e recuperar parte desses livros perdidos.

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