Escritores narcisistas

Por Andrea Aguilar

Gerard van Kuijl. Narciso.


Extrema sensibilidade e considerável fragilidade, certo vampirismo, algo de vaidade – pouco ou muita dissimulação –, o convencimento de que o que alguém sente ou percebe é único, e um considerável egoísmo são características comuns no comportamento criativo. Os grandes artistas – divos e divas, mestres – não são necessariamente boas pessoas, mas são, inevitavelmente, narcisistas? A crítica Gayatri Spivak aponta: “A possibilidade do sucesso artístico é particularmente sedutora para o narcisista pela construção social do gênio. A ideia de gênio captura a quintessência do narcisismo; alguém que foi tocado pelos deuses e que sem esforço pode alcançar grandes coisas”.

Lancemos o debate e concentremos a questão no plano literário. Não faltam as vozes que encontram na autoficção um claro reflexo da onda atual do eu. Os seis volumes do romance Minha luta, em que o escritor norueguês Karl Ove Knausgård assume o papel de protagonista e expõe sua vida com intenso detalhe, são citados como um exemplo paradigmático. Ironias do boom literário, em seu catártico solipsismo o escandinavo não está sozinho.

Segundo um estudo citado por Kristin Dombek em seu ensaio The Selfishness of Others (O egoísmo dos outros, em tradução livre) os escritores estadunidenses usam do “eu” 42% a mais que em 1960. E logo este aparente delírio de autorreferência, que assola as sociedades ocidentais, e o hábil uso que alguns escritores fazem dele, para entrar em sintonia com o zeitgesit e construir suas ficções, não esclarece muito sobre a relação última entre o narcisismo e a literatura.

Em finais dos anos noventa, nas páginas do The Observer, David Foster Wallace teve a ideia de juntar a patologia e o romance no acrônimo inglês GMN (Great Male Narcissists) para referir-se aos três papas da ficção realista estadunidense do pós-guerra: Norman Mailer, John Updike e Philip Roth. O termo “Grandes Machos Narcisistas” nasceu na demolidora crítica do romance Toward the end of time, de Updike, autor que, segundo Foster Wallace, era definido por alguns leitores como “simplesmente um dicionário Thesaurus com pênis”. Sexismos à parte, a crítica entrava em cheio na animadversão que os três romancistas geravam entre os leitores mais jovens: “Tem a ver com seu ensimesmar-se radical, e com sua celebração acrítica deste ensimesmar-se tanto em si mesmos, como nas suas personagens”. Os romances de Updike, apontava, estavam habitados simplesmente pelo mesmo tipo de homem, um alter ego do autor; “São sempre incorrigivelmente narcisistas, don juans, autodepreciativos, autocompassivos”.  

Três dos quatro protagonistas desta história estão mortos e o quarto, Philip Roth, deixou de escrever, mas a qualificação GMN não perdeu a força. Um exemplo é a crítica de Elaine Blair que celebrava na The New York Review of Books o francês Michel Houellebecq e lamentava que toda uma geração de escritores estadunidenses atuais (Gary Shteyngart, Sam Lipsyte e Richard Price) só tenham parodiado os machos narcisistas protagonistas de seus romances. Blair propõe uma teoria: essas personagens egoístas e egocêntricas, condenadas ao fracasso amoroso por sua incapacidade para simpatizar e amar (losers românticos), embora sigam por aí, acabam caindo no ridículo ou se autoparodiam para não irritar as leitoras.

Narciso era um homem e Ovídio também, mas seria um erro reduzir o narcisismo ao âmbito da literatura masculina. A confiança em si próprio e o ensimesmar-se de um romancista não é questão de gênero. “Alguns de nós necessitamos de um afã sem limites para encontrar a força para escrever uma só linha, não dizemos um livro (Outro livro Joyce!, murmura o abismo. E este também vai mudar o mundo?). Mas o artista deve atuar a partir da frágil convicção de que é tudo, ou não poderá provar nada. E como nos advertiu Lear: ‘nada sai do nada’”, escreve num ensaio a prolífica escritora estadunidense Joyce Carol Oates.

Como controlar esse impulso egocêntrico? O britânico Orwell recomendava aplicar disciplina ao temperamento e “evitar cair-se atolado numa fase imatura”. Não é tarefa fácil – explica a atinada e brilhante Lydia Davis em seu conto “Sobre o ano novo”: “No fim, na metade de tua vida, estás suficientemente pronto para ver que tudo isso não acrescenta nada, inclusive o sucesso não significa nada. Mas, como aprende uma pessoa a ver-se como nada quando teve tantos problemas para ver-se como algo em primeiro lugar? É confuso”. Escrever pode ser que ajude.

* Este texto é uma tradução livre de “El cuento de los escritores egoístas”, publicado no El País.


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