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Memória de elefante, de António Lobo Antunes

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Por Gabriella Kelmer António Lobo Antunes. Foto: Basso Cannarsa Ser o uso de imagens o caminho natural da poesia não consiste em nenhuma surpresa para qualquer amante da literatura. Também já não se pode dizer inovadora sua utilização na prosa, a partir de uma linha de criação estética, datada das primeiras décadas do século passado, que se afasta do regime de representação e adota o lirismo de modo a conceber aquilo que a narração racionalista não poderia abarcar: uma essencialidade humana movediça ou inexistente; as implosões e limitações da linguagem; o horror absoluto e silencioso de determinadas experiências. Em Memória de elefante , publicação de estreia de António Lobo Antunes, o emprego de imagens é fundamental, além de francamente curioso, por sua prolixidade e repetição.   O protagonista da narrativa, um psiquiatra retornado da guerra colonial em Angola (designações também atribuíveis ao escritor, cuja produção autobiográfica se estende ainda por outros romances), pertence “à

La chimera: o êxtase de Santa Rohrwacher

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Por Alonso Díaz de la Vega   A sequência de créditos finais de La chimera (2023), dirigido pela italiana Alice Rohrwacher, mal começa e aparecem alguns pássaros filmados contra o céu. Aos poucos seus grasnidos e cantos são cercados pelo pop suave e excêntrico de Franco Battiato. Pareceria um detalhe insignificante; normalmente, com os primeiros nomes na tela, as luzes da sala se acendem e o público desaparece. Eu mesmo faço isso, principalmente se não gosto do filme, mas “Gli uccelli” (“Os pássaros”) exige nossa atenção: é o final ideal para um filme que se comporta como a música de Battiato.   O compositor e a diretora são tão sérios quanto brincalhões. A contradição se manifesta na capa de La voce del padrone , álbum que contém “Gli uccelli”: vemos Battiato de paletó e gravata na praia; por baixo da calça jeans, um pé calça uma sandália e o outro um sapato. Rohrwacher, por sua vez, realiza filmes que sugerem simultaneamente as caricaturas carnavalescas de Federico Fellini e o mistic

O Lazarilho de Tormes mais desconhecido

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Por Francisco Gómez Martos Lazarilho de Tormes.  Capa da edição de Medina del Campo de 1554 (detalhe) Lazarilho de Tormes é mais que um clássico da literatura, é um símbolo e uma referência cultural de Espanha. Sua história foi levada ao cinema e à televisão, ao rádio e aos podcasts, aos palcos de teatro, música e dança, incluindo o break dance , às pinturas de pintores como o próprio Goya, aparece em todos os níveis de ensino e foi publicado em livros adaptados para crianças e para quem está aprendendo espanhol como língua estrangeira. O que há na história de Lazarilho de Tormes que o tornou tão importante na cultura e na sociedade?   Possui, antes de tudo, uma qualidade e complexidade literária que faz com que especialistas na área continuem dia após dia falando sobre o livrinho em monografias científicas, revistas de pesquisa, teses de doutorado, seminários universitários e conferências acadêmicas ao redor do mundo. Em segundo lugar, tem a virtude de ser escrito com clareza, o que

Raymond Queneau

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Por José de la Colina   No dia 26 de outubro [de 1976], lemos em algum jornal que na manhã do dia 25, Raymond Queneau, “renovador da ortografia francesa e autor do bizarro Zazie dans le Metro , adaptado para o cinema por Louis Malle”, havia morrido em Paris. Faltava ressaltar que o falecido também foi o autor da letra da música “Si tu t'imagines”, popularizada por Juliette Greco, para que um dos escritores mais ricos e revolucionários da França ficasse reduzido a uma parcial e mínima figura no dicionário de ideias realizadas. Mas é verdade que é difícil situar Queneau.   Como explicar que o erudito criador da Encyclopédie de la Pléiade , o apaixonado por matemática e pela filosofia de Hegel, o acadêmico do Goncourt e o inovador da ortografia francesa ( mais oui! ) fosse ao mesmo tempo um egresso do surrealismo, um sátrapa do Colégio de Patafísica, um escritor de romances engraçados em “linguagem falada”, um dinamitador dos clássicos e da retórica, o fundador dos jogos do OuLiPo (

Sete poemas de James Wright em “Vamos reunir-nos junto ao rio” (1968)

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Por Pedro Belo Clara (Seleção e versões) O POEMA DE MINNEAPOLIS (Para John Logan)   1. Pergunto-me quantos velhos, no último inverno, Esfomeados, com medo do anonimato, deambularam Pela margem do Mississippi Açoitados pelo vento até cegarem, sonhando O suicídio no rio. A polícia remove os seus cadáveres ao romper do dia E entrega-os em qualquer parte. Onde? Como guarda a cidade listas dos pais Que não têm nome? Em Nicollet Island observo a água escura, Tão bela na sua quietude. Desejo aos meus irmãos boa sorte E um túmulo quente.   3. Raparigas negras e altas de Chicago Escutam canções leves. Elas sabem quando o seu suposto bem-feitor É um polícia à paisana. A palma da mão dum chui É uma barata pendurada nas presas chamuscadas Duma lâmpada eléctrica. A alma dos olhos dum chui É a eternidade duma manhã de domingo nos subúrbios De Juárez, México.   7. Quero ser levado Por um enorme pássaro branco, desconhecido da polícia, E voar bem alto por milhares de milhas e ser cuidadosamente e

Boletim Letras 360º #581

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Fernando Pessoa. Arquivo da Casa Fernando Pessoa (Reprodução) LANÇAMENTOS   Editora amplia a presença da obra de Fernando Pessoa e salda várias lacunas do mercado editorial brasileiro na publicação da obra do poeta português. Editam-se dois novos livros.   1. Diários e escritos autobiográficos . O poeta desdobrado em heterônimos, que pela voz de Álvaro de Campos afirmou que “fingir é conhecer-se”, faz difícil saber o que está por detrás de tantas máscaras e o que realmente pensava e sentia. Contudo, é possível distinguir entre o autor literário e o homem cotidiano, por mais que os dois se confundam. Dessa forma, estes diários, cartas, apontamentos e alguns poemas reunidos esboçam o melhor autorretrato possível de Fernando Pessoa. Mesmo aproximativo e incompleto, tem a virtude de ser feito com as suas próprias palavras, de maneira que esta obra reúne o que mais poderia se aproximar de uma “autobiografia”. Nos seus apontamentos pessoais, Pessoa escreve para si mesmo, mas assina por vez