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José e os seus irmãos: a descida ao submundo e suas reminiscências

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Por Juliano Pedro Siqueira     “Fundo é o poço do passado. Porque não chamar-lhe insondável?”   — José e os seus irmãos: as histórias de Jaacob .     Thomas Mann na Suíça. Arquivo Photopress / Keystone / Bridgeman Images A história bíblica de José e sua saga pelo deserto é por si só uma narrativa fascinante. Muito utilizada em sermões para ilustrar as virtudes humanas diante das injustiças da vida e das representações simbólicas, ligadas aos sonhos — diga-se de passagem, inquietantes — , faz de José um ícone iluminado do cânone sagrado, marca da providência divina, que o acompanhou desde sua descida ao inferno até sua nababesca governança egípcia.     Esta impressionante história ganharia ainda maior robustez, quando Thomas Mann, dera início à sua maior empreitada literária, ao escrever, já no exílio em solo suíço — o romance José e os seus irmãos . O romancista alemão levaria 16 anos para compor sua tetralogia, iniciada com As histórias de Jaa...

Nas sombras do presente: resenha de “Deus não dirige o destino dos povos”, de Marcelo Labes

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Por Wesley Sousa Marcelo Labes. Foto: Arquivo do escritor.   O escritor alemão Alfred Döblin, no ensaio de 1938, “O romance histórico e nós”, afirma que uma das novas figurações do romance histórico tem característica central uma posição na ficcionalidade de caráter histórico, em que o escritor eleva ao material literário o domínio dos “fatos a semblância de uma realidade. E finalmente, ele [o escritor] trabalha com tensão, procura atrair nosso interesse, satisfazer-nos, abalar-nos, prender nossa atenção, desafiar-nos” (Döblin, 2006, p. 22).   No entanto, a relação complicada que o caráter do romance histórico se encontra hoje, com a prevalência dos romances autobiográficos, narrativas simplórias no ambiente da prosa, torna ainda mais difícil a proeminência de um romance que logre alcance e êxito na empreitada. Em nossa história literária, a tematização histórica particular de nossa terra não é um capítulo lisonjeiro. José de Alencar, com Guerra dos mascates (1873), Euclides...

Homem com H

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Por Pedro Fernandes   Ao que parece o cinema brasileiro acompanhou de alguma maneira certa tendência das nossas letras, que a foi a de recontar a vida de determinadas figuras caras à história e à cultura nacionais. A explosão das biografias entre as últimas décadas do século XX chegou a mexer com os interesses dos possíveis biografados ao ponto de levantar um acirrado debate jurídico acerca da legitimidade ou não do contar a vida alheia sem o registro de permissão da personagem. Mas entre a proibição ou não, este continuou a ser um gênero que, desde seu auge, mobiliza de maneira perene públicos diversos; talvez, a explicação para tanto esteja em uma qualidade quase formadora de certo modo de ser brasileiro, que é o nosso provinciano interesse de bisbilhotar a vida alheia, saber do outro e da sua intimidade. Somos também um povo afeito ao culto e à fabricação de ícones populares e assim o que não nos falta é material.   Ney Matogrosso é uma dessas figuras e os materiais di...

Parágrafo de Pedro Nava, crônica de Drummond

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Por Leonardo Thomaz     Assim a poesia circula como um facho levado por mãos que a prezam, e alguma coisa, no abismo, se salvará. — Carlos Drummond de Andrade.     Vitrine da Livraria José Olympio, Rua do Ouvidor, anos 1940. Uma página de um livro das memórias de Pedro Nava pode equivaler a crônicas inteiras de Carlos Drummond de Andrade. Ambos leitores de Proust — Drummond, inclusive, chegou a traduzi-lo —, estabelecem relações distintas com sua obra. Enquanto Pedro Nava extrai parágrafos caudalosos de pequenos episódios perdidos no passado, Drummond se praza na síntese poderosa desses momentos, confinando-os a uma dolorosa fotografia na parede. São maneiras de elaborar o passado, matéria de alta envergadura e longa tradição nas letras mineiras.   A mineirice desses escritores — inclusive, muito amigos — se cruza e se potencializa na recordação de diferentes casas de livros. No segundo volume de suas memórias, Balão cativo , publicado em 1973, Pedro Nava co...

Flannery O’Connor e a consciência do mal

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Por José Homero Flannery  O’Connor. Foto: Arquivo  Emory University.   Embora a literatura possa se assumir como uma forma de salvação, na maioria das vezes é um agente do engano. Em parte reflexo da condição humana, suas respostas são ambíguas e as soluções não são definitivas. O dilema favorito da religião e de uma certa filosofia herdada do Romantismo (“a doutrina da perfectibilidade da natureza humana”, como a chamou Flannery O’Connor) tem sido elucidar se o homem é inerentemente bom ou mau. Enquanto o Iluminismo apresentava o progresso como intrínseco à razão, que gradualmente levaria à felicidade terrena, as vicissitudes da Revolução Francesa, a suposta encarnação — lida com reverberações cristãs — da trindade intelectual da liberdade, igualdade e fraternidade, terminaram em um reinado de terror que confrontou os filósofos com a constatação do mal. Esse desencanto precoce com os valores seculares recém-entronizados na antiga sede da divindade confirmou que a ideolog...

Boletim Letras 360º #637

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  James Baldwin. Foto: Sedat Pakay LANÇAMENTOS   Lançado originalmente em 1953, o livro de estreia de James Baldwin é publicado no Brasil .   Harlem, Nova York, década de 1930. John Grimes acorda no dia do seu aniversário de catorze anos e ninguém ao redor parece se lembrar da data. Apesar do entorno apático e por vezes violento, o protagonista não abandona seu otimismo. É então que ele percebe que a fé pode dar um novo rumo para a sua vida e decide mergulhar em uma profunda jornada espiritual.  Proclamem nas montanhas é um romance de formação com caráter semiautobiográfico. A devoção, na trama, ganha uma dimensão múltipla: se por um lado reflete o desejo de autoconhecimento e de redenção individual, por outro funciona como um mecanismo capaz de organizar a sociedade norte-americana como um todo — seus hábitos, anseios e temores —, sobretudo quando se trata da experiência negra. A culpa e a noção de pecado, assim, se revelam chaves imprescindíveis para compreender o...